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  • Um picante Bloody Mary
    Um picante Bloody Mary

Uma viagem picante no Luisiana

Por Miguel Pires

O que há em comum entre uma garrafa de molho picante e outra de vinho do Porto? Mais do que se imagina. Viajámos até ao estado americano do Luisiana para conhecer o mundo da Tabasco.

Consta que tudo começou em 1865 quando Edmund McIlhenny, proeminente banqueiro do Luisiana, recebeu de oferta umas sementes de malagueta originárias da América Central. Edmund semeou-as nos terrenos da família, em Avery Island, desenvolvendo o seu cultivo até chegar aos 280 hectares, todos com a espécie capsicum frutescens, variedade tabasco, nome pelo qual passaria a ser conhecido aquele que é provavelmente o molho picante mais famoso do mundo. Embora Edmund lhe tenha dado o nome de um estado do vizinho México, não é certo que as sementes tenham vindo de lá. A política actual da empresa é que não se sabe a origem. Para Shane Bernard, o historiador contratado pela companhia para apurar os factos (e separá-los dos mitos contados pela família), o nome terá sido escolhido por influência do comércio entre as regiões dos dois países na altura trazido pelos barcos que subiam o rio Mississípi, vindos do Golfo do México.

A teoria é bem mais pacífica do que a atribulada e longa viagem deste jornalista até ao estado do Luisiana. Foram dezoito horas, entre Lisboa e New Iberia, com vários e rigorosos controlos de segurança, uma perda de ligação em Nova Iorque, uma passagem imprevista por Dallas (no Texas), antes de aterrar finalmente em Lafayette e apanhar um transfer para o hotel. Ou seja: quase um dia inteiro para ligar a velha e a nova Ibéria. Posto em perspectiva, até que foi reconfortante o pequeno-almoço, no hotel, de bagels (des)congelados barrados com cream cheese, com pratos e talheres de plástico. Good morning America!

Avery Island

A caminho de Avery Island, onde fica a sede da Tabasco, predomina a paisagem verdejante das plantações de cana de açúcar. Embora se trate de uma ilha, à primeira vista os pântanos que a rodeiam transmitem-nos uma imagem diferente. A entrada faz-se por uma estrada ladeada de relva bem aparada e tudo muito cuidado, como num resort. A ilha, adquirida em 1830 pelo avô da mulher de Edmund McIlhenny (e que pertence hoje a um fundo controlado pela família, que impede que a mesma possa vendida a retalho), além da sede da empresa e de uma pequena povoação, alberga uma mina de sal antiga (explorada em tempos pelos índios que habitavam o local), um jardim botânico e um santuário de aves migratórias, sendo um ponto de atracção turística da região. Não é incomum um visitante cruzar-se com um aligátor (género de jacaré), ou até mesmo com um dos ursos negros, coiotes ou gatos selvagens que por lá vivem. Entre estes habitantes, os mais emblemáticos são os aligátores. Segundo o nosso guia, “já não são tão grandes como eram”, dado que a sua caça foi muito explorada nos anos 1980. Ainda assim, ninguém ficou muito triste por apenas tê-los avistado ao longe (a propósito: estes répteis correm a 50 km/h, mas não têm visão periférica, pelo que nos aconselharam que, em caso de confronto directo, a solução passe por fugir aos ziguezagues).

Parafernália pop

Harold Osborn, um dos descendentes da família McIlhenny, recebe-nos na sede da empresa, um edifício de 1905 forrado a tijolo. No interior, uma boa vintena de quadros preenchem as paredes. São anúncios antigos, mas também cartoons e vinhetas de BD famosas, com alusões ao produto. Estamos num universo digno do ambiente da pop art, sobretudo quando visitamos um pequeno núcleo museológico que guarda todo o tipo de parafernália ligada à marca: desde a primeira garrafa de molho (de 1894) aos kits de sobrevivência do exército americano (onde uma miniatura posa ao lado de umas pastilhas para a digestão), passando por vários produtos licenciados, como chocolates ou whisky.

Da dedicação de um banqueiro à criação de um mito da cultura pop e gastronómica americana houve um percurso que teve início após a Guerra Civil Americana. Este acontecimento deixou mossa no património da família e terá sido essa uma das razões que levou Edmund McIlhenny a dedicar-se ao fabrico de molho picante. No início era mais uma paixão: as primeiras produções eram engarrafadas em pequenas garrafas de água de colónia e distribuídas entre amigos. Ao contrário da história de sucesso que a marca contou durante anos, o fundador teve de fazer um grande esforço para manter o negócio de pé. Ao ponto de o seu obituário mencionar os seus feitos enquanto banqueiro, omitindo qualquer referência à sua última actividade. Contudo, o seu empenho, o investimento na plantação e no fabrico acabaram por constituir um legado importante a que os seus descendentes souberam dar continuidade, transformando-o num produto de sucesso conhecido e exportado para todo o mundo.

Longe vão os tempos em que quase dois terços dos terrenos da ilha eram ocupados pelos campos de malaguetas. Hoje, somente uma parte é cultivada e apenas para produzir sementes para os produtores da América Central e do Sul, com quem possuem acordos. Esta opção, além de lhes garantir uma qualidade superior, dadas as condições ideais para a produção da capsicum frutescens em países como o México, a Colômbia ou o Brasil, permite-lhes o fornecimento constante ao longo do ano, além de diminuir o risco de perda da produção face às intempéries que de tempos em tempos assolam o estado de Luisiana — como aconteceu quando o furacão Rita fustigou uma parte da ilha, em 2005.

Da semente ao prato

Dos campos até chegar ao prato o molho de Tabasco passa por um processo que pode durar cinco anos. As malaguetas são semeadas e colhidas nos países de origem, de onde saem moídas com sal. Já em Avery Island são colocadas em barris usados de whisky americano, onde fermentam por um mês e estagiam durante três anos. Após este período, as massas passam para tanques, sendo-lhes retiradas as peles e as sementes e adicionado vinagre (de milho). A partir daqui o molho é embalado, rotulado e enviado para 186 países. Apesar de ter uma gama diversificada, a maior parte das vendas centra-se na receita original, sendo os Estados Unidos naturalmente o primeiro mercado, o Japão o segundo e a ilha de Guam o território com maior percentagem de consumo per capita. E Portugal? “É um bom mercado”, diz-nos Osborn, sem adiantar mais detalhes. A companhia não fornece números específicos sobre as suas vendas mas adianta que a produção diária actual (o equivalente a 700 mil garrafas) é maior do que tudo o que o fundador produziu em toda a sua vida.

É altura de passarmos à prova das massas e, para tal, Harold Osborn leva-nos a uma das mash houses, o armazém 12. O cenário impressiona: são cinquenta e cinco mil barris, muitos deles com um ar envelhecido, como se estivessem ali há décadas. Por momentos lembram-nos as caves do vinho do Porto, em Gaia, mas o aroma é substancialmente diferente. “O que vamos provar é dez vezes mais picante do que o produto final”, diz o americano, enquanto distribui uma colher de metal com uma corrente para pendurar ao pescoço. Explica ainda como deverão ser lavadas as mãos no final e adverte para “em caso algum” tocarmos nos olhos antes de as lavarmos. Com tanta precaução parece que vamos ser entronizados numa confraria de dinamite. Porém, o traje fica-se pela colher de metal ao peito.

Feitas as advertências, Osborn pede então ao empregado que abra os dois barris que escolheram: um novo e outro com três anos de guarda. O primeiro liberta um aroma surpreendente a fruta vermelha exótica madura (lembra a pitanga da Madeira). Já o segundo barril tem um aroma intenso, devido ao envelhecido, mas menos exuberante.

“Quero que prestem atenção ao que acontece nas vossas bocas”, indica-nos antes da prova. O embaraço de sair dali a correr, como se alguém tivesse acabado de nos deitar fogo, é mais ou menos visível nos rostos. Todavia, Osborn tem (quase) razão: “O tabasco não queima, vai directo às papilas gustativas, deixando-as mais abertas.” A sensação na boca é forte mas não ardente (bom... não totalmente ardente.). Primeiro sente-se a fruta mas rapidamente o picante passa a sensação dominante. Na amostra do segundo barril o sabor  aproxima-se daquilo que é o produto final: menos frutados, mas mais complexos (com um toque de umami).

Primeiro estranha-se...

 É verdade que nos habituámos a ver garrafinhas de “colónia” picante nos galheteiros de temperos de todo o mundo. Porém, é na gastronomia da sua região de proveniência que melhor se compreende o sucesso. Num dos jantares, um responsável da empresa confessou-me que colocava Tabasco em praticamente tudo. Não lhe dei grande crédito. No entanto, passe o exagero, a verdade é que a marca tem uma gama de molhos variado que se adapta a vários pratos (até um de framboesas combina com certas sobremesas) e a receita original vai bem com os mariscos locais de sabor pouco expressivo, como o caranguejo, o camarão ou as ostras. As últimas aparecem muito associadas ao molho que combina, sobretudo, com duas das formas de confecção predilectas na região: panadas fritas ou gratinadas. Porém, acrescentar Tabasco numa ostra de sabor mais assertivo, como as nossas da ria Formosa, por exemplo, fará levantar o sobrolho a alguém mais purista. Há ainda outra particularidade em relação ao gosto português por picantes. O português está muito habituado ao molho piripiri, mais directo e ardente. Contudo, o Tabasco tem uma certa complexidade que faz dele um tempero diferente e interessante. A comparação, neste caso, é um pouco como a de uma aguardente nova em relação a outra envelhecida. Como no slogan que Fernando Pessoa escreveu para outro produto norte-americano, ainda mais famoso, também neste caso pode-se estranhar, mas depois entranha-se. E a forma mais viciante e inusitada de o fazer passa por umas gotas do molho tradicional em pão quente com manteiga. No Luisiana ou em terras lusas.

GUIA PRÁTICO

Como ir 
De Lisboa chega-se a Nova Orleães via Nova Iorque ou Miami. Dali a Avery Island são duas horas de carro. 

Quando ir 
A região do Luisiana é muito quente e húmida no Verão, pelo que é mais aconselhável seja visitá-la no final da estação, princípio de Outono, ou na Primavera.

Onde ficar 
O Hampton Inn & Suites, em New Iberia, a meia dúzia de quilómetros de Avery Island, é um daqueles hotéis de estrada simples e confortável que nos habituámos a ver nos filmes. Se achar demasiado descaracterizado, vingue-se em Nova Orleães e fique no Ritz Carlton, em Canal St. 

O que fazer
Estando na região é inevitável guardar algum tempo para visitar Nova Orleães, onde a recuperação da cidade (ou pelo menos do centro), após o devastador furacão Katrina, não deixa de impressionar. Lugares emblemáticos como o French Quarter reúnem uma série de características pouco comuns noutras cidades: folia, charme, excesso e decadência. A capital do Luisiana é também conhecida pelos seus restaurantes e cafés emblemáticos (alguns encontram-se entre os mais antigos dos Estados Unidos), como o Antoine’s, o Galatoire’s, o Cafe Beignet ou o Café du Monde.

A Fugas viajou a convite da McIlhenny

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