Embarcaram cinco mulheres preparadas para a canícula, dispostas a vergar o corpo nas terras ressequidas do Nordeste brasileiro. Viajaram até aos confins do Ceará, onde a pior seca dos últimos 55 anos aflige o povo, incapaz de decidir se está perante um aviso de Deus ou uma cilada do demo.
A seca assombra sítios como Genipapeiro, no município de Milagres, a 473,8 quilómetros de Fortaleza, quase sete horas de carro. Era para lá que se dirigia o último grupo de 2014 a embarcar numa “Aventura Solidária”, projecto de “volunturismo” da AMI – Assistência Médica Internacional.
Não fosse a noite já bem entrada quando aterrámos em Fortaleza, poderíamos ter começado logo ali a desvendar o destino. Ao volante da carrinha, a ouvir o rock dos norte-americanos Red Hot Chili Peppers, estava Cícero Ronaldo Severino Rosa, homem encorpado, de pele curtida, traços caboclos.
Nasceu há 31 anos na caatinga, mata amarelada e seca exclusiva do Brasil, onde tanto há lugar para santos milagreiros e almas penadas como para caiporas, lobisomens e mulas sem cabeça. O nome dele não engana. É sinal de devoção a padre Cícero Romão Baptista, “Padim Ciço”.
Haveríamos de subir ao alto da colina do Horto, em Juazeiro do Norte, para apreciar tal fenómeno popular. Para os mais arrebatados devotos que lá vão, o padre Cícero tem origem divina: 1800 anos depois de ter sido pregado na cruz, Jesus Cristo regressou à Terra como sertanejo.
Era grande a minha curiosidade por tão livres interpretações da fé católica — e nem imaginava que encontraria uma imagem de Nossa Senhora de Fátima com os sete anões aos pés, num jardim interior, numa escola de Milagres. A culpa é de Jorge Amado, que me deu um imaginário de Sertão farto em superstições, movimentos messiânicos, profecias de fim do mundo.
“Vou dizer o que aconteceu comigo”, diz-me Cícero, quando, só para início de conversa, lhe perguntei se o padre homónimo era santo ou impostor. Decorria 1994, era Itamar Franco Presidente, tinha o Brasil acabado de trocar o cruzeiro pelo real, um tio fizera um frete, temera seguir viagem com o ganho e pedira-lhe que o entregasse à mulher, a tia Lucileine.
Cícero recebeu as cinco notas de 50 reais, enrolou-as, guardou-as no bolso das calças. Não foi directo para casa. Parou para comer um caldo. Só fora dali percebeu que ao tirar os 50 centavos para pagar o caldo deixara cair as cinco notas. “Padre Cícero, eu não sei o rezar, eu não sei o pedir promessa, mas eu estou pedindo ao senhor para me ajudar.” O restaurante estivera cheio de trabalhadores calejados e ninguém vira o dinheiro. A dona encontrou-o ao varrer o chão e devolveu-lho. “Milagre!”
Não fora a religiosidade espontânea, nem o afamado humor do Ceará a mover as “aventureiras” — Eda, 20 anos, estudante, Soraia, 21, auxiliar de acção médica, Patrícia, 29, enfermeira, Zélia, 32, enfermeira, Lurdes, 42, economista. Fora, sim, a vontade de ter umas férias diferentes e de ajudar a aliviar a miséria alheia.
Cada uma fizera um donativo de 300 euros e preparara-se para viajar até à Guiné-Bissau. O surto de ébola levara a AMI a cancelar tal “aventura” e a tentar desviar quem nela se inscreva para o Brasil — o Brasil do interior, sem turistas nem praias de areia branca, prova inequívoca de desigualdade.
Não haveria alojamento de luxo. Ficariam num centro de formação do parceiro local da AMI, a Associação Comunitária de Milagres (ACOM). Partilhariam quartos com redes mosquiteiras e chuveiros de água fria. Mal chegaram, uma galinha infiltrou-se num deles e pôs um ovo numa cama.
Não haveria dieta especial. Três senhoras preparariam pratos locais — galinha frita, carne-de-sol (carne bovina salgada e seca), mugunzá (grão de milho cozinho com leite de coco e mão de vaca), mandioca, cuscuz… E que sucesso haveria de fazer o baião de dois (mistura de arroz, manteiga e queijo).
Não imaginava que o apelo da boa conversa, da sonora gargalhada, da saborosa sesta me roubaria o tempo que pensara destinar à leitura. Não levara muitos livros para ler, é verdade. A biografia Padre Cícero, de Lira Neto, não chegara a tempo. Não encontrei Os Sertões, de Euclides da Cunha. Na pequena mala tinha apenas dois livros: um vindo da viagem anterior (Politics in China, de William A. Joseph) e outro talhado para esta (Seara Vermelha, de Jorge Amado).
Seara Vermelha pareceu-me uma leitura adequada, apesar de remontar aos anos 1930. Há um paralelismo entre a seca e a migração hoje notícia e a história de Jerónimo e da mulher, Jucundina, que decidiram partir “em busca do país de São Paulo”, a pé, levando no dorso do burro, Jeremias, todos os seus haveres. E que outro escritor seria capaz de descrever tão bem o Sertão? Graciliano Ramos? Não o conhecia ainda nem ao seu Vidas Secas. Amado era garantido.
Ora veja: “Agreste e inóspita estende-se a caatinga. Os arbustos ralos elevam-se por léguas e léguas do sertão seco e bravio, como um deserto de espinhos. Cobras e lagartos arrastam-se por entre as pedras, sob o sol escaldante do meio-dia. São lagartos enormes, parecem sobrados do princípio do mundo, parados, sem expressão nos olhos fixos, como se fossem criaturas primitivas. São as cobras mais venenosas, a cascavel e o jararacuçu, a jararaca e a coral.”
Tivemos tempo para nos embrenharmos no interior da caatinga, apanhar castanhas de caju e assá-las, visitar vizinhos velhos e desdentados, ver vacas e bois esqueléticos, enfraquecidos, alguns tão enfraquecidos que mal de aguentavam em pé. José Neto, filho de uma das cozinheiras, rapaz de olhos enormes, demasiado pequeno, demasiado delgado, conhecia todos os atalhos e não temia cobras, mandacarus ou arames desses que separam propriedades e rasgam pele.
Não tem pai, o rapaz. O pai foi ganhar a vida para São Paulo e morreu, nem sabe a família como. “Muita gente vai e não volta”, comentou, fingindo não se importar. As suas palavras ecoavam na minha cabeça quando, já no voo de regresso, por fim, pude ler Seara Vermelha. “Muita gente vai e não volta…”
“Ouvem-se, nessas cidades que bordejam a caatinga, as mais incríveis histórias, sabe-se das desgraças mais tremendas, aquelas que nenhum romance poderia conter sem parecer absurdo”, escreveu Amado. “É a viagem que jamais termina, recomeçada sempre por homens que se assemelham aos que os precederam como a água de um copo à água de outro copo. São os mesmos rostos de indefinida cor, os pés gigantescos, de dedos abertos, sobrando das alpargatas, o cabelo ralo, o corpo magro e resistente. As mesmas mulheres sem beleza nas faces cansadas.”
Também nós estávamos a fazer uma espécie de “viagem de espantos”. Também nós estávamos rodeadas de pessoas com “as mais incríveis histórias”. Cada vez que me sentava com alguém, a conversar, percebia isso. Até Cícero, o motorista, tinha, como ele dizia, “uma história bem complicada”.
“Meu pai matou minha mãe à machadada”, contou-me Cícero. Ia nos dez anos. Ele e a irmã ficaram com a avó materna, os dois irmãos com a avó paterna. “Não sei se foi instinto, se foi loucura da cabeça dele.” O homem não se fartava de cachaça. Os filhos mal punham os pés na escola. “Eu só tinha direito de ir para a escola um dia por semana. Trabalhava o dia inteiro na roça. Quando chegava a tardezinha, ia separar o bezerro da vaca para noutro dia tirar o leite. Ai de mim se falasse que não ia. Meu pai batia com chicote. Então eu vejo que a minha mãe morreu para dar vida boa para a gente. Se não tivesse acontecido isso aí, que seria de nós lá na serra?”
Antónia Alexandre Gomes, a mais sorridente das cozinheiras apesar de há uns meses um cancro lhe ter roubado um peito, também tinha uma das “mais incríveis história”. Casou-se mal completou 12 anos. “Eu nunca tinha visto o meu marido.” Viu-o numa cerimónia religiosa. “Fiquei conversando mais ele. Aí, inventaram que eu tinha fugido mais ele. Mãe foi atrás de mim, me encontrou lá”, contou ela, servindo-se do que lhe resta da memória para reconstituir os diálogos.
- Hey, vem para casa – ter-lhe-á pedido a mãe.
- Deixa-me terminar a reza.
- Vamos para casa.
Ao ouvir aquilo, Francisco, o rapaz que estava com ela, interferiu.
- Vamos, que eu vou também.
Quando chegaram a casa, o pai estava “injuriado”, isto é, “com raiva”. Naquele tempo, “um homem não podia mexer na filha dos outros”. Não era como agora que rapazes e raparigas podem namorar ou, pelo menos, ter um “quebra galho”, isto é, um amigo ou uma amiga colorida.
- O que você quer com ela?
- Senhor José, eu quero com ela o que o senhor quiser.
- Pois vou ajeitar o casamento.
- Eu quero casar com ela – retorquiu Francisco, virando-se, de imediato, para Antónia - Você quer?
- Eu quero! Já estou perdida mesmo na boca do povo.
Era uma menina. Só fora menstruada uma vez. “Nem tinha noção de casamento”. Mas casou-se em menos de um ai. E, volvidos nove meses, pariu o primeiro filho. “Foi tira e queda!” Continua casada com o mesmo homem. “Eu tenho 47 anos e ele 51. Sou a mulher mais feliz da vida. Graças a Deus, ele não bebe, não fuma e não sai de casa; eu bebo, eu fumo, eu saio de casa e ele não diz nada!”
Passaram muita privação. No início, não tinham nem um banco para se sentarem. Só uma cama num quartinho emprestado. O marido trabalhava na roça. “Ainda trabalha.” Os fazendeiros pagavam mal. “Ainda pagam.” Conhece bem os valores praticados na região. “Vinte e cinco reais a diária sem almoço e sem merenda. Com almoço e com merenda só é 20.” Para que dá? “Ele cria porco também, assim para ajudar… Cria galinha. Gosta de pescar. Tem dois burros, duas carroças. O pessoal precisa de voltar uma terra, ele vai lá.”
Foi mais pela concentração das terras, pela exploração dos trabalhadores e pelo poder dos fazendeiros do que pela inclemência do clima que nos anos 1930 migraram para São Paulo as personagens de Jorge Amado. Tudo isso se mantém, embora tudo isso tenha sido atenuado, até por acção do programa Bolsa Família (rendimento mínimo atribuído a agregados em situação de extrema pobreza, desde que as crianças tenham as vacinas em dia e não faltem às aulas) e de projectos de desenvolvimento agro-pecuário como aquele em que participavam as “aventureiras”.
Genipapeiro, o sítio no qual as cinco mulheres emprestaram a força dos braços, é uma rua, com uma igreja e uma pré-escola e pouca mais de duas dezenas de casas térreas, algumas sem água canalizada. As famílias têm uma nesga de terra na qual construíram a casa e pouco ou nada mais.
Há uns 20 anos – através da Kindernothilfe (KNH), uma agência de desenvolvimento alemã que se socorre de dinheiros da Alemanha e da União Europeia —, a ACOM conseguiu comprar 10 hectares de terreno em 12 comunidades. Em todas ajudou a formar uma associação de pequenos agricultores. Houve formação, ergueram-se infra-estruturas básicas, adquiriu-se material para produção agro-pecuária.
“Tem comunidade dessa que está totalmente desabitada”, admitiu Lucy Alexandre Lima, da direcção da ACOM. “Cada projecto envolveu 15 famílias, mas as pessoas não podiam esperar. Para sobreviver, tiveram de migrar. Algumas comunidades não têm água nem para consumo humano. Consomem água de cisternas de plástico.” Vendeu-se o terreno nas que se esvaziaram e reinvestiu-se noutras.
Genipapeiro, o “nosso” sítio, também perdeu gente. “Muito chefe de família emigrou”, corrobora Toquinha, a velha presidente da Associação Comunitária dos Pequenos Agricultores. “Teve muita seca. Ficou triste isso aqui – 2011, 2012, 2013. Começou a chover em Janeiro de 2014. Não foi o suficiente. Quando há Inverno mesmo, isso não é seco não”, disse, apontando o leito de um ribeiro.
“Seca é triste”, interrompeu-a Maria Fernanda Félix da Silva, sem deixar de dar de mamar ao filho mais novo, que dali a dias completaria um ano. “Nem tem erva, nem tem pasto, até o ânimo para trabalhar é pouco. A gente só escuta: morreu a vaca de fulano, morreu a mula de sicrano.”
“A gente nunca desistiu de tudo”, retomou Toquinha, mulher magra, pequena, de cabelos brancos, tão empenhada na horta comunitária como na igreja. “A manutenção das famílias sempre a gente teve – coentro, cebolinha, alface. Estamos plantando com a vontade de Deus. Quem sabe Ele não dá a nós produção que dê para comprar uma mula. A gente teve uma. Ela morreu.…”
Recorrendo a “aventuras solidárias”, a AMI está a financiar o projecto de desenvolvimento agro-pecuário do sítio, que já envolveu a compra e a colocação de uma cerca, a perfuração de um poço profundo, a aquisição de dois reservatórios de água, a montagem de um sistema de irrigação, a distribuição de água ao domicílio. Não por acaso, foi ali que as cinco “aventureiras” aprenderam a diferença entre enxada, enxadeco e cavadeira. Puderam não só ver para aonde foi o donativo que fizeram mas também trabalhar um bocadinho no projecto. Durante duas manhãs estiveram a abrir buracos para plantar beringelas e pimentões.
Aquilo era só o recomeço. A associação tem 22 membros e cada um será responsável por um talhão. Não quer isto dizer que o que cada um colher será só seu. Uma parte (60%) será distribuída por todos, a outra parte (40%) será vendida nas feiras locais, revertendo o apuro para um fundo comum.
Não é uma revolução. É uma forma de ajudar a diversificar uma alimentação demasiado baseada no milho e no feijão, como diz Fernanda, que só há pouco se inscreveu na associação. Antes da seca, a bela mulher de 26 anos, um filho de um ano, outro de nove, morou fora. “Eu morei quatro anos em Minas Gerais. Eu queria construir a minha casa e só tinha trabalho lá.”
O marido trabalha numa loja de móveis. A horta comunitária e a Bolsa Família podem ser o suficiente para a família se aguentar. Fernanda não quer migrar outra vez. Gosta de morar em Genipapero. Basta-lhe ir umas horas ao centro de Milagres para ficar com dores de cabeça. Vai pouco. “Uma vez por mês, Bolsa Família. Nalgum caso de doença que aqui não resolve, também vou lá.” Só tem palavras de agradecimento para quem quer que ajude a tornar a vida ali menos impossível.
“A gente vê chegar pessoas de fora. E essas pessoas vêm para trabalhar, para pegar no pesado, para ver como é o trabalho da gente”, comentou Antónia, tentado explicar-me por que lhe agrada tanto ver chegar “aventureiros”. “Essas pessoas ajudam a ACOM e, ajudando a ACOM, ajudam muitas mulheres e muitas crianças.” Os três filhos dela estudaram na associação, que, além de oito projectos de desenvolvimento agro-pecuário, tem unidade de saúde comunitária, educação infantil, ocupação de tempos livres (desporto, música, teatro, apoio escolar) e cursos profissionalizantes.
Não é só o trabalho. É também o convívio – nas tarde, quando o sol convida ao resguardo, mas também nas noites em que “aventureiros” se misturam com a população para ouvir cantoria ou dançar samba, forró ou pagode. “A gente aprende muito. Historias, piadas, tudo fica na mente da gente. Eu converso com você, eu chego a casa, eu deito na cama e eu vou contar para Francisquinho quem é você, como é. Vou dizer que é alegre, que é simpática, que faz isto, que faz aquilo.”
E isso é uma espécie de viagem para quem nunca foi mais longe do que Juazeiro do Norte. E também tem os seus “espantos”.
"Querem ter uma aventura em ambiente controlado"
A primeira coisa que vimos ao sair do centro de formação que nos serviu de casa foi o armazém de tijolo por revestir. Saltámos a cerca de arame farpado e vimos Miguel Figueiredo, sentado no alpendre, a olhar o gado. Nada protegia a sua enorme barriga. Usava apenas uns calções, um chapéu e umas sandálias.
“De boniteza e de vaidade, 68 anos”, apresentou-se o homem, alegre por ver chegar gente nova – dois membros da Assistência Médica Internacional/AMI e seis mulheres, todas com vontade de começar a explorar uma nesga do Nordeste do Brasil, uma das três maiores áreas semiáridas da América do Sul.
Conhece bem as potencialidades do Sertão. E, de sorriso sempre posto, tratou de satisfazer a curiosidade alheia. O filho mais novo, Wesley, nem o ouviu, ocupado que estava com o “Pirata”, o cavalo branco, cego de um olho, que usa na “vaquejada” – vaqueiros perseguem bois a cavalo, conduzem-nos até uma área limitada por faixas de cal e derrubam-nos, puxando-lhes pelo rabo.
Tínhamos chegado muito cedo à Varjota, sítio rural, desertificado, que, assim, de repente, nos parecia o paraíso dos besouros. A “nossa” casa tinha a forma de um “u” e um alpendre que ia de uma ponta à outra e o chão dele estava polvilhado desses pequenos insectos. De onde diabo vinham tantos?
Havia tempo para estar na conversa com o vizinho e, sobretudo, com o grupo. A primeira manhã era de descanso e a primeira tarde seria de festa de boas-vindas na sede do parceiro local da AMI, a Associação Comunitária do Município de Milagres (ACOM), fundada em 1983 por um grupo de mulheres que precisavam de um sítio para deixar os filhos, agora o “gigante” local do terceiro sector.
Acomodaram-se três mulheres numa camarata e outras três noutra. Depressa se partilhava haveres, como as amigas costumam fazer. Só duas se conheciam, na verdade, e essas não se viam há muito: Eda Garcês, de 20 anos, e Soraia Matias, de 21, foram colegas no secundário, uma estuda Psicologia, e está de malas aviadas para Medicina, e a outra é auxiliar de acção médica.
“As pessoas vêm porque são solidárias e porque querem fazer uma viagem diferente”, resumiu Francisca Nemésio, a chefe de missão da AMI, a quem cabia zelar pelo bem-estar do grupo. “As pessoas querem ter uma aventura num ambiente controlado. E a intensidade do que vivem – em grupo e com a comunidade — é forte. Num instante, criam laços que duram para lá da viagem.”
Francisca disse aquilo a pensar em pessoas que embarcaram nalguma “aventura” para o Brasil, para o Senegal ou para a Guiné-Bissau. Falou com algumas — primeiro como “aventureira”, depois como membro da AMI – e tem acesso ao inquérito que muitas preencheram. E eu pude confirmá-lo nas conversas que fui tendo, após as manhãs de trabalho, nas tardes ou nas noites de lazer.
“Queria viajar mas não queria aquele conceito do resort, do contexto modificado”, contou Zélia Ferreira, uma enfermeira, de 32 anos, com muita vontade de viajar. “O meu objectivo era fazer a diferença na vida de alguém que precisasse”, disse, por sua vez, Soraia Matias. Já fizera voluntariado em Portugal, mas queria “trabalhar com pessoas de outras culturas, com outras experiências”.
Costumam ser mais pessoas. A “aventura solidária” da AMI no Brasil não atrai tanta gente como a do Senegal ou a da Guiné-Bissau. Francisca tem algumas teorias sobre o assunto. Desconfia que isso está muito relacionado com a associação mental que há entre África e a pobreza severa, a necessidade extrema, a emergência social. O Brasil é uma das cinco grandes economias emergentes. Perde força a ideia de que ali qualquer ajuda é necessária. E na Guiné-Bissau ou no interior do Senegal também é mais difícil viajar sem rede. “O Brasil é bem mais acessível”, sintetiza. Sobram pacotes turísticos.
A enfermeira Patrícia Martins, de 29 anos, “nem queria acreditar” quando lhe disseram que, por causa do surto de ébola, tinha sido cancelada a viagem à Guiné-Bissau. “E agora? O que é que eu faço?” Estudou enfermagem a pensar em África. Fez voluntariado um ano e meio em Lichinga, na província de Niassa, no nordeste de Moçambique. Trabalhou meio ano em Malanje, no Norte de Angola.
“Por mim, dedicava-se ao voluntariado, mas não posso pensar só em mim”, comentou ela. A família reclama a sua presença. O “volunturismo” parecia-lhe uma forma ajustada de conciliar aquela vontade de ajudar alguém em África com o imperativo de ter um emprego em Portugal.
Tinha férias marcadas. Deixou-se ir, como as outras quatro, para o Ceará, todo inserido na sub-região do Sertão. Duas não viajaram, mas quiseram que o donativo já feito, em vez de congelado, fosse transferido da Guiné-Bissau para o Brasil. Estava viabilizada uma operação com tão pouca gente.
Patrícia esperava fazer mais do que passar duas manhãs a plantar beringelas e pimentões na horta comunitária do sítio de Genipapeiro e outras duas a pintar paredes interiores na unidade de saúde comunitária Hospital Madre Rosa Gattorno, no centro de Milagres, mas não deu o tempo por perdido. “No voluntariado, o mais importante para mim é o contacto com as pessoas”, salientou ela. “Ganho uma energia que me dá para suportar a nossa sociedade uns tempos.”
Soraia ficou tão surpreendida pelo pouco que trabalhou, como pelo tanto que se divertiu, sobretudo na noite em que houve churrasco, vatapá, caipirinha e pagode na Varjota e apareceram as pessoas que mais tempo passaram com o grupo. “Marcámos diferença, não pelo trabalho em si, mas porque fizemos com que várias pessoas saíssem da rotina delas e se sentissem felizes”, entendeu.
Ninguém lhes rouba a sensação de que chegaram “às pessoas reais”. A começar pelo velho Miguel Figueiredo, dono de uma vaca tão magra, tão magra que só com a ajuda de um pau e a força de dois homens ela se levantava de cada vez que era preciso dar de mamar à bezerra. Ele é que explicou, por exemplo, que, quando há uma seca, o gado no Sertão às vezes só tem palma forrageira, uma espécie de cacto sem espinhos, para comer. E tudo piora quando há praga de piolhos-dos-vegetais. Os besouros, sim as criaturas que nos enchiam a varanda, são uma arma. Lurdes Ribas, a “aventureira” economista, não quis sair da Varjota sem se despedir dele.
Nada tocou Zélia como um percurso a pé pelo “morro” de Milagres: “A sujidade, as características das casas, a postura das pessoas são coisas que os meus olhos é que viram.” No fim, já em Fortaleza, onde a aventura termina com um passeio de buggy nas dunas de Cumbuco, Eda Garcês perguntava-se qual seria o efeito de tudo aquilo. Tudo aquilo era um instante que se prolongaria nas suas vidas, como dizia Patrícia, mas como? “Tenho tido uma vida muito privilegiada. Não sei como vou reagir quando chegar a casa. Não sei se vou ser mais comedida…”
A Fugas viajou com o apoio da TAP Programa “Aventura Solidária”
Fundação AMI - Assistência Médica Internacional
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1959-003 Lisboa
Tel. 218 362 100
E-mail: fundacao.ami@ami.org.pt
Internet: www.ami.org.pt
Guiné-Bissau
20 a 28 Março
300€ (donativo) + 1.650€ (viagens, alojamento, pensão completa, seguros…) = 1.950 €
Senegal
24 de Abril a 1 de Maio
300€ (donativo) + 1.440€ (viagens, alojamento, pensão completa, seguros…) = 1.740 €
Brasil
7 a 15 de Agosto
300€ (donativo) + 1.440€ (viagens, alojamento, pensão completa, seguros…) = 1.740 €
O volunturismo é um neologismo que dá nome a uma nova tendência global: uma mistura de voluntariado com turismo. Diz a Organização Mundial de Turismo que o seu crescimento é lento, mas sustentado. Volunturistas partem, sobretudo, da Europa e dos Estados Unidos, e vão, sobretudo, para a América Latina (Peru, Cuba, Honduras, Bolívia, Equador, El Salvador, Nicarágua, Brasil, México de Guatemala), para África (Marrocos, Senegal, Tanzânia e Mali) e para a Ásia (China, Camboja, Taiwan, Índia). Não é uma forma barata de viajar, uma vez que quem vai paga todas as suas despesas ou grande parte delas. Será uma outra forma de viajar. Trabalha uma parte do tempo, sente-se útil por isso, e com o que tempo que lhe sobra visita os pontos turísticos da zona e convive com a comunidade que o acolhe.
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