Fugas - Viagens

O sorriso de Buda

Por Humberto Lopes (texto e fotos)

Luang Prabang, a segunda cidade do Laos, é uma jóia arquitectónica e uma das mais belas cidades da Ásia. Estrela do turismo cultural no país, conserva um centro histórico que funde urbanismo colonial com padrões e técnicas indígenas.

“O império desfaz-se, ficam montes e rios”, escreveu um poeta chinês. Luang Prabang foi há muito, muito tempo, capital de um reino famoso, o Lan Xang, e depois desse vieram outros e outros, e quantas vezes não terão eles surgido envoltos em ilusões de eternidade... Tudo o que existe é impermanente, como lembra, afinal, a visão budista.

Luang Prabang foi centro político de vários reinos, pelo menos desde o século XIV, o mais brilhante de todos por volta do século XVI, na altura em que a (inventada?) viagem ao Calaminham poderá ter ocorrido, a fazer fé em Fernão Mendes Pinto. Mas o burgo e o reino foram perdendo o pé nas reviravoltas da História, ameaçados umas vezes pelos birmaneses, outras pelos reinos khmers e pelo Sião. Com a unificação e a anexação ao protectorado francês da Indochina, a capital acabaria por se fixar em Vienciana, no Sul, junto à fronteira com a Tailândia.

Luang Prabang é hoje a segunda cidade do Laos e uma modesta capital administrativa de província, com pouco mais de sessenta mil habitantes, muito celebrada pela sua condição de reserva cultural e religiosa do país. A classificação pela UNESCO como Património Mundial impulsionou mudanças de carácter ambíguo. No lado negativo da balança conta-se uma crescente pressão para a adaptação de edifícios a funções relacionadas com o turismo, o que vem afastando do centro os habitantes, e, tão grave quanto as antigas pragas do Egipto, são cada vez mais as agências a incluírem nos seus pacotes um voyeurismo absolutamente condenável: à hora da prática budista de recolha de esmolas nas ruas da cidade, os monges são assediados por grupos de turistas que os perseguem com os seus flashes e a sua obsessão em coleccionar imagens de lugares e gentes “exóticas”.

Luang Prabang apresenta-se ao forasteiro como uma cidade pujante, símbolo de mais uma experiência do tipo “um país, dois sistemas”, talvez a mais famosa invenção chinesa do final do século XX — a China é, aliás, um dos principais aliados da República Popular Democrática do Laos. O Estado, controlado pelo Partido Popular Revolucionário do Laos, afrouxou as rédeas sobre a actividade económica, embora as mantenha em tudo o mais. A abertura faz-se notar, efectivamente, no domínio da economia, uma vez que subsistem sérios condicionamentos às liberdades política e religiosa, sublinhando o carácter paradoxal do regime. No Laos, a economia de mercado convive com a exaltação de Marx e Lenine nas escolas e o hastear de bandeiras com a foice e o martelo em todos os edifícios públicos.

Esse clima de abertura na esfera económica é perceptível na proliferação de agências a operar na área do turismo, tanto em Luang Prabang como em Vienciana, Savannakhet e Pakse. Em Luang Prabang, a variedade de actividades de ecoturismo e a oferta privada de cursos de formação (culinária, meditação, tecelagem, etc.), dirigidos sobretudo a estrangeiros, não é paradigmática, apenas, de que os tempos estão a mudar num dos poucos países comunistas que sobreviveram da anterior ordem mundial. Sem litoral nem estâncias balneares que possam estimular o turismo de massas, o Laos tem vindo a apostar em duas dimensões centrais da sua identidade: um território povoado por florestas imaculadas, guardiãs de uma notável biodiversidade, e uma sociedade multiétnica que preserva um universo plural de riquíssimas tradições, património que tem vindo a contribuir para a transformação do país num destino privilegiado para o turismo cultural.

O Templo da Cidade Dourada

Luang Prabang cabe na palma da mão. Implantada sobre uma península rodeada por dois rios, o Mekong e o Nam Khan, a parte da cidade que foi classificada pela UNESCO resume-se a uma área de pouco mais de um quilómetro de extensão e uns duzentos ou trezentos metros de largura, delimitada pelos dois rios.

A rua principal tem o nome do penúltimo rei do Laos, Sisavang Vong, interlocutor dos franceses na constituição do vasto protectorado que Paris começou a formar na Indochina a partir de finais do século XIX. O seu herdeiro, o príncipe Savang Vatthana, deu continuidade à cooperação entre potência colonial e país colonizado e pôde manter-se no poder até 1975, quando o Partido Popular Revolucionário do Laos, após uma guerra civil, pôs fim à monarquia, instaurou um regime marxista-leninista e mudou definitivamente a capital política para Vienciana. O palácio real, a meio da Sisavang Vong, foi nessa altura transformado em museu (o actual Museu do Palácio Real) e é exactamente lá que podemos ver o famoso Buda dourado que deu nome à cidade.

A rua Sisavang Vong é um autêntico compêndio de alfabetização dos viajantes em assuntos histórico-culturais. Enquanto caminhamos pela única artéria de Luang Prabang com movimento que mereça o substantivo, cruzando-nos com pequenos grupos de monges, camponeses, carroças, tuk-tuks azuis, bicicletas e turistas, vamos absorvendo uma súmula dos pergaminhos da capital do antigo reino de Lan Xang: os templos antigos de uma cidade onde Buda, em viagem, terá um dia repousado, os centenários rituais do budismo theravada, a mestiçagem do casario, em madeira e integrando elementos locais e arquitectura colonial, os bares onde as marcas vinícolas francesas competem com a Beerlao, a cerveja nacional, a pastelaria gaulesa, o animado mercado nocturno e as geometrias coloridas dos têxteis do Norte do Laos.

Quase a chegar ao ponto de confluência das águas do Mekong e do Nam Khan, do lado esquerdo da Sisavang Vong, encontramos um dos templos mais antigos de Luang Prabang . Há mais de trinta templos na cidade e arredores, mas se acaso não houvesse tempo senão para uma única visita, o eleito seria o Wat Xieng Thong, um edifício religioso datado do século XVI. O complexo ocupa um quarteirão e do outro lado há uma larga escadaria que desce até ao Mekong e que atesta também a sua importância — era por aí que entravam na cidade diplomatas e mensageiros.

O Templo da Cidade Dourada, que era também o espaço usado para a coroação dos monarcas locais, é um edifício bem representativo da arquitectura religiosa de Luang Prabang e do Laos, com muitos elementos característicos, como o telhado curvo em camadas sobrepostas voando com a elegância de uma pena quase até ao chão, um prodigioso trabalho de gravura e escultura e uma exuberante talha dourada, tudo em irrepreensível estado de conservação (num dos templos da cidade, o Wat Xieng Muang, há uma escola onde os monges estudam as artes da conservação). Painéis de uma árvore da vida, na parede posterior do templo, e de cenas religiosas e profanas, em mosaicos, numa das capelas próximas, são belíssimos exemplos da celebrada estética budista de Luang Prabang.

Na capela funerária, do outro lado do pátio, convivem o amor e a morte: na frontaria refulgem figuras de quadros eróticos do Ramayana, enquanto lá dentro se alinham dezenas de estátuas de Buda em hieráticas poses à volta da urna e do veículo funerário utilizado na cremação dos últimos monarcas do Laos. Empinado sobre uma escada, um monge retoca com um pequeno pincel os ornamentos dourados de uma coluna de madeira. Será que fazia parte do grupo de monges jovens que na véspera se entretinha, com festivo bulício e num intervalo dos afazeres ascetas, a arremessar pedras para o Nam Khan?

Phou Sii, o mirante metafísico

Diante do Museu do Palácio Real há um monte, o Phou Sii. E há uma escadaria que nos leva lá acima, numa subida fatigante, por entre estátuas de Buda e de outras figuras das narrativas budistas. O Phou Sii é a única elevação na península e o relevo mais próximo, uma fileira de cerros curvos e baixos, fica na outra margem do Mekong, o que faz com que nada se interponha entre o olhar e o milagre da cidade: entre o casario lá em baixo, só a muito custo se pode descobrir uma nota destoante, seja volume, forma ou cor. A cidade surge admiravelmente acomodada na estreita península e parece estar ali desde o princípio dos tempos (ou, pelo menos, desde a passagem de Buda por aquelas paragens), realizando o feliz destino que o santo homem lhe terá profetizado, com o sorriso que a lenda consagrou.

A vista, ainda: o Mekong, alongando-se para montante e para jusante, as águas lentas, da cor de um barro claro, levemente translúcido, vindas das vertentes longínquas e inacessíveis dos Himalaias e sem pressa para os mais de mil quilómetros que ainda faltam até ao delta no Mar da China; a serpentina do Nam Khan abraçando a península, atravessado pelas pontes de bambu em baloiço sobre a água até que a monção venha e as arraste; as montanhas, ora verdes, ora azuis, rompendo o frágil tecido das neblinas matinais.

O Phou Sii é um mirante, sim, talvez mais metafísico do que turístico, pois a verdade da lenda diz outras cousas que, de tão antigas e de outro tempo, custa ao compreender contemporâneo ouvi-las e delas tomar entendimento. E como saberemos, alguma vez, se os que nelas crêem não terão reencontrado uma sorte de iluminação que, diz a sabedoria budista, se reitera vida após vida? Jamais saberemos, porventura. Ou, quiçá, por (des)ventura. O que agora nos cabe saber é este tanto que aos crentes faz parecer modesto o panorama: ali perto do mirante, no topo do Phou Sii, Buda esteve sentado, talvez meditando, talvez em silêncio sorrindo e adivinhando a vindoura fortuna do lugar, a de ser berço de uma cidade-relíquia.

A história da visita de Buda acrescenta um sentido espiritual a Luang Prabang e possui a verdade transcendente da lenda, matéria tão real e tão viva como a cor de açafrão das vestes das centenas de monges que pouco antes do amanhecer percorrem as ruas, lá em baixo, recolhendo dádivas e reiniciando todos os dias o mesmo ciclo. Uma história que um dia também se apagará — afinal, a natureza do mundo é a impermanência. Por isso foi que se desfizeram impérios e nos ficaram estes montes e estes rios.

A era do ecoturismo

O Laos iniciou um processo de abertura ao exterior a partir de 1986, a par de alterações na esfera do controlo estatal da economia, que culminaram com a garantia do direito à propriedade privada e a consagração da economia de mercado pela Constituição de 1991. Com estas mudanças, iniciadas na sequência do IV Congresso do Partido Popular Revolucionário do Laos, não tardaram a surgir numerosas iniciativas no âmbito do turismo, designadamente do ecoturismo e do turismo cultural. O sector começou por estar reservado ao investimento nacional, mas a partir de 2006 foi aberto ao investimento estrangeiro. O número de turistas cresceu rapidamente, dos escassos 14.000 em 1991 para cerca de 2.000.000 actualmente, segundo estatísticas oficiais. Na estratégia do governo do Laos para o período 2006-2020 — uma espécie de plano quinquenal para o desenvolvimento das actividades turísticas — o turismo cultural e o ecoturismo são segmentos claramente privilegiados, face ao extraordinário potencial do país. Dos cerca de um milhar de sítios recenseados, mais de metade corresponde a sítios com interesse para o turismo de natureza, 250 têm interesse cultural e 160 histórico.

O país tem um relevo bastante montanhoso — à volta de dois terços do território são formados por montanhas e planaltos. Dado especialmente relevante para a biodiversidade que caracteriza o Laos é o facto de cerca de metade da área florestal corresponder a floresta primária, sobretudo floresta tropical húmida. Calcula-se que as zonas mais remotas do Laos possam esconder espécies ainda por descobrir. Recentemente, foi identificada na Reserva Natural de Bokeo, perto de Huay Xai, uma população de gibões, espécie ameaçada que se julgava extinta no país. A reserva esconde também tigres e muitos outros mamíferos.

A região à volta de Luang Prabang é — tal como todo o Centro e Norte do país — privilegiada em termos de potencial para o ecoturismo. Têm surgido nos últimos anos muitos projectos, com benefícios quer para a conservação, quer para a economia das comunidades, uns mais originais do que outros, como é o caso da Gibbon Experience (www.gibbonexperience.org), na Reserva Natural de Bokeo. Os visitantes ficam instalados em cabanas construídas nas árvores, a que têm acesso somente através de cabos aéreos, e beneficiam de um extraordinário posto de observação sem precisarem de se mover através da floresta. A partir de Luang Prabang, as navegações ao longo do Mekong, com passagem pelas grutas de Pak Ou, que acolhe centenas de imagens de Buda, podem ser uma via de acesso à província de Bokeo. Em Luang Prabang pode-se organizar, também, uma visita ao centro de conservação de elefantes de Sainyabuli, perto de Pakbeng. Nas imediações da cidade há umas belas cascatas (Kuang Si).

No Norte, nas províncias confinantes com o Vietname e a China, há outras experiências possíveis. Na Reserva Nacional de Nam Ha, perto da fronteira com a Birmânia, vivem elefantes, leopardos e tigres, embora seja muito difícil avistar estes últimos. Um crescente número de agências, em Luang Nam Tha, organiza trekkings na reserva, entre outras actividades, como canoagem e rafting. Mais a norte, na região de Phongsali, no extremo norte, os trekkings são muito reputados, articulando-se com a prática de alojamento nas aldeias da minoria Akha.

No Sul, em Si Phan Don, o Mekong fragmenta-se numa miríade de braços que faz nascer um arquipélago fluvial com, diz-se, quatro mil ilhas. A designação poética tem sentido para a maioria das ínsulas, mas as duas ou três principais começam a dar sinais de que em breve a voragem do turismo, se não houver uma firme política de regulação, acabará definitivamente com o paraíso. A observação de golfinhos é uma das actividades de ecoturismo, sobretudo quando o caudal do Mekong se reduz — o que começa a ocorrer, justamente, nesta altura do ano.

Turismo cultural: o fio da História

A História do Laos confunde-se, frequentemente, com a dos países vizinhos do Sudeste Asiático e muitos dos vestígios arqueológicos partilham características com os seus congéneres do Vietname, Camboja, Birmânia e Tailândia. Um dos mais eloquentes exemplos pode ser observado nas ruínas khmer do complexo arqueológico de Champasak, situado no Sul do país, perto da cidade de Pakse. Classificado pela UNESCO e contemporâneo de Angkor, integra também as ruínas de um antigo e importante templo hindu, o Wat Phou.

Na Planície dos Jarros, a sudeste de Luang Prabang, sobrevive um mistério com muitos séculos e uma paisagem bizarra. Por uma imensa área encontram-se dispersos enormes artefactos de pedra, que chegam a pesar várias toneladas, registando-se um relativo consenso entre os arqueólogos quanto à sua função, possivelmente a de urnas funerárias. O Laos tem em curso a preparação de uma candidatura da Planície dos Jarros a Património Mundial. No local, os visitantes devem tomar em atenção as restrições de movimentos determinadas pelas autoridades e caminhar apenas nas áreas sinalizadas: entre 1969 e 1974, bombardeiros dos EUA lançaram sobre o Laos milhares de bombas (e muitas ficaram por explodir), numa tentativa de bloquear o chamado “Caminho de Ho-Chi-Minh”, que servia o abastecimento das forças vietcong durante a guerra do Vietname.

No âmbito do turismo cultural, sobretudo no Norte e Centro, as visitas guiadas e as homestays em aldeias das minorias étnicas hmong, akha e khmu, entre outras, têm vindo a ser promovidas por várias agências. Convém sempre avaliar o perfil deste tipo de actividades e a reputação das agências.

O budismo tem expressões arquitectónicas singulares no Laos, de que é exemplo o Templo da Cidade Dourada, em Luang Prabang. Mas além desse, e de outras três dezenas de templos da velha capital do reino de Lan Xang, há muitos edifícios religiosos a merecer a atenção do viajante. Dois exemplos: o Wat Si Sakhet, o templo mais antigo de Vienciana, que conserva uma espantosa colecção de mais de duas mil imagens de Buda em cerâmica e prata, e, naturalmente, o Phat That Luang, também na capital. Com a sua grandiosa e inconfundível stuppa dourada, é desde há muito o símbolo do país, regimes políticos à parte.

Guia prático

Como ir

Não há voos directos de Portugal para o Laos. Hipóteses a explorar são os voos via Paris, com a Air France. A Lao Airlines voa apenas para alguns países asiáticos e tem voos domésticos entre a capital e as principais cidades do país. Uma alternativa pode ser voar para Banguecoque e na capital da Tailândia apanhar um voo para Vienciana ou Luang Prabang, ou, ainda, tomar o Expresso de Nong Khai para a fronteira do Laos. Do outro lado, a meia hora de viagem de autocarro, está Vienciana.

Quando ir

A estação das chuvas decorre de Junho a Outubro, registando-se elevados índices de pluviosidade e de humidade. Estradas intransitáveis em lugares mais remotos condicionam fortemente as deslocações. O período entre Outubro e Fevereiro é a melhor época para viajar, com temperaturas amenas durante o dia, ainda que as noites sejam um pouco frias.

Onde ficar

Uma sugestão, entre muitíssimas outras possíveis, que releva a substância arquitectónica mestiça da cidade e é, ainda, exemplo da localização ideal, com vista para o Mekong: o Luang Prabang River Lodge, na Ban Paxom Khomkong Road, (reservas no site www.luang-prabang-river-lodge.com). Também no segmento de alojamento para backpackers e para orçamentos mais apertados a oferta é ampla. Numa travessa da rua principal, a Th. Sisavangvong, a Sackarinh Guesthouse (tel.: 254412) tem uma dezena de quartos à volta de um pátio. Na ruela há dois simpáticos restaurantes familiares onde se pode provar algumas especialidades gastronómicas do Laos, nomeadamente o làap (uma espécie de salada com vegetais, arroz e carne), as sopas de noodles e tam màak hung (salada de papaia picante).

Informações úteis

Os cidadãos com passaporte português podem obter visto de um mês à chegada, tanto nas fronteiras terrestres como nas aéreas. Mais informações em www.secomunidades.pt. A moeda do Laos é o kip e é possível encontrar máquinas de levantamento automático e casas de câmbio nas principais cidades.

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