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A Andaluzia nas entrelinhas, a paixão à flor da pele

Por Andreia Marques Pereira

Vamos de Sevilha a Córdova, damos um salto a Jaén e temos Granada sempre à vista. Pisamos a Via Augusta, revisitamos o Al-Andaluz, descobrimos Noé e, pelo caminho, avistamos a 'Guerra dos Tronos' a fingir um novo reino.

Não haverá palavra, e suas declinações, mais associada ao carácter andaluz do que paixão. Andaluzia rima com paixão, não importa que não literalmente. Tudo parece nascer desse duende que Garcia Lorca tanto invocou, esse sobressalto de inspiração, que tanto pode estar encravado nas montanhas ou estendido nas planícies, pode surgir sob sol inclemente ou à vista dos touros bravos, pode romper da religião ou soltar-se do flamenco, revelar-se num tapeo e assaltar uma siesta. Há uma espécie de sortilégio nesta encruzilhada de culturas, de tolerância e intransigência, de lutas e convívios, da qual emergiu com um carácter e um modo de vida singulares feitos símbolos de um país que, sabemos, tem pouco de uniforme.

Talvez tenha sido o caldo de culturas que ao longo de milénios aqui deixaram rasto que transformaram a Andaluzia em metonímia de Espanha. Na Andaluzia, gregos, fenícios, cartagineses e romanos uniram-se aos iberos num sincretismo raro, os árabes fizeram daqui a sua terra prometida, os judeus julgaram ter encontrado o final da diáspora, e a poderosa Castela fez-se Espanha muy católica e imperial — é uma espécie de umbigo do país, portanto.

A rota Caminos de Pasión uniu oito municípios (cidades de não mais de 30 mil habitantes) num percurso que revela as idiossincrasias da Andaluzia fora do seu quadrilátero mágico — Sevilha, Córdova, Granada e Málaga. Estamos nas suas órbitas desvendando a história, a paisagem, a arte, a gastronomia e as tradições populares destas cidades de duas caras, uma, popular, caiada de branco imaculado, outra, altiva, de majestosas fachadas renascentistas e barrocas com devaneios mudéjares, que se descobrem em paisagens rurais de campinas e olivais (que crescem até nas encostas de montanhas). Há uma mistura de leveza e uma solenidade, de sagrado e profano, que têm a sua síntese na Semana Santa, festa de interesse turístico da Andaluzia que vai além da religião, que vai além da primeira impressão. Como muito nesta comunidade autónoma espanhola, a mais pobre de Espanha, mas também, provavelmente, a mais orgulhosa: milénios de histórias desencontradas deixaram a Andaluzia em carne viva e não poderia ser de outra forma.

Carmona

Se tivéssemos seguido o programa, a nossa primeira visão teria sido a Porta do de Sevilha, um tramo de muralha robusta e dourada, rasgada e coroada por diferentes civilizações que chamaram casa a Carmona. Como chegámos antes, entrámos pela Porta de Córdova e navegámos por ruelas até ao palácio feito hotel que foi o nosso poiso por umas horas. Só na manhã seguinte damos um rosto às sombras nocturnas e estas ganham outra dimensão — a das sombras da história. E mal sabemos nós nessa primeira incursão, que nos leva por uma corrente de casonas e palácios de cantaria trabalhada e ferro abundante, atravessando praças com feições mouriscas e ruas pedonais marcadas por comércio tradicional, quanta história se acumula na cidade de Carmona.

A Porta de Sevilha, portanto, para a entrada triunfal em Carmona e síntese apressada de milénios plasmadas em pedras: cartaginesas, romanas, muçulmanas, castelhanas e espanholas — e assim se percorre a história de Carmona, da Andaluzia e de Espanha, ainda que com “buracos”: não entram aqui os tartésios e os seus descendentes turdetanos (povos iberos que Estrabão dizia serem os mais cultos da Península Ibérica), tão pouco os fenícios que deixaram testemunho no nome da cidade — “car” é muralha.

E é da muralha que temos a primeira visão panorâmica de Carmona, uma cidade que até não está mal servida de miradouros: a partir dela, para ela. Aqui no alcázar da Porta de Sevilha (aos pés da Torre do Ouro) vemo-los todos, nos recortes deste planalto que parecem promontórios sobre um mar de searas — ou girassóis, um dos produtos mais emblemáticos da região que faz a sua fama entre japoneses — incluindo o Alcázar do Rei D. Pedro, este, sim, o ponto mais alto da cidade.

Quando Carmona era Carmo, um templo era o que se erguia sobre esta porta — visível à distância na Via Augusta que sob nós atravessava Carmo e seguia pela Porta de Córdova. Nós deixamos a porta para trás mas não largamos a Via Augusta, agora como há dois mil anos a estruturar o centro de Carmona. O entramado é praticamente o mesmo da cidade medieva — e se escavarmos está a romana, dizem-nos. Não é difícil acreditar. Uma fuga à Via Augusta, feita rua pedonal, mergulha-nos em ruelas quase impossivelmente estreitas, com as ocasionais escadarias, onde o sol não entra. Estamos longe dos palácios, aqui fala-se de uma janela para a que está em frente — é um atalho que é um caminho turístico pelas entranhas andaluzas.

A praça de San Fernando (ou “praça de cima”), eminentemente quinhentista, parece dividir informalmente o centro histórico entre a cidade baixa e a alta. Na parte alta concentram-se igrejas, conventos, palácios mudéjares, renascentistas e barrocos. Como aqui nada se perde, tudo se transforma, o antigo claustro de um convento é o mercado; e o edifício do ayuntaminento, antiga propriedade dos jesuítas, guarda um dos mosaicos das antigas termas. Duas freiras deixam-se fotografar na rua, mesmo à saída da igreja de Santa Maria de la Asunción, que já foi a mesquita e acolhe uma coluna visigótica. Esta é a principal igreja de Carmona, mas tem a grandiosidade de uma catedral — os historiadores defendem que esta terá sido um “estudo” para a catedral de Sevilha.

Osuna

E quem esperaria encontrar Dorne no meio da Andaluzia? Nós não, porque andávamos distraídos, mas rapidamente temos um curso rápido que nos ajuda a saber que “partilhámos” pequeno-almoço com Jorah Mormont ainda que esteja trajado como Iain Glen — profissão: actor. Outubro de 2014 foi um mês atípico em Osuna e nós chegámos dias antes de o furacão atingir a cidade. A Guerra dos Tronos foi o seu nome e este é um furacão que se espera benévolo — já se preparam novos caminhos turísticos à boleia da série que assentou a produção aqui durante duas semanas para recriar o reino que faz a sua primeira aparição na série da HBO. É um reino diferente de todos os outros do continente imaginado por George R. R. Martin: possui o seu único deserto, população esparsa e hábitos e costumes distintos; só em Dorne crescem citrinos e especiarias — e o seu vinho é o mais valioso.

Assenta bem à Andaluzia esta descrição, mas de Osuna não se verá muito na televisão — as filmagens concentraram-se na praça de touros. Certo é que a cidade não se reverá no ecrã como se reviu em Callas, que Franco Zefirelli aqui filmou em 2001. Nesse filme, sim, Osuna é palco de uma Maria Callas feita Carmen, ambas encarnadas por Fanny Ardant. A rua de San Pedro, impenitentemente aristocrática e altiva, é o palco perfeito para a orgulhosa cigana de Bizet. Dizem-nos que a UNESCO a considerou a segunda mais bela rua da Europa, uma sucessão à beira do delírio de fachadas barrocas que são a cara de imponentes igrejas e, sobretudo, palácios numa mostra única de arquitectura civil dos séculos XVII e XVIII.

Se a rua San Pedro, e as circundantes, são bem o espelho do poderio económico da cidade que foi condal e passou a ducal, a proverbial cereja está mesmo no topo desta cidade que trepa uma colina entre a serra Sul de Sevilha e a campina sevilhana. A colegiata de Santa María de la Asunción, o convento da Encarnación (um dos 19 que chegaram a estabelecer-se em Osuna), e, mais inesperada, a universidade, fundada no século XVI, formam esta espécie de acrópole de Osuna, a Urso romana, onde Júlio César comandou, em pessoa, a sua última batalha vitoriosa (Munda).

A universidade ainda hoje é um estabelecimento de ensino superior ligado à universidade de Sevilha, no convento resistem monjas e na colegiata Rosario é guardiã de chaves — ou melhor, uma chave, grande, pesada, de ferro — e de histórias. Está aqui desde os 19 anos (não nos diz a sua idade) e continua a vibrar quando nos mostra os tesouros do complexo da colegiata, desde a igreja renascentista ao panteão ducal, terminando no museu de arte sacra, onde mais se excede. Diante das pinturas de José de Ribera (ilustre representante da chamada Escola Espanhola), insiste em dizer-nos qual a melhor posição de observação; junto às bulas papais que ela própria traduziu do latim não podemos deixar de observar a caligrafia (“mais difícil do que o latim”); e deixa as luzes apagadas até que estamos frente a frente com uma cruz de prata dourada, diamantes e rubis, rendilhado intenso de pormenores da vida de Cristo, “para um efeito mais dramático”. Não saímos sem que nos toque Noite Feliz — num órgão do século XVI.

Muito antes do século XVI já os artesãos ursaonenses trabalhavam a pele do cordeiro e é essa herança árabe que, insuspeitamente, descobrimos no polígono industrial da cidade. Há um cheiro intenso nesta zona de Osuna e não é agradável. Mas entramos no armazém da Arte 2 e desaparece para dar lugar a trabalhos policromados e dourados, de grandes e pequenas dimensões, que decoram desde camas a paredes.

Puente Genil

Há uma ponte que une duas margens e que há dois séculos unia duas províncias, Sevilha e Córdova. Entretanto nasce Puente Genil, que continua a ter na sua ponte, a actual do século XVI, um motivo de orgulho. Não tanto, porém, como a “Mananta”, nome informal por que é conhecida a Semana Santa da cidade e que envolve 15% da população, ou seja, mais ou menos 4500 pessoas.

Contudo, antes de a Semana Santa ter chegado a Puente Genil, chegaram os romanos. Na verdade, nunca saíram — continuam a desfilar pelas ruas da cidade todos os sábados da Quaresma e permanecem como um puzzle que lentamente se reconstrói na Villa Romana de Fuente de Álamo. Não é um sítio arqueológico qualquer: é uma das villas rústicas romanas mais paradigmáticas da península e aqui encontram-se alguns dos mosaicos romanos mais bem preservados do mundo.

A Via Augusta passava aqui perto, o que pode ajudar a explicar a grandiosidade da propriedade perdida entre olivais. A entrada faz-se por um centro de interpretação inaugurado há menos de um ano e aqui percebemos os três momentos da vida deste local — porque se é conhecido como villa, a verdade é que antes foi um balneário romano e depois foi um lagar de azeite muçulmano.

É, porém, a villa romana que se destaca nesta história, não só pela importância como, para os visitantes, pela dimensão das ruínas que permitem caminhar por quartos, salões, templos e termas que as escavações, que prosseguem, puseram já a descoberto. Como puseram a descoberto os mosaicos, que conferem a maior singularidade a Fuente de Álamo: entre figurativos (incluindo um raro nilótico, cujo original foi transferido para o Museu de Córdova) e geométricos alguns (os mais antigos), em excepcional estado de conservação e delicado desenho, deixam pistas para o estatuto social (elevado) do proprietário, que permanece um mistério.

Cabra

Somos egabrenses o cabreños, no cabrones”, brincam os habitante de Cabra. E apesar de estarmos em plena serra, a Subbética, na verdade dentro dos limites do parque natural, não é ao animal que a cidade deve o seu nome — diz-se que é herança do poeta local do século X conhecido por Al-Cabri. O topónimo remete-nos, portanto, para a herança árabe, enquanto o gentílico egabrense carrega o legado da Igrabrum romana, mas as raízes de Cabra mergulham mais fundo no tempo e exibem-se de forma invulgar nas suas fachadas.

Não importa se são islâmicas ou barrocas, nascem nas mesmas entranhas da Andaluzia jurássica. E como este território já foi aquático, o seu solo guardou os vestígios de animais e plantas, alguns extintos, que ao longo de muitos milhões de anos se transformaram em rochas e agora formam um geoparque reconhecido pela UNESCO. Essas rochas que depois foram extraídas e usadas na construção e, por isso, caminhamos entre, sobre, fósseis. Eles estão nas calçadas e nas fachadas, em fontes e em retábulos de igrejas, em colunas e varandas, plasmadas em rocha calcária, branca ou vermelha — que polida parece mármore e permite ver os fósseis como se tivessem sido desenhados. E estão em estado bruto, em três dimensões, nos Jardins da Vila, que sobem vários “andares”, ligando o centro da cidade à cidade medieval, a “vila”.

É por aqui que começamos a nossa visita, junto da estátua de El Cid, o Campeador, e aos pés do castelo, antigo alcázar, dentro da Cabra que foi muralhada. Dessas muralhas, resquícios do Al-Andaluz só restam três torres e um pouco do pano (“mantido para decoração”), que no interior guardam ruelas estreitas de empedrados desirmanados a abrir caminho entre casario branco e muros altos manchados de flores que caem nas fachadas — “É bonito, não é?”, pergunta de retórica de mulher que chega a casa.

É uma das ruas mais pitorescas, na verdade, e tentamos enquadrá-la na fotografia com a Igreja Mayor de la Asunción y Angeles, conhecida como “mesquita barroca”, por detrás. Era a antiga mesquita — o minarete caiu com o terramoto de Lisboa — e o interior mantém essa estrutura, ao mesmo tempo que se revela um escaparate para a Cabra jurássica, com o seu interior de calcário vermelho fingindo mármore a ostentar fósseis caprichosos, como se policromados, e decorações barrocas.

Ainda neste cerro da “vila”, o antigo castelo, tornado palácio condal e depois transformado em escolas, ostenta o mesmo equilíbrio entre o islâmico e o cristão, que se vê muito barroco em Cabra. É hora de saída e os pátios enchem-se de pais e avós que esperam por netos sob a tutela da torre de menagem, estilo mudéjar do século XIX, e da estátua do poeta Al-Cabri.

Não deixamos Cabra sem visitar os Museus da Fundação Aguilar y Eslava, instalado num edifício seiscentista onde desde sempre funcionou um colégio que convive desde há poucos anos com um Museu de História Natural (de vertente claramente pedagógica) e, mais recentemente, com o Museu da Paixão. É um museu com o seu quê de etnográfico — mas não é a Andaluzia que aqui se exibe: o que vemos é a primeira Semana Santa, que é como quem diz, reconstituem-se os caminhos originais da Paixão, ancorando-se em dados históricos, arqueológicos, científicos e artísticos — “e religiosos, quando necessário”. Assim, inesperadamente, uma cave andaluza, refúgio durante a Guerra Civil, abre um túnel directo para a Palestina, com uma réplica do Sudário de Oviedo, para tudo terminar no Santo Sepulcro.

Lucena

Chegamos a Lucena como quem chega a Eliossana, em busca da história dos judeus sefarditas, e não saímos desiludidos — afinal, a cidade guarda a necrópole judia mais antiga de Espanha. A descoberta, em 2006, foi um acaso do progresso: construía-se uma nova via em torno da cidade quando os trabalhadores se depararam com o cemitério: 346 campas e 117 restos humanos dos séculos X e XI. Em 2011, foram novamente sepultados seguindo todos os rituais tradicionais da comunidade sefardita; e em 2013 o local foi aberto ao público. Falta-lhe o recolhimento esperado num cemitério — há uma auto-estrada para lá do gradeamento — mas não lhe falta contextualização e explicação do que vemos desde o terraço de entrada, cheio de painéis sobre os rituais funerários e a tipologia de tumbas, que surgem no declive, cada uma bem demarcada com remate de metal.

Não foi, contudo, necessário encontrar a necrópole para se ter ideia da importância da herança judia em Lucena. Não se sabe quando chegaram os judeus — há quem aponte a época de Nabucodonosor, depois da sua conquista de Jerusalém, e um motivo mítico: acreditavam que a serra de Aras era Ararat, onde a arca de Noé terá pousado depois do dilúvio (o sítio arqueológico La Morana, a poucos quilómetros, conserva a cripta do “túmulo” de Noé). Sabe-se que Eliossana, “Deus nos salve” em hebraico, foi conhecida como a “Pérola de Sefarad” pela sua grande comunidade judaica — entre os século IX e XII constituíam os seus únicos habitantes, tendo conseguido um estatuto à parte dentro do emirato, depois califato, de Córdoba. Conhecida por “a cidade dos poetas”, aqui se fundou a escola talmúdica mais importante de Espanha mas o declínio chegou com a conquista almóada e a consequente fuga de muitos judeus.

Da antiga judiaria restam os limites que correspondiam às antigas muralhas da cidade e o bairro medieval de Santiago, contudo, um pouco por todo o lado a herança judaica intromete-se. Seja no palácio barroco dos condes de Santa Ana, uma vez que a família teria origens judias; seja na Igreja de San Mateo, que, apesar de ser considerada a “catedral da Subbética” e ser um exemplo canónico dos estilos gótico-mudéjar e renascentista, foi construída sobre a antiga sinagoga (posteriormente, mesquita).

Porque se Lucena brilhou enquanto enclave judaico, é também conhecida pela “cidade das três culturas” — acrescentando-se a muçulmana e cristã. No Castelo de Moral, bem no centro da zona histórica, vemos a sucessão cultural que enformou Lucena. Não só porque o próprio castelo foi um palco privilegiado da história — foi construído durante o apogeu judaico embora o seu acontecimento mais marcante foi ter sido o cárcel do último rei de Granada, Boabdil, el Chico — mas porque agora é o Museu Arqueológico e Etnológico de Lucena. E neste concentrado de história uma das primeiras paragens da visita é numa “caverna”, a recriação da Cueva del Ángel, nos arredores da cidade, onde se encontraram vestígios dos primeiros europeus pré-neandertais.

A nossa última paragem lucentina fica fora da cidade e bem no coração geográfico da Andaluzia. Subimos entre olivais por estrada sinuosa bem condizente com o destino, o cimo da serra de Aras, para visitar o Santuário de Araceli. Daqui avistam-se cinco províncias, Córdoba, onde estamos, Sevilha, Málaga, Granada e Jaén — Camilo José Cela considerou-a “uma das mais belas paisagens espanholas”; o cineasta Pedro Almodóvar filmou aqui cenas do filme Fala com ela, acompanhando a romaria em que a virgem é carregada em ombros até à cidade e no regresso a “casa”.

Baena

Se “todo o Mediterrâneo — as esculturas, as palmeiras, as contas douradas, os heróis barbudos, o vinho, as ideias, os barcos, a luz da lua, as górgonas aladas, os homens de bronze, os filósofos —, todo, parece surgir do sabor amargo e intenso das azeitonas”, como escreveu Lawrence Durrell, quase todo o Mediterrâneo se pode encontrar em Baena. O que Baena não teve naturalmente outras culturas trouxeram e só assim se explica que o leão seja um dos símbolos máximos da cidade andaluza: eles nunca por aqui se passearam, mas fenícios e gregos trataram de instilar o animal no imaginário dos povos iberos que aqui viveram. O que Baena tem de sobra são as azeitonas, esse tal fio condutor das culturas mediterrânicas, cujo azeite, aqui, é um brinde à história.

Mesmo da história de uma família, como a Nuñez Prado, sete gerações a produzir o “ouro líquido”, com um orgulho óbvio. Francisco, Don Paco, é o anfitrião na almazara familiar, a Casa de la Granja, também ela um tributo à história local — “foi comprada pela minha família aos duques de Baena”, em 1795. Desta data resta uma “adega”, grandes recipientes bojudos brancos de cerâmica com tampo de madeira, onde Francisco, que se voltou para a tradição familiar quando decidiu mudar de vida (era diplomata de profissão), nunca viu azeite. Tudo isto contrasta com o armazém actual, “sobredimensionado” (capacidade para 1,250 milhões de litros de azeite), com um ar futurista e completamente asséptico. Inesperado em território que preserva o que pode da rusticidade agrícola tradicional da Andaluzia — até à mesa, farta.

É à mesa de Don Paco que sabemos que a estrada que liga Córdova a Granada tem exactamente o mesmo traçado que os árabes lhe desenharam há muitos séculos. O centro de Baena também foi delimitado pelos árabes — o seu coração é o bairro da Almedina, apropriadamente situado num alto, emaranhado de ruas, com igrejas, conventos e solares que confluem na praça Palácio, com um castelo cujos últimos restauros não foram bem sucedidos: a pedra nova, branca, transforma-o quase numa caricatura.

Se as épocas árabes e medieval coexistem na antiga Almedina, o nosso ponto de partida é em falso — uma fachada rococó com algo de renascentista recebe-nos a meio caminho do topo da cidade. É a Casa del Monte, bem na Praça da Constituição, o salão de visitas de Baena que nos recebe com um pouco de Itália — o que se calhar não está completamente deslocado, uma vez que o império romano também chamou casa a estas paragens. A sua herança mais imponente não a vemos — o sítio arqueológico de Torreparedones desvendou uma cidade que foi ibera e teve castelo medieval, mas foram os romanos que lhe legaram um fórum que é uma espécie de “Vitrúvio da arquitectura”, tal a perfeição das proporções. Porém, o Museu Histórico e Arqueológico Municipal é romano q.b.: da pré-história aos iberos (e os seus rituais funerários com abundância de ex-votos), terminando na Idade Média (repartida por visigóticos, muçulmanos e cristãos), é Roma que prevalece, reflectindo a forte romanização da região.

Priego de Córdoba

Em Baena contactámos com a história do azeite, em Priego de Córdoba provamo-lo. É a primeira coisa que fazemos, aliás, e é a primeira vez que fazemos uma prova de azeite “profissional”. É na sede do Conselho Regulador da Denominação de Origem Priego de Córdoba que temos um curso rápido de azeites, supervisionado por Rafael Rodriguez, técnico de qualidade habituado a receber os muitos turistas que procuram esta actividade. Confessamos a nossa inépcia para descrições sobre o que provamos, mas no final é indubitável: depois do azeite extra virgem até o virgem nos parece mau.

Não mau como o azeite que dizem lampante (termo usado para descrever o azeite impróprio para consumo) e cujo cheiro antigamente povoava o centro de Priego de Córdoba, no tempo em que havia muitos lagares aí. Idos os lagares, na cidade respira-se a harmonia entre o barroco andaluz de inúmeras igrejas, o labirinto muçulmano do Bairro da Vila e a água que corre em abundância. “Quando meia Espanha está com seca, aqui nunca falta água”, dizem-nos. A prodigalidade desta exibe-se na Fonte do Rei e na Fonte da Saúde, onde chegamos caminhando entre casonas sumptuosas, com fachadas inesperadas, nas quais tanto nos deparamos com pormenores de arte nova como mudéjares, agora abraçadas a edifícios mais modernos.

Se uma é a Fonte do Rei, é a outra que tem ligações régias, pois diz-se que aqui terá montado acampamento Alfonso XI, durante a reconquista. A Fonte da Saúde é também a mais antiga (século XVI), frontispício maneirista, encaixado no declive, como uma espécie de altar natural. Mas como não sentir a sombra da Fonte do Rei, três tanques em cascata, forrados a mármore policromado, com 139 canos a desaguar neles e com Neptuno bem no centro?

Inesperadamente aquática, a cidade que se ergue sobre a planície de olivais. O Adarve é o melhor caminho para perceber a simbiose entre a natureza e o humano, abraçando o bairro da Vila, que muitos comparam ao granadino Albacín ou ao bairro judio de Córdova. É aqui que Priego de Córdoba se transforma num pueblo suspenso no tempo, um dédalo de ruelas onde os carros não chegam, que por vezes terminam em minúsculas praças — pátios para as casas em volta. A arquitectura parece de brincar, por vezes, na alvura imaculada das fachadas simples e pitorescas, manchada de flores que vêm de todos os lados — e não visitamos o bairro na Primavera, quando se torna um arco-íris florido.

Alcalá la Real

Em terras onde a reconquista foi um jogo de avanços e recuos entre cristãos e muçulmanos ao longo de séculos, nenhum local é tão paradigmático como Alcalá la Real. Terra de fronteira entre vários reinos muçulmanos, mais tarde, depois da conquista definitiva por Castela, passou ser a linha avançada da reconquista, que, daqui e durante mais de cem anos, cobiçou o reino de Granada — e já sabemos como termina essa história. Por isso, Alcalá la Real é tão especial na Andaluzia e, talvez por ter vivido durante tanto tempo em duplicidade acossada, não sinta a esquizofrenia de ser duas: a antiga, abandonada, e a moderna, que carrega a memória anterior. É a antiga que é fascinante como um laboratório histórico — na agora chamada Fortaleza de la Mota viajamos no tempo, a meio caminho entre a mesquita de Córdova e a Alhambra de Granada — a sua fortuna e a sua perdição.

Foi na viragem do século XVII para o XVIII que a antiga Alcalá Real ficou definitivamente deserta. Mas este não foi um movimento repentino, foi um crescendo a partir do momento em que a reconquista terminou e a cidade perdeu seu valor estratégico — a população pôde libertar-se definitivamente das muralhas e ocupar o vale. A cidade abandonada foi objecto de recuperação e é assim que a encontramos, empoleirada no alto, rodeada de muralhas sucessivas até ao enclave final — a alcáçova. É sempre a subir, portanto, a visita, começando pela zona comercial que parecia abrigar-se em grutas escavadas na rocha, em vários andares. O comércio, logo o hospital e os prostíbulos até entrarmos no alcázar, última porta que servia também de portagem.

Se há estruturas inteiras — como as torres da alcáçova e a igreja Maior Abacial (que alberga o Centro de Interpretação da Vida na Fronteira) —, a maior parte do que vemos são ruínas, pedras que demarcam antigas vivendas dos vários bairros: o nobre, o militar e o popular. Alguns edifícios ainda mantêm certos recantos intactos, como lareiras ou escadas que agora dão para nenhures, outras revelam antigos silos de cerâmica que seriam depósitos de vinho, e a casa do abade desvenda uma câmara subterrânea que os investigadores acreditam ter sido depósito de gelo — a serra Nevada vê-se ao fundo, na paisagem inundada de sol e névoa, mas o gelo só viria daí em último recurso. A antiga botica está reconstruída e algumas das ruas são as originais, sendo iniludível a sensação de pisarmos uma história da qual se tem registo desde 713 como fortaleza — qal’at, levando a seguir o nome da família governante, ou, resumidamente Al-Qal’a — embora o que vemos hoje tenha sido erguido, sobretudo, entre os séculos XIII e XIV.

Voltamos aos pés da Fortaleza de La Mota, até ao Rincón dos Poetas, a metáfora perfeita para a cidade e para a Andaluzia. Neste pequeno jardim murado ergue-se o Monólito das Três Culturas — de forma piramidal, nele se inscrevem a cruz, o crescente e a estrela de David, com saudações em espanhol, árabe e hebraico. Os símbolos das três culturas medievais da região, finalmente em paz, como herança do presente e legado do futuro desta encruzilhada.

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Entre o sagrado e o profano: eis a Semana Santa andaluza

Talvez seja por esta ser uma terra que durante séculos balançou entre duas religiões dominantes, mas a verdade é que a Semana Santa vive-se na Andaluzia como em poucos outros locais do mundo. As suas celebrações, com as características procissões, começaram na ressaca da reconquista cristã do Al-Andaluz, mas foi durante o período barroco que se definiu a estética e liturgia que ainda hoje predominam. A Paixão de Cristo é aqui mais do que uma celebração, é um modo de vida que vai muito além da religião — faz parte da tradição popular, de tal forma que até as saetas, cânticos litúrgicos, já foram incorporadas no flamenco.

O sagrado e o profano andam de mão dada na Semana Santa andaluza e é isso que nos conta Sánchez Tórres, primeiro vice-presidente da Agrupación de Cofradías, Hermandades y Corporaciones Bíblicas de Semana Santa de Puente Genil. Na cidade há 24 confrarias e 60 corporações bíblicas e estas são um compromisso que dura todo o ano — mais não seja pelo convívio, algo que se reflecte na sede do agrupamento. Estamos num antigo convento seiscentista e a  sala principal da sede (cuartel) é ocupada por uma mesa comprida que serve tanto para reuniões como para refeições, onde se misturam crentes e não crentes. Aliás, afirma Sánchez Tórres, cerca de 60% das pessoas envolvidas em todos os rituais não são crentes. Até porque há algo de carnavalesco nos desfiles, reconhece Sánchez Tórres, e isso percebe-se nas máscaras de Judas e Judite que decoram a sala — são os rostrillos, representando figuras bíblicas.

Em Alcalá la Real, contudo, a devoção popular é tão arreigada que o chefe da irmandade Ecce-Homo, a principal, compromete-se a manter a sua própria casa aberta todo o ano para quem queira ver o quadro Ecce-Homo “oficial”, há outros que ficam na sede, numa espécie de altar informal. É aqui que vemos também as vestes e os rostrillos, as máscaras que cobrem os participantes-actores que vão representando cenas da Paixão em diversas praças da cidade, uma teatralidade partilhada com Puente Genil.

Alcalá la Real e Puente Genil têm, talvez, as semanas santas mais distintivas dos Caminhos da Paixão, mas em todas as cidades este é o momento alto do ano. Em Lucena as procissões são marchas com andores, em Baena o contraste entre os judeus coliblancos e colinegros dão uma matriz curiosa e Carmona, Osuna e Priego de Córdoba trazem para a rua o seu património religioso barroco, em cortejos imponentes. E a Quaresma é o período de preparação, com uma série de concertos (de música sacra, de saetas) e vias sacras que são os sinais da religiosidade e, sobretudo, do apego da Andaluzia às suas tradições.

GUIA PRÁTICO

Como ir

A TAP liga Lisboa a Sevilha, com preços a começarem nos 200€.

Onde dormir

Carmona: Alcázar de la Reina, www.alcazar-reina.es

Osuna: Hotel Palácio Marqués de la Gomera, www.hotelpalaciodelmarques.es

Lucena: Hotel AN Santo Domingo, www.hotelansantodomingo.com

Priego de Córdoba: Casa Baños de la Villa, www.casabanosdelavilla.com


A Fugas viajou a convite da rota turística Caminos de Pasión

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