Didier Damien ergue o pequeno copo de limoncello e, ao mesmo tempo, faz subir o olhar, fitando à direita e à esquerda, como um holofote.
- Quer mesmo saber a minha opinião? Mas é uma opinião pouco objectiva, talvez tendenciosa.
É a minha vez de abarcar a praça mergulhada numa paleta de cores, de sentir os cheiros e de escutar os sons, todas as conversas ambulantes que não são, àquela distância, mais do que murmúrios indecifráveis.
- Nasci aqui, cresci aqui e aqui vivo há 55 anos. Conheço as pessoas e as pessoas conhecem-me.
Volta a levantar os olhos, conduzindo-os pelos prédios que abraçam a Grand-Place, como se neles visse espelhados espectros do passado.
-Mas…
A voz do altifalante anuncia o encerramento do ringue de patinagem e, por momentos, enquanto observo as crianças caminhando com alguma tristeza na direcção dos pais, deixo de escutar Didier Damien.
- … ainda há muito para fazer.
O frio penetra nos ossos, entranha-se, não fosse essa pequena contrariedade, por ali ficaria, entretido no diálogo e emoldurado pela praça que fascina qualquer viandante que, uma vez chegado a Mons, tem a felicidade de pousar o primeiro olhar na sua beleza arquitectónica. Regresso ao hotel, apenas escutando os meus passos sobre o empedrado da rua, mas não resisto a entrar num bar, atraído por um conjunto de fotografias no interior, preenchendo uma parede inteira que serve de fundo a um homem e a uma mulher, ambos solitários, tendo apenas por companhia um copo de cerveja.
-Não perca a exposição. Amanhã, ao meio-dia, estarei à sua espera.
Despeço-me de Marat Kamalov, artista de origem russa residente em Mons e principal mentor da mostra Rumores Urbanos, com a promessa de um encontro no dia seguinte. O homem e a mulher, separados por menos de um metro, eternamente solitários, olham o tampo da mesa como se nele estivesse desenhado o mapa dos seus desejos ou o espelho onde pudessem ver, não a sua imagem reflectida, mas uma companhia para uma noite que se anuncia fria e se escapa pelas janelas. Saio para a rua silente e banhada pela escuridão, os olhos vagueando por uma estrutura bizarra que não consigo definir e que me envolve como se me quisesse proteger das baixas temperaturas que me levam a apressar o passo, como se aquela rua não me conduzisse ao hotel mas ao céu.
O primeiro contratempo
A manhã ainda despertava, uma luz pálida pairava sobre os telhados e, movido por uma ansiedade eufórica, tão característica da minha existência, percorri o caminho de volta, até ao ponto em que me deixara derrubar pelo cansaço, como um pugilista que, sem ver, nada mais ergue do que o olhar, perscrutando uma névoa que se adensa. O que não era, à ténue luz da noite, mais do que uma construção invulgar, revelava-se agora, aos primeiros raios do dia, uma manifestação artística que me obrigava a fitá-la, no meio da rua e de tanta quietude, com um fascínio que teimava em não me largar. À minha esquerda, o mesmo bar, agora fechado, mas a recordação bem viva do homem e da mulher, órfãos de companhia, das fotografias na parede, retratos de alguns dos passos que resultaram na obra que se me oferecia à contemplação.
Um conjunto de traves de madeira sobe do solo e serve de suporte a centenas de tábuas, umas na sua cor original, outras pintadas de tons avermelhados, dispostas de forma aleatória, como uma espécie de cobertura. Só então reparo, sobre o passeio, nas letras desenhadas a negro sobre um fundo branco – “cities like open air museums, The Passenger by Arne Quinze”. A instalação, com um custo total de 400 mil euros, foi inaugurada oficialmente no dia 2 de Dezembro e, supostamente, deveria permanecer na Rue de Nimy até 2019. Mas na noite de Natal, agentes da polícia, passando pelo local numa simples missão de rotina, ouviram um ruído estranho, a que se seguiu, pouco depois, o colapso parcial da obra do artista conceptual flamengo, 43 anos, famoso pelos seus trabalhos invulgares e polémicos, como Uchronia: a message from the future (Nevada, 2006), Cityscape e The Sequence (Bruxelas, 2007 e 2008), Traveller (Munique, 2008), The Visitor (Beirute, 2009) e, entre outros, Red Beacon (Shanghai, 2010). Aparentemente, a queda terá resultado de um defeito num dos pilares de apoio, provocando uma reacção em cadeia. De imediato, procedeu-se à reparação dos estragos mas os ruídos persistiam, motivando queixas da população residente e, uns dias mais tarde, registou-se um segundo colapso daquela que também já era conhecida como gigantesca floresta de fósforos, o que levou a polícia a fechar aquela artéria, uma das mais movimentadas do centro histórico de Mons.
Uma contrariedade para a organização de Mons-2015 — precisamente a um mês da abertura oficial do programa — que, sem tempo para solucionar o problema, optou por remover a instalação, uma situação inédita na vida de Arne Quinze, que já produziu mais de 30 trabalhos um pouco por todo o mundo. “Não tenho palavras: é como se tivesse perdido um filho”, admitiu Arne Quinze à imprensa local, ao passo que Yves Vasseur, curador das celebrações da capital cultural, se manifestou optimista, desdramatizando o contratempo: “Mons 2015 consiste em 300 projectos. Ainda pode ser um sucesso com os restantes 299.”
De Van Gogh a Verlaine
- Mons? Nunca ouvi falar!
Johanna Kuijt e, como ela, muitos holandeses — bem como flamengos — terão esta resposta na ponta da língua quando se fala na cidade belga. A explicação é simples: para uns e outros, a urbe da região da Valónia é conhecida por Bergen. Uns e outros — e um pouco por todo o lado — talvez desconheçam, de igual forma, que Vincent van Gogh viveu durante dois anos, entre 1878 e 1880, em Borinage (região industrial de extracção de carvão, a sudoeste de Mons, actualmente inoperacional) e em Mons, onde colocou um ponto final na sua actividade como pastor para de dedicar — durante dez anos, até à sua morte, em 1890 — à vida de artista. Orgulhosa do passado do pintor holandês na província de Hainaut, Mons presta-lhe tributo com uma exposição entre 25 de Janeiro e 17 de Maio em que poderão ser apreciados 70 quadros e desenhos provenientes de diferentes colecções internacionais e algumas cartas originais escritas por Van Gogh em Borinage e em Bruxelas, manuscritos raras vezes apresentados ao público.
Os indefectíveis seguidores da vida e obra do artista têm ainda outro motivo forte para visitar Mons: a curta distância da cidade, em Cuesmes (autocarro n.º 1 parte da estação de caminhos-de-ferro e em menos de dez minutos chega à praça principal daquela localidade), encontra-se a casa onde viveu Vincent van Gogh entre Agosto de 1879 e Outubro de 1880, em ruínas no final da década de 1970 mas alvo de restauro e aberta ao público desde 2007 como memória viva do que foi o homem antes de se tornar uma figura célebre e mundialmente conhecida. Se a casa, novamente alvo de restauro e com reabertura prevista para Fevereiro, não for, por qualquer motivo, ao encontro das suas ambições, nada melhor do que conciliar a visita com um passeio pedestre ou de bicicleta pelos lugares que evocam a vida e o trabalho do pintor, pelo meio de uma paisagem repleta de serenidade.
Mons, cidade das artes, não esquece os seus filhos adoptivos e entre eles, além de Vincent van Gogh, encontra-se Marguerite Yourcenar, a escritora belga que mais tarde (em 1947) acabaria por se tornar cidadã norte-americana. Quase 30 anos após a sua morte, a cidade presta homenagem à autora de, entre outros, O Labirinto do Mundo, uma trilogia auto-biográfica que não esquece as raízes da sua mãe (o pai era originário do Norte de França), nascida na província de Hainaut, com uma exposição (e um livro) intitulada Marguerite Yourcenar. Du Hainaut au Labyrinthe du Monde, a decorrer, até 29 de Março, no hall do Palácio Provincial — e, como no caso de Vincent van Gogh, também estarão disponíveis, até ao último dia da mostra, excursões aos lugares que inspiraram a escritora na sua trilogia familiar.
Um dos mais talentosos e populares poetas franceses, Paul Verlaine (1844-1896) está também intimamente associado à cidade de Mons. Casado com Mathilde Mauté, experimentou, pouco depois, uma relação escandalosa e turbulenta com o também poeta Arthur Rimbaud (1854-1891), sobre quem haveria de disparar, num hotel de Bruxelas, dois tiros que o atingiram no pulso. Condenado a dois anos de prisão, Paul Verlaine começou por cumprir a pena na capital belga mas dois meses mais tarde foi transferido para a cidade da Valónia, onde, além de se ter convertido ao Cristianismo, escreveu algumas das suas obras-primas — e é sobre estes dois anos (mas não só) de detenção em Mons que se foca a exposição (entre 17 de Outubro e 24 de Janeiro de 2016, na BAM, Beaux-Arts Mons) Verlaine, Cela 252, Turbulência Poética, com uma exibição de cartas, fotografias e manuscritos originais, pinturas, esculturas e documentos oficiais.
Os anjos de Mons
O lugar do primeiro e do último — assim é definida Mons, manchada de sangue durante a I Guerra Mundial, com toda a sua ressonância mítica e real. A cidade foi palco da primeira morte de um inglês (John Parr) e do último (George Ellison) — na verdade o último a morrer durante o conflito foi um canadiano (George Price), também em Mons. Se esta é a parte que entronca na realidade, a Lenda dos Anjos de Mons integra-se no mundo mítico, contando a história da infame noite de 23 de Agosto de 1914, quando os ingleses se viram na iminência do cerco alemão, perante a marcha avassaladora de dois regimentos já às portas da cidade. À meia-noite em ponto, reza a lenda, um grupo de anjos armado como arqueiros desceu dos céus e deteve o avanço das tropas germânicas, salvando os ingleses de uma possível aniquilação e, ao mesmo tempo, permitindo-lhes uma retirada em segurança. Para que os tristes e sangrentos acontecimentos não se percam na memória das memórias, o Mons Memorial Museum convida todos os visitantes para uma exposição, com início na Primavera, que traça o destino de homens e mulheres que foram testemunhas da turbulência vivida na Europa e dos soldados e do seu quotidiano, durante a I e a II Guerra Mundiais.
Contando com pouco menos de 100 mil habitantes, Mons não vive apenas do passado e das suas memórias mas sente um carinho muito especial pelo seu património, mundialmente reconhecido pela UNESCO. Se os arquivos de Mundaneum – baptizados pela imprensa como “Google de papel” por constituírem, de facto, uma espécie de percursor da Internet —, com os seus seis quilómetros de documentos, estão inscritos no registo Memória do Mundo daquela instituição, as Minas Neolíticas de Spiennes, a Ducasse de Mons, também designado Doudou (um festival popular com raízes na Idade Média e cujo ponto alto ocorre no Domingo da Santíssima Trindade), o Grand-Hornu, antigo complexo industrial mineiro, e o Campanário da cidade integram, todos eles, a lista da UNESCO.
Transponho a porta principal do Hôtel de Ville, com a sua impressionante fachada em estilo gótico, e embrenho-me por algumas das suas salas, onde uma panóplia de artigos exposta para venda ao público revela a criatividade de artistas locais. Através de uma das janelas, deito um olhar sobre a Grand-Place, vivendo a sua azáfama dominical, e logo depois passeio serenamente pelo Jardin du Mayeur, um território de paz onde reina o silêncio, o mesmo que me acompanha por ruas ainda banhadas de sombra até chegar ao Campanário, o único em estilo barroco em todo o país, erguendo-se imponente a uma altura de quase 90 metros e com o seu carrilhão de 49 sinos.
A panorâmica sobre a cidade, com os seus bonitos telhados e elegantes edifícios, alguns deles do século XVI, bem como o cheiro da relva viçosa que envolve parcialmente o Campanário (levantado entre 1661 e 1672, a partir da Primavera irá acolher um centro de interpretação dedicado à sua história) e o ar puro da manhã, convidam a ficar por ali mas Mons tem muito mais para oferecer e recusa-se a parar no tempo — cinco museus serão inaugurados em breve, assim como um centro de congressos com a assinatura de Daniel Libeskind e uma futurista estação ferroviária com a marca do arquitecto Santiago Calatrava (ambos ligados aos trabalhos no Ground Zero de Nova Iorque).
O sol desce no céu azul e a Grand-Place fervilha de vida. Meninos e meninas equilibram-se precariamente nos seus patins, sulcando a neve que se semelha a um bolo de noiva no meio da multiplicidade de tons das casas que o envolvem.
- Outra vez por aqui? Parece que está a gostar!
As palavras retiram-me da meditação, viro-me e o meu olhar encontra o rosto de Didier Damien emoldurado por um sorriso.
- Com um tempo destes, começo a pensar que não falta fazer nada em Mons.
Ao fundo, recortando-se num dos extremos da praça, um cartaz.
En 2015, je suis montois. Et toi?
GUIA PRÁTICO
Quando ir
Mons pode ser visitada em qualquer altura do ano mas os meses que, em média, proporcionam melhores temperaturas (23 graus) são os de Julho e Agosto, curiosamente aqueles em que, a par com Dezembro, ocorre maior precipitação. A cidade, como um pouco por toda a região da Valónia, beneficia de um clima temperado e chuvoso devido à sua localização junto ao Mar do Norte.
Como ir
O aeroporto de Bruxelas-Charleroi, a escassos 45 quilómetros, é o mais próximo de Mons, um trajecto que, de comboio, se cumpre em pouco mais de uma hora (20 euros) ou em metade do tempo se optar por alugar um carro ou preferir utilizar táxi (aproximadamente 100 euros). A Ryanair efectua a ligação entre o Porto e aquela cidade belga por uma tarifa a rondar os 50 euros (ida e volta) mas, desde Lisboa, os voos da companhia aérea irlandesa servem o aeroporto de Bruxelas Zaventem, a 80 quilómetros de Mons, também por cerca de 50 euros. Uma vez mais, o comboio é a forma mais fácil para chegar a uma das capitais europeias da cultura, um percurso de uma hora e vinte minutos e com um preço (por trajecto) de 17 euros. Outras companhias, como a Brussels Airlines e a TAP, também fazem a ligação entre Lisboa e Bruxelas mas, tendo como base de comparação a última semana de Janeiro, proporcionam tarifas menos em conta.
Onde comer
Um dos melhores restaurantes em Mons, situado mesmo na Grand-Place, é o La Petite Provence (www.petiteprovence.be), com cozinha francesa, decoração moderna e uma atmosfera acolhedora. Está aberto todos os dias, entre as 12 e as 14h30 e entre as 18h30 e as 23h (sextas e sábados encerra às 24h). Sendo um dos mais procurados em toda a cidade, especialmente ao jantar, o ideal é reservar com alguma antecedência, o que poderá fazer através do número 0811 080 940.
Há outros dois espaços que, com um pouco de tempo em Mons, não deverá perder: o primeiro é o iCook (www.restaurant-icook.be), na Avenue Reine Astrid, 31 (nova localização), um restaurante microscópico (fundamental efectuar reserva) com uma cozinha francesa de grande qualidade, e o L’Art des Mets (www.artdesmets.net), na Rue des Clercs, 9, com uma gastronomia contemporânea original e audaciosa e um ambiente simples e caloroso.
Onde dormir
Actualmente em obras para aumentar a capacidade de oferta, o Hotel Lido (www.lido.be), do grupo Best Western, é uma das melhores opções em Mons, beneficiando, ao mesmo tempo, da sua localização (não mais de dez minutos a pé da Grand-Place), na Rue des Arbalestriers, 112. Um quarto duplo custa, durante o fim-de-semana, 79 euros (99 incluindo pequeno-almoço) mas durante a semana o preço dispara para 114 euros (mais 20 em regime de pequeno-almoço). É importante ter em conta que se trata de um espaço 100% livre de tabaco — a multa para os prevaricadores é de 180 euros.
A cidade oferece outras alternativas, como o central Hotel Dream (www.dream-mons.be/fr), uma antiga capela situada na Rue de la Grande Triperie, 17, um quatro estrelas de categoria superior com tarifas, para um quarto duplo, de 70 euros, bem como o Infotel (www.hotelinfotel.be/en), a menos de cem metros do coração da cidade, na Rue d’ Havré, 32, onde um duplo, incluindo pequeno-almoço e parque privativo, custa aproximadamente 90 euros.
Para orçamentos mais reduzidos, nada melhor do que o Auberge de Jeunesse (www.lesaubergesdejeunesse.be), na Rompe du Château, 2, onde uma cama em dormitório custa entre 18 e 28 euros e um quarto individual entre 30 e 46 (há diferentes tarifas consoante a época do ano).
Informações
Os cidadãos portugueses apenas necessitam de bilhete de identidade, cartão de cidadão ou passaporte para visitar a Bélgica. A moeda é o euro. Em Mons, o francês é a língua dominante mas quem preferir o inglês não encontrará qualquer dificuldade de comunicação. A embaixada de Portugal é em Bruxelas, na Avenue de Cortenbergh, 12, funcionando entre as 9h e as 16h durante os dias úteis. Para mais informações sobre o programa de Mons 2015 aconselha-se uma consulta em http://pro.mons2015.eu/sites/default/files/files/Timeline.