Fugas - Viagens

  • Miguel Manso
  • Miguel Manso

A Lisboa de Gisela João

Por Maria João Lopes

Nasceu e foi menina em Barcelos. Diz que foi no Porto que se fez adulta e em Lisboa mulher. Se pudesse, a fadista vivia uma semana na capital, outra na Invicta e outra no Rio de Janeiro. Mas é na cidade do Tejo que mora agora e é nela que cumprimenta as pessoas, canta-lhes versos dos fados quando anda pelas ruelas ao sol.

Gisela João não se esqueceu da data: 1 de Agosto de 2010. Depois de um concerto em Viana do Castelo, a fadista meteu-se no carro com os técnicos de som, de luz e o produtor, passou pelo Porto, pegou nas malas, na gata Mimi e, juntos, fizeram-se à estrada. Nessa noite, dormiria em Lisboa. E na noite seguinte também. E em todas as outras a seguir.

Chegaram a Lisboa já passava das seis da manhã, “cansados”. O apartamento da amiga, onde ia passar a primeira noite, era num quinto andar: “Eles tiveram de levar as minhas malas todas até lá cima”, recorda. “Fizemos a viagem de madrugada. A Mimi a miar… A minha gata foi a minha grande companheira no primeiro ano em Lisboa. Se não fosse ela, acho que me tinha ido embora. Não conhecia assim muita gente”, lembra.

Estamos no Castelo de São Jorge: “A vista é linda”, diz. Como já viveu na Mouraria, o castelo foi um dos primeiros sítios que descobriu. “À tarde sentava-me aqui a ler, a bordar…”. Já foi madrinha da marcha do castelo. “Havia aqui um festival de fado, vinha assistir, cheguei a cantar aqui.” Ao longe, vê-se o casario, a Ponte 25 de Abril, o rio largo.

Hoje, Gisela João continua a gostar da companhia de gatos, espanta-se com todos os bichos que, dentro do castelo, passam por ela, mas já conhece muitas mais pessoas. Sai pouco, não tem uma vida tão boémia como a que tinha no Porto. Mas nessa altura não era ainda a Gisela João que é agora, que muita gente conhece nas ruas. Hoje não se deita tarde por causa da voz, justifica que não pode dizer às pessoas que apanhou uma gripe, o público pagou bilhete. O trabalho é uma “obsessão”. E Lisboa foi a cidade das conquistas, dos grandes reconhecimentos, viu o seu disco de estreia ser aclamado o melhor álbum português de 2014 por muitos críticos, e Lisboa foi também a cidade de novas amizades. Foi nela, por exemplo, que conheceu Camané, que a fadista ouve “como quem bebe água”: “Ficámos amigos.” Falar do que conseguiu ainda a embaraça, diz que parece que não está a contar a sua história, só depois é que se apercebe: “Espera lá, aconteceu mesmo comigo.”

Tem 31 anos e parece uma menina. Ali, no castelo, nem lhe custa admitir que gosta daquele imaginário, dos reis e das rainhas. “Como adoro histórias de princesas, isto era um sítio espectacular, porque vivia perto.” Faz bonecas de panos, tem uma na casa de fados Maria da Mouraria, onde também ajudou na decoração. Gosta de sair de casa de manta, estica-a e deita-se no Castelo de São Jorge — descobriu que, morando em Lisboa, não paga nada para entrar —, deita-se na relva do Jardim da Estrela, lugar para onde a podem convidar para tomar café todos os dias, no Miradouro da Senhora do Monte. Ali fica a fazer bonecas, bordados, tricot, crochet. “Ponho uma manta no Jardim da Estrela, espalho as linhas e os tecidos ao sol e passo a tarde a bordar. Fazia isso no castelo, com a vantagem de o castelo ter gatos. Mas no Jardim da Estrela há flores, adoro o verde. Talvez por ser minhota, adoro aquele jardim, é muito calmo. Levo um saquinho com pão seco para dar aos patos e uma cesta tipo piquenique, ponho música alta, tipo mitra mesmo, com o fado a sair das colunas do iPhone.”

No final da manhã, depois de um passeio a pé que começou no Castelo de São Jorge, passou pela Mouraria, pelo Miradouro da Senhora do Monte, entre outras passagens, acabaria por contar que é no Martim Moniz que compra o material que precisa para fazer o artesanato. Em Lisboa, sai à rua e vê “gente de todos os países”, sobretudo no Martim Moniz: “Dá-nos uma sensação de liberdade e de estarmos no mundo. Entras numa loja e cumprimentas um chinês, depois um indiano.”

Homem, mulher

Gisela João nasceu e foi criada em Barcelos: “O que me falta cá é a quantidade de verde do Minho, aqui não há tanto”, diz. Apesar de ter vivido seis anos no Porto, acabou por aterrar em Lisboa, por razões profissionais. “Vim para Lisboa por causa do trabalho, fui convidada para cantar no Sr. Vinho. Fala-se muito de descentralização, mas Lisboa continua a ser a cidade das oportunidades.”

Diz isto mas sem nostalgias. Sente-se bem nas duas cidades, no Porto, em Lisboa. Diz que uma é o homem, a outra a mulher: “Acho que Lisboa é uma mulher, com luz, cor, gargalhadas. E o Porto um homem, com mais carisma, mais sombrio, mais pedra.”

Já viveu nas Mercês, na Mouraria, agora está a morar na Praça das Flores. “Adoro aquela zona, tudo o que tenha jardins por perto, adoro.” Todos os dias sai para um passeio de bicicleta ou para uma corrida, vai do Cais do Sodré até Belém: “De manhã, quando saio, penso, caramba, isto é mesmo bonito. Até ando a desafiar os meus amigos para fazermos de conta que não vivemos cá, para arrendarmos uma casa e andarmos a passear como os turistas”, vai contando.

À medida que passeamos, não são só os gatos que a enternecem. Os miúdos também. É deslumbrada com o sol, os detalhes, é informal e fala com toda a gente com familiaridade, como se conhecesse as pessoas há muito tempo. Nem se dá por ela quando já é hora de almoço.

Apesar de já ter abraçado Lisboa, o Porto continua-lhe entalado na retina: “O Porto tem um carisma. Qualquer pessoa que chega à Ribeira vê aquela pedra, é muito impactante, as ruelas. Aqui o Tejo parece o mar. Mas eu adoro Lisboa.” Ainda no castelo, debruça-se sobre a muralha e aponta: “Adoro isto, estes telhados de Lisboa de que se fala em algumas letras de fados. Estas águas-furtadas. É lindo, é muito lindo.”

Se pudesse escolher, vivia uma semana no Porto, outra em Lisboa e outra no Rio de Janeiro. Gosta do clima da cidade brasileira, é pessoa “de pouca roupa, de andar todo o dia de saia, calções e t-shirt”. Mas foi no Porto que se tornou adulta: “Tornei-me senhora das minhas contas, da casa, fiz-me adulta. Quando vim para Lisboa, consegui deixar aquilo tudo que tinha construído e construir de novo, tornei-me mulher.”

A vida no Porto também “era mais leve”: “Cantava de vez em quando, as pessoas não sabiam quem eu era, não havia expectativas. Aqui a vida é mais profissional. No Porto, conhecia mais tascas, mais sítios de boémia. Aqui são sítios mais turísticos, em que venho sozinha, mais contemplativa. E também sou um bocado obcecada com o trabalho. Já não vou beber um copo há muito tempo. A tua voz ressente-se mesmo que te deites à uma e meia da manhã. É o suficiente para a tua voz não estar bem.”

O dia não podia estar mais soalheiro para Gisela João falar do céu aberto de Lisboa. Com muita luz e gente nas ruas. Canta para as pessoas no meio da rua, ri-se. “Está um dia lindo”, espanta-se, de vez em quando. E conversa muito, gosta de contar histórias. “Como boa minhota, falo que me desunho.”

E conta logo um episódio engraçado que lhe aconteceu num táxi. Depois do Natal, quando chegou a Lisboa, vinda de Barcelos, entrou no táxi e exclamou: “Que bom tempo!” Em Barcelos “estavam quatro graus às três da tarde”. O taxista discordou: “Bom tempo? De onde é que vem? De Barcelos? Ah, a terra da fadista, da Gisela João, não sabe quem é? Ela foi a revelação, não se apercebeu?”. Gisela João alinhou: “Ai é? Ela é boa?” O taxista garantiu-lhe que sim: “Ela é assim pequenita, mas tem cá um vozeirão.” Quando chegou a altura de passar o recibo, a fadista disse-lhe o nome, duas vezes: “Gisela João.” Ele não percebeu e deixou esse espaço branco. Insistiu apenas: “Ponha o nome na Internet e vai encontrar as músicas dela.”

Há outras histórias em táxis. Uma vez o taxista pediu-lhe para falar mais baixo, que aquilo não era “nenhum escritório” e ele queria pôr mais alto a música Mariquinhas que estava a passar no rádio, cantada por ela. “Gosto muito desta menina”, admitiu-lhe, sem saber que a transportava. Mas houve um que se apercebeu e até ligou para a mulher: “Sabes quem é que tenho aqui no táxi comigo?”.

“Chiu”

Vamos passeando por Lisboa até pararmos no Miradouro da Senhora do Monte, o preferido de Gisela João. Mas há muitos sítios de que a fadista gosta. O Terreiro do Paço, por exemplo, porque é bonito. Santa Apolónia, porque lhe lembra os tempos em que ainda não vivia em Lisboa, mas chegava a Lisboa. Vinha ter com o fado e ficava ali à espera que a fossem buscar. A Mouraria também lhe diz muito, porque já viveu ali e os moradores apadrinharam-na “completamente”. Já tem menos ligação a Alfama: “Ia à Tasca da Bela. E gosto de ao sábado passear pelas vielas de Alfama. Mas sempre tive mais ligação à Mouraria, conheço melhor.”

E não se importa nada que a mandem calar nas casas de fado: “Cantava no Sr. Vinho, eu vivia praticamente lá. Adoro a Maria da Mouraria, A Bela, em Alfama, a famosa tasca do Nelo, na Rua das Pretas. Quando me mudei para cá, esses ‘chius’ nas casas de fado sabiam-me tão bem. E acho que esses ‘chius’ devem ser uma experiência para os turistas. Depois, vês ali um senhor ao balcão e, de repente, ele vai cantar e toca as pessoas todas à volta, acho isso incrível.”

Apesar de admitir que, em Lisboa, o fado está por todo o lado, o Porto também o tinha: “Em Lisboa, andas pela rua e tens fado a sair de uma janela. Na Mouraria havia duas senhoras que estavam sempre com o rádio no fado. No Porto, não tens um circuito tão grande como aqui, mas também tens um circuito de fado muito interessante, muito underground, que tem muita piada.” E fala de uma “danceteria”, acha graça à palavra, onde há noites de fado. E de um outro lugar, também num centro comercial, por onde tem de se entrar por uma garagem. E da tasca da D. Piedade, que se zanga com ela quando Gisela João lhe aparece lá com jornalistas sem a avisar — queria ter podido ir ao cabeleireiro.

Apesar de tudo isso, porém, foi em Barcelos que a relação com o fado começou: “A primeira vez que ouvi fado tinha sete anos, ouvi na rádio em Barcelos. Na escola primária, cantava fado [nas festas]. Vestia-me de Amália, pintava os lábios de vermelho e obrigava a minha mãe a fazer-me caracóis. Depois, como tinha o cabelo muito liso, chorava e ficava toda borratada.” Ainda em Barcelos, recorda-se de o senhor da loja de discos que havia num centro comercial lhe gravar fado em cassetes. Ela não podia comprar os álbuns, mas levava-lhe as cassetes virgens e ele fazia-lhe a vontade.

Agora Gisela João anda em ensaios. Aproximam-se dois grandes concertos: 23 de Janeiro no Coliseu do Porto e 31 de Janeiro no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Os cartazes já andam pelas ruas. Na Mouraria, cumprimenta um senhor que lhe diz: “Está tudo bem contigo, filha? Vou ver o teu espectáculo.” E, quando entra na tasca típica A Parreirinha da Mouraria, garantem-lhe: “A Mouraria vai em peso ao teu concerto.” Gisela João ri-se: “Eu vou gritar, onde é que está a Mouraria?”.

Não esconde que está nervosa com os espectáculos que se aproximam: “Dá-me sempre vontade de ir à casa-de-banho quando já não posso e os músicos já estão em palco.” Mas a avaliar pela festa e pelos cumprimentos na rua, vai ter muita Lisboa a vê-la. A fadista que, se escolhesse uma música para a banda-sonora da sua relação com Lisboa, seria: “Quando eu partir/ reza por mim,/ Lisboa,/ que eu vou sentir, /Lisboa,/ penas sem fim,/ Lisboa./ Saudade atroz/ que o coração magoa/ e a minha voz entoa/ feita canção,/ Lisboa.”

--%>