Bill refastela-se numa cadeira cinzenta de realizador de cinema com um monóculo apontado ao mar. Afasta-o do olho de quando em quando, para limpar névoas e descansar o braço, e quando volta a cabeça diz: “Este é um dos melhores spots.” Para quê? “Observar aves. O que mais poderia ser?” Olhamos ao redor e os criadores de cinema multiplicam-se pela praia. Homens, mulheres, sentados em círculo ou sozinhos, com botas pesadas ou calções de quem se anda a aventurar em mergulhos. Ao fundo, uma linha deles caminha com os monóculos pousados sobre os ombros, como caçadores vindos da montanha com espingardas vazias. Chegam da vila de Cley-next-the-Sea, atravessam as pastagens, embarcam num tom coordenado assim que pisam o cascalho rítmico da praia.
De olhar distante, Bill explica que a costa Nordeste de Inglaterra é um lugar de parques naturais, de pesca de rio e de mar, de pessoas que se entretêm na calmaria das caminhadas e na contemplação dos pássaros. A linha de observadores desaparece em travessas de madeira e trilhos de terra: são os caminhos da Natural England, que, no condado de Norfolk, ultrapassam os 1900 quilómetros e crescem de ano para ano, entre planícies, florestas e areais demorados. David Yates, do Departamento do Ambiente, Transportes e Desenvolvimento de Norfolk, conta-nos que o Governo britânico tem investido fortemente no turismo de natureza e que Norfolk, particularmente, “é o lugar ideal para explorar a pé”, uma vez que o terreno não apresenta grandes desníveis e os percursos são muito bem sinalizados, tornando “muito difícil” as pessoas perderem-se.
Dos 5300 quilómetros quadrados da região, os olhos guardam grandes planos de terras de cultivo, rios e gente habituada a uma agricultura burguesa. São casas forradas a livros e mármore travertino, são agricultores de galochas a entrar nos seus Mini Cooper. Steve, na faixa dos 50 anos, foi uma das pessoas que decidiu trocar as luzes de Liverpool pela paz deste condado verde, onde “até as notícias do jornal são sobre pássaros e plantas”, como nos mostra num banco de jardim. “É o sítio mais estranho para se viver. Mas temos tudo aqui: campo, pequenas cidades, rios, mar… Temos sempre o que fazer”, descreve. Ao lado, Céline acrescenta: “E é a região de Inglaterra com mais dias de sol durante o ano!” Para os britânicos: sinónimo de paraíso. Para os viajantes: um céu inglês onde o azul existe.
Comer bem
O que fazer, então, às 13h30 de uma tarde de sol na vila de Cley-next-the-Sea? Ir à galardoada Picnic Fayre e provar as melhores empadas de uma vida, para começar. De ares louros, Victoria (afilhada da rainha Elizabeth II) e John Pryor, que fundou a loja em 1984, aconselham as pastas de especiarias artesanais e dão-nas a provar em pedaços de pão caseiro. Frente à secção de vinhos orgânicos, os doces gregos ganham nitidez e os frutos secos torrados aumentam o volume às compras. Acompanhe-se o petisco saudável com um sumo de maçã. “São os melhores de toda a Inglaterra”, garante a proprietária.
Lá fora, as bicicletas aguardam a imensidão de um terreno de pássaros — a reserva natural de Cley, que se traduz entre pântanos, salinas e longos trilhos de terra batida — e um pouso para que se provem as iguarias made in Norfolk. Mas ainda antes de um refúgio relvado, abre-se a porta da Cley Smokehouse, que, para além de arenques e filetes de salmão fumado, exibe no topo do balcão o raro mel de urze feito a partir de apiários de orquídeas.
O saco (biodegradável) que carregamos nas mãos entra em risco de colapso, pelo que as bicicletas repousam seguras junto à escola, onde um Coasthopper aguarda os passageiros. O bilhete diário dá direito à viagem entre Cromer e King’s Lynn. São cerca de 70km junto ao mar inglês, com estudantes de uniforme azul-marinho e magnatas reformados a encher o autocarro amarelo, azul e verde (poupado em emissões de dióxido de carbono). Um homem de boné fala-nos em Wells-next-the-Sea como ponto obrigatório para comer caranguejos frescos, e embora as empadas e o mel de Cley já tenham cumprido o seu papel, descemos na paragem de Wells.
Às cinco horas, destinadas ao chá, uma cafetaria de vidraça larga deixa ver os passeantes enquanto se trincam shortbreads — o biscoito escocês que acompanha a chávena inglesa, no dia em que o referendo manteve a Escócia na redoma do Reino Unido. O ritual repete-se pelas mesas de madeira, ora com o biscoito da outra banda, ora com os scones nacionais. Não há caranguejos a esta hora, mas, lá fora, os homens do mar carregam prateleiras de marisco a saltar de um lado para o outro, e chamam a curiosidade à praia.
Reza a imagem quase mitológica que quem vem descansar para Wells inclui no programa de natureza um passeio a cavalo na praia de Holkham (eleita a melhor do Reino Unido num inquérito a mais de 100 jornalistas britânicos especializados em viagens). À chegada, a sinalética abunda: “No parking”; “No barbecue”; “No fire”; “No camping”; “Do not cross the line”. Mas é permitido praticar equitação — suspira-se —, desde que “abaixo da marca” assinalada, evidentemente. A fortuna traduz-se num areal amplo (e selvagem até nos tons) que se desfaz num dos “milagres” de Holkham: em hora de maré alta, forma-se uma lagoa na bacia da praia, que nos separar do mar e do impossível. E na reserva natural que nos guarda as costas, gansos de patas rosa, lebres e esquilos atravessam todas as linhas e proibições desenhadas pela ultra-regra inglesa.
Por trilhos de ferro
Sábado de manhã, o Coasthopper dá a volta. Esperam-nos barcos de pescadores e casas de bonecas em Sheringham, o lugar sem tempo em que uma locomotiva a vapor e um comboio dos tempos modernos se cruzam e onde, uma vez por ano, em Setembro, os habitantes passeiam-se a rigor com um guarda-roupa da década de 1940, em memória dos anos de guerra.
Junto à estação de comboios, o mercado de Sheringham exibe livros em segunda mão, algum bric-à-brac, artesanato, roupas e comida quente. De malas aviadas, a decisão é entre a locomotiva dos anos 1920 (que circula pelo campo numa linha montada em 1887) e as janelas amplas do comboio da vida diária de Norfolk. As tâmaras biológicas, o já imprescindível sumo de maçã, o queijo e o pão artesanal aguardam contacto com a boca. Sobre a mesa da estação, um prospecto tímido convida-nos a explorar os canais de Wroxham. Aceitando os sinais, pelos segundos carris é que vamos.
Talvez pela paz das planícies, o revisor mostra-se bem-disposto e avança com piadas carruagem afora. Enverga um pin LGBT e uma pulseira colorida; cobiça-nos as tâmaras em cima da mesa. No banco da frente, um rapaz exibe a tatuagem de uma espiga de trigo atrás da orelha — o campo inglês parece estar-lhe no sangue. Mas na chegada a Wroxham, com convite para os famosos The Broads, cheira a tudo menos terra. A aldeia é atravessada por canais e carregada de vivendas luxuosas, famílias que pescam desde a mesa de um pequeno-almoço em porcelana, garagens onde repousam iates e as sombras do rio Bure. Estamos na maior zona húmida protegida da Grã-Bretanha, que ocupa 303 quilómetros quadrados de água, pântanos, campos agrícolas e florestas entre Norfolk e Suffolk.
“Todos os dias há visitas guiadas de barco, mas temo que a esta hora já não apanhem a última”, avisa a responsável do gabinete de turismo. Mas The Broads, que atrai mais de sete milhões de visitantes por ano, também aluga canoas, caiaques, barcos à vela ou a remo e pequenas embarcações a motor sem guia.
Um senhor esguio plantado numa barraca à borda da água dá-nos a chave de um barco azul, ensina a puxar a corda pendurada no colete salva-vidas e lê em voz alta uma lista de dez coisas que não podemos fazer. “You have the right to remain silent”, recordamos dos actos de prisão em cinema, e parece-nos o mais acertado a fazer.
Das margens do canal, impera o silêncio habitado, e quanto mais nos afastamos de Wroxham e das suas mansões e jardins-fantasma, a natureza de canas e juncos, os moinhos e as mais de 150 igrejas medievais dominam a paisagem naquele que é o resultado de quase dois séculos de escavações (depois do abate de árvores, a extracção de turfa como fonte primária de energia tornou-se uma das actividades de grande relevo na área, e os terrenos alagaram). Hoje, é possível navegar por estes canais durante horas. Desde os primeiros moinhos até ao extremo onde vivem focas, The Broads é habitat de milhares de espécies (animais e vegetais) e de contos. Nem mesmo David Bowie poupou as suas letras de um dos lugares mais mágicos de Norfolk.
Voltar à terra
Uma alpaca observa-nos junto a fardos de palha. Depois do cheiro a mar e das ondas de água doce, descansamos em Thornage, aldeia perdida e católica entre as árvores de Norfolk, onde não falham as missas de domingo para louvar os vegetais que a terra oferece. Na granja mandada construir no século XV pelos bispos de Norwich, o centro administrativo deste condado inglês, funciona uma das 26 comunidades Camphill de Inglaterra e do País de Gales. Nela vivem pessoas com necessidades especiais, que fazem do trabalho no campo, artesanato e actividades do quotidiano as suas principais ocupações e terapias.
Um cesto de maçãs, tomates e cenouras chega à cozinha em cores carregadas. Lá fora, as nuvens impõem-se, dando tempo às habilidades do forno e das mãos. As framboesas colhidas pela manhã e o chá preto inglês carregam o aroma da sala de pequenos-almoços, onde duas grandes janelas se voltam ao mundo antropofísico — a comunidade Camphill segue os princípios do austríaco Rudolph Steiner, pai da antroposofia, da agricultura biodinâmica e da pedagogia Waldorf, e defensor de uma ciência espiritual em que os ritmos e a saúde da natureza, do cultivo e dos animais (incluindo o homem) são respeitados em unidade, como se de um mesmo organismo se tratasse.
Tânia Ferreira, de 26 anos (começados em Mondim de Basto), é assistente social neste nenhures campestre. Desidrata maçãs no forno industrial enquanto resume o melhor de Thornage: “A qualidade de vida, não passar horas em transportes públicos, colher a minha própria comida, ter sempre tempo para tudo.” Com a realidade das horas e a aprendizagem bruta da natureza, passou a “ver as coisas em perspectiva”: estar em Norfolk não é viver isolado do mundo, mas viver com ele, sem ruído.
As maçãs estão prontas e os corvos põem-se a voar longe da janela. “Vem aí tempestade”, diz Tânia, sabiamente, sobre o sinal dos pássaros de Hitchcock enquanto veste o casaco para nos guiar numa caminhada até ao único restaurante da vizinhança, em Holt. Para além de servir à mesa, o Back to the Garden é aquilo a que os ingleses chamam de farm shop, uma loja-café-restaurante que funciona num antigo celeiro onde se armazenam e vendem os produtos biológicos que nos chegam à língua.
Na viagem por carreiros de terra, uma alma ou outra cruza caminho, diz “olá” no seu inglês carregado de Norfolk, e deixa-nos seguir o romance da chuva que começa. Há pouco a palavrear sobre o que se escuta, sobre o cheiro a terra molhada, sobre o nevoeiro que pinta as raras lâmpadas no horizonte de Holt. Como diz Richard Hullet, de 60 anos, que decidiu trocar a cidade pelo campo quando conheceu Norfolk, “é muito fácil perdermo-nos aqui, porque não importa para onde vamos”. Também não importam as turbulências ou os excessos. Como nas paisagens pintadas por Richard, “são mais as ondulações que as colinas”; e, como na vida, este é um lugar para se ser mais velho — “no tempo lento” — e para ser criança — “quando vamos à praia brincar com as conchas e não há mais nada do que isso”.
GUIA PRÁTICO
Como ir
Em regime low cost, tanto a Ryanair (a partir do Porto e de Lisboa) como a easyJet (a partir de Lisboa) apresentam tarifas a partir dos 45 euros (ida e volta) para Londres. Da capital inglesa, a melhor forma de chegar a Norfolk é de comboio, sendo a ligação a Norwich a mais directa. Há descontos especiais nos bilhetes comprados com antecedência através da página www.nationalrail.co.uk.
Também existem voos directos, operados pela TAP, a partir de Lisboa, Porto e Faro para Norwich. Contudo, os preços (ida e volta) ultrapassam os 250 euros, podendo chegar aos 400.
Para deslocações em Norfolk, a rede de transportes públicos (autocarros e comboios) é bastante eficaz e completa. No entanto, é sempre possível alugar um automóvel em Norwich.
Onde dormir
Não faltam casas de campo para alugar em Norfolk, até porque a região promove um tipo de alojamento mais próximo da vida rural. No portal de reservas www.norfolkcottages.co.uk, existem mais de 300 possibilidades, quer junto à costa, em ambiente urbano ou nos ramos da floresta. Holt, Blakeney, Sheringham, Wroxham, Wells, Cley e Norwich são alguns dos locais recomendados.
Onde comer
Back to the Garden
Letheringsett, Holt, Norfolk, NR25 7JJ
Tel.: 0044 1263 715996
Especialidades: bife de alcatra, frango orgânico à Ballotine
A maioria dos produtos utilizados é caseira ou orgânica. A esplanada funciona no jardim do restaurante.
Picnic Fayre
The Old Forge, Cley-next-the-Sea
Norfolk NR25 7AP
Tel.: 0044 1263 740587
Especialidades: empadas de frango e vegetarianas, padaria, sumos e vinhos orgânicos, variedade de frutos secos, compotas.
The Wiveton Bell
Blakeney Road, Wiveton
Norfolk, NR25 7TL
Especialidades: mexilhões, ostras, pato com molho de ameixas, bochechas de porco caseiro
Trata-se de um tradicional pub inglês, com uma larga variedade de cervejas e ales.
Wiveton Farm Café
Wiveton Hall, Holt
Norfolk NR25 7TE
Especialidades: pizzas em forno de lenha, bolos caseiros e sumos naturais.
Fica numa quinta frutícola, entre plantações de morangos e framboesas, com vista sobre o mar.
Que caminhos seguir
Há 11 percursos pedestres oficiais em Norfolk: o Angles Way, o Boudicca Way, o Fen Rivers Way, o Marriott’s Way, o Nar Valley Way, o Norfolk Coast Path, o Paston Way, o Peddars Way, o Weavers Way, o Wensum Way e o Wherryman’s Way. Todos eles são, ainda, complementados por circuitos circulares (de distância curta). Durante este ano, será inaugurada uma nova rota, que integrará o Little Ouse Path.
Enquanto o Paston Way liga 13 igrejas medievais da região e o Peddar’s Way segue a rota de uma estrada romana, oferecendo perspectivas focadas na história e na arquitectura, o Angles Way e o Wherryman’s Way atravessam vales ricos na diversidade de aves e borboletas.
Já no Norfolk Coast Path, encontram-se focas e aves marítimas. A mais recente extensão, até Overstrand e Happisburgh, inaugurada em Dezembro, trouxe uma nova marca ao trilho: em Happisburgh, foram recentemente descobertas pegadas com mais de um milhão de anos. Serão a primeira evidência da presença humana na Europa Ocidental.
Por fim, no Nar Valley Way, no Wensum Way e no Weaver’s Way é possível participar em aventuras de geocaching, as actividades de caça ao tesouro, desenhadas pelos conhecedores da região, com recurso a smartphones e GPS.
Na Internet: www.norfolktrails.co.uk