Em Lisboa pode-se viajar entre os séculos num único dia. A Fugas decidiu fazê-lo em dois. São 48 horas para ir da pré-história à Lisboa do século XXI, desafiando a geografia da cidade. Tentámos que o percurso fosse o mais lógico possível, mas nem sempre é fácil e acabámos a andar para a frente e para trás. Procurámos locais que não fossem (sempre) os mais óbvios. E assumimos que este é um percurso entre mil outros possíveis pela História e as histórias de Lisboa.
Primeiro dia
Museu Geológico e Mineiro – Uma data algures há 12 milhões de anos parece perfeita para começar esta viagem no tempo por Lisboa. O Museu Geológico guarda um crânio de um enorme crocodilo (calcula-se que teria um comprimento entre 8 e 9 metros) que viveu no Miocénico na zona onde hoje fica o bairro de Chelas. Era uma zona alagada, onde, no meio de um clima húmido e de uma floresta densa, viviam mastodontes e outros animais pré-históricos.
Mas, já que estamos neste museu — que ainda parece os museus do século XIX — podemos aproveitar para ver outros vestígios extraordinários, como um exemplar de crinóide que viveu há cerca de 470 milhões de anos no fundo dos mares do Período Ordovícico e foi encontrado em 1905 em Valongo — o museu chama-lhe “a ‘flor’ de um mar desaparecido”. Ou ainda o esqueleto de um Henkelotherium, pequeno insectívoro que faria parte do grupo de mamíferos existentes há 150 milhões de anos, e que foi encontrado, em muito bom estado de conservação, na antiga mina da Guimarota, em Leiria.
Basílica dos Mártires
Grande salto no tempo até ao século XII. Situada em pleno Chiado, a igreja da Paróquia de Nossa Senhora dos Mártires foi criada em 1147 logo após a conquista da cidade aos mouros por D. Afonso Henriques. No início era apenas uma pequena ermida, criada para que os cristãos pudessem prestar culto à imagem da Senhora dos Mártires que tinha sido trazida pelos cruzados ingleses e à qual D. Afonso Henriques tinha pedido protecção para os seus esforços de tornar Lisboa uma cidade cristã. Depois surgiu a primeira basílica, que foi destruída no terramoto de 1755, dando lugar à actual.
Importante nesta história é o baptistério, do lado esquerdo de quem entra na igreja, com a pia baptismal que veio da basílica original. Aí, na porta de ferro, pode ler-se a seguinte inscrição: “Nesta Paróquia se administrou o primeiro Baptismo depois da tomada de Lisboa aos mouros no ano de 1147”.
Cerca Velha
Descemos depois até Alfama para conhecer melhor a cidade medieval. Na época, Lisboa era delimitada pela Cerca Velha, da qual restam ainda algumas partes. Desde o ano passado que a Câmara Municipal criou um percurso pedonal sinalizado que passa por Alfama, Castelo e Sé, e nos permite seguir as antigas muralhas (1250 metros, com seis portas e duas dezenas de torres) que constituíram o sistema defensivo de Lisboa até ao século XIV.
O percurso, assinalado por painéis informativos, passa pela Rua do Chão da Feira, o Pátio D. Fradique (aí, o Palácio Belmonte, do século XVI, integrou duas torres), a Porta do Sol, que na época islâmica dava acesso a uma necrópole, pelo que era conhecida como a Porta do Cemitério — também aí é visível uma torre integrada na fachada no edifício.
Seguimos depois pela Rua Norberto de Araújo, onde se pode ver o único troço da época islâmica, para a Porta de Alfama, que dava acesso à estrada para Santarém, e depois até à Torre de São Pedro, que no final dos séculos XIV e XV foi usada como prisão. A seguir, o Postigo de São Pedro assinala um dos limites da Judiaria de Alfama (séculos XIV e XV). Passamos ainda pela Porta do Chafariz d’El Rei, e por vários outros pontos, antes de chegar à Casa dos Bicos, onde se podem ver vestígios arqueológicos que mostram a evolução do traçado defensivo desde o tempo dos romanos até à Idade Média. Chegamos por fim à Porta do Mar, importante na defesa da entrada do rio Tejo, e à Porta do Ferro, que no tempo dos árabes ligava à mesquita e depois passou a fazer a ligação à Sé Catedral. (Existe um folheto da CML com toda a informação relativa ao percurso).
Jardim Botânico Tropical
Passamos para período dos Descobrimentos, e o mais natural seria uma visita ao Mosteiro dos Jerónimos. Mas podemos desviarmo-nos um pouco e subir, ao lado do mosteiro, até ao Jardim Botânico Tropical. Não é um jardim do século XVI, foi criado em 1906, mas permite uma outra visão sobre o que foi a relação de Portugal com o mundo, pelos territórios que descobriu e pelas colónias que teve.
O objectivo original deste jardim era promover o ensino agrícola tropical, considerando-se “indispensável o exemplar vivo para que a demonstração seja rigorosamente scientifica e educativa, para que o alumno não fique imaginando somente como são os animaes e os vegetaes, mas tenha a noção viva da realidade”. Assim, podemos explorar sete hectares com cerca de 600 espécies vindas sobretudo das regiões tropicais ou subtropicais de África, América, Ásia e Austrália.
Há árvores vindas de todo o mundo, algumas delas ameaçadas de extinção nos seus habitats, há um Jardim Oriental, homenageando Macau, e ainda as “cabeças africanas” criadas para a Exposição do Mundo Português de 1940, representando os habitantes das várias colónias.
Palácio da Independência
Por esta altura já a fome deve apertar, por isso a ideia é descermos até ao Rossio e almoçar noutro local histórico: o Palácio da Independência, situado no Largo de São Domingos, ao lado do Teatro Nacional D. Maria II, em frente da Igreja de São Domingos (outra visita a não perder) e encostado à Cerca Fernandina.
Foi neste palácio, que na época pertencia a D. Antão de Almada, que se reuniram os 40 conjurados na noite antes da Restauração da Independência de Portugal, que pôs fim ao domínio espanhol, a 1 de Dezembro de 1640.
É preciso entrar no pátio interior para ver à direita as duas chaminés monumentais do século XVII, em forma de cone, a fazerem lembrar as do Palácio Nacional de Sintra. Subindo alguns degraus entra-se no edifício, onde funciona actualmente o restaurante Kantina Chaminés do Palácio, gerido pelo Inatel. O menu muda diariamente, sendo cada dia dedicado à cozinha de uma região diferente de Portugal, e as refeições fazem-se no interior das duas chaminés.
Aqueduto das Águas Livres
Depois do almoço podemos avançar até ao século XVIII e, para ajudar a digestão, o ideal será um passeio ao longo do Aqueduto das Águas Livres, que acaba de reabrir ao público. Construído entre 1731 e 1799, é um impressionante sistema de distribuição de água à cidade de Lisboa, que deixou de ser usado na década de 60 do século XX.
O passeio permite atravessar os 35 arcos do aqueduto (são 941 metros de percurso) que se estendem sobre o vale de Alcântara (e, já agora, recordar os crimes de Diogo Alves, que lançava as suas vítimas daqui de cima), e, sobretudo, ver a cidade de uma forma única.
Largo de São Carlos
Há tempo ainda para uma passagem pelo Largo de São Carlos para comer um pastel de massa tenra ou um pastel de nata no Café Lisboa, um dos vários restaurantes do chef José Avillez, este integrado num espaço do Teatro Nacional de São Carlos, a ópera inaugurada em 1793 para substituir a malograda Ópera do Tejo, destruída pelo terramoto de 1755 poucos meses depois da inauguração.
Hotel Avenida Palace
E agora é altura de passar pelo hotel para descansar um pouco. E já que estamos ainda no século XIX, o melhor será ficarmos instalados no Avenida Palace, entre o Rossio e os Restauradores. O hotel, que inicialmente se chamou Terminus, é do final do século XIX, tendo nascido ligado à Estação Central do Rossio, mesmo ali ao lado. Mas dentro dele pode-se viajar também até aos anos 40 do século XX, altura em que aqui ficaram instalados alguns dos espiões que enchiam Lisboa por causa da guerra. Conta-se que existia uma passagem secreta entre o hotel e a estação, mas essa porta foi fechada e não pode ser visitada.
Estando no Avenida Palace, e provavelmente já cansado depois de um dia tão longo, podemos aproveitar para jantar noutro local com história, e à distância de dois passos: o Restaurante Leão d’Ouro, fundado em 1842 e ponto de encontro de artistas e intelectuais daquele que ficou conhecido como o Grupo do Leão, imortalizado num quadro de Columbano Bordalo Pinheiro.
Segundo dia
Palacete Chafariz d’El Rei – E porque não ir tomar o pequeno-almoço a outra zona da cidade? Regressamos a Alfama, onde ontem percorremos a Cerca Velha, e a um dos pontos desta, o Chafariz d’El Rei. Na parte de cima deste existe um palacete do início do século XX, uma casa particular num curioso estilo neo-mourisco, hoje transformada num pequeno hotel de charme com seis suites. Vale (muito) a pena uma visita. Pode-se tomar um chá, comer um croissant ou uma panqueca, uns scones ou uns ovos, ou optar pelo brunch servido em pleno ambiente de início do século.
Bairro Estrela d’Ouro
E porque o início do século não foi só feito de aristocratas nos seus palacetes, mas também dos muitos operários que vieram para Lisboa para trabalhar nas fábricas, é interessante subir até à Graça e visitar alguma das vilas operárias que surgiram muito nesta zona precisamente na mudança do século XIX para o XX, com a industrialização. O Bairro Estrela d’Ouro é um bom exemplo. Edificado em 1907/8 por iniciativa do industrial de confeitaria Agapito Serra Fernandes, destaca-se pelo painel de azulejos que assinala a entrada. No interior, para além das casas para os operários, existe um palacete que pertencia ao patrão, com capela privativa, lago, cascata e jardim. No passado, o Royal Cine, onde foi projectado o primeiro filme sonoro em Portugal, também pertencia ao conjunto Estrela d’Ouro. E já que está na Graça, pode espreitar outros bairros, como a Vila Sousa ou a Vila Berta, com as suas belíssimas varandas em ferro.
Café Nicola
Regresso à Baixa (sim, andamos um pouco às voltas, mas, já o dissemos, este é mais um passeio pelo tempo do que pelo espaço) para almoçar no Café Nicola. É pena que a sala Art Déco na parte de baixo do café só abra para jantares com fado em algumas noites, mas fiquemos pelo salão principal deste que foi um dos grandes cafés literários da cidade nos finais do século XVIII quando pertencia a um italiano, Nicola Breteiro, e era frequentado pelo poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage.
Mas se viemos até aqui já depois de entrados no século XX é porque o Nicola original encerrou e só reabriu em 1929 pela mão de Joaquim Fonseca Albuquerque e com uma nova fachada desenhada por Norte Júnior. E em 1935 o arquitecto Raul Tojal modificou o interior, dando-lhe o estilo Déco que tem hoje, e que nos convida a viajar até aos anos da II Guerra Mundial, quando os judeus fugidos dos nazis esperavam impacientes nos cafés da Baixa de Lisboa um lugar num dos navios que partisse para os Estados Unidos.
Biblioteca Nacional
E dos anos 1940 para os anos 60. A guerra passou, Lisboa modernizou-se, uma nova arquitectura começou a surgir em vários pontos da cidade, e Porfírio Pardal Monteiro é o arquitecto destes novos tempos. A Biblioteca Nacional (fundada originalmente em 1796 com o nome de Real Biblioteca Pública da Corte e inaugurada no Campo Pequeno em 1969) é um bom local para conhecer o seu trabalho. Podemos sempre requisitar um livro (já agora sobre Lisboa) e ficar a ler na magnífica sala de leitura.
Restaurante Galeto
Para lancharmos ainda nos anos 1960, passagem obrigatória pelo Galeto. Sentamo-nos no longo e labiríntico balcão de madeira deste café-restaurante inaugurado em 1966, e que mantém intacto o espírito da época, e podemos pedir um desses gelados que já não se pedem, um escandaloso Banana Split.
Centro Comercial Apolo 70
Estávamos nos anos 1970 e os portugueses ainda não conheciam os centros comerciais. A abertura do Apolo 70, com cinema, lojas e restaurantes, foi um acontecimento. Curiosamente, muitas décadas — e sobretudo muitos centros comerciais depois — o velhinho Apolo ainda existe, e mantém até algumas das suas lojas mais antigas. É um regresso ao passado, sobretudo para os nostálgicos que ainda se lembram de quando Apolo 70 significava futuro. E, sobretudo, é imprescindível descer à cave para uma visita ao original Museu do Barbeiro.
Fundação Champalimaud
É o símbolo da cidade moderna. O centro onde se faz investigação nas áreas das neurociências e do cancro, ao mesmo tempo que se prestam serviços clínicos. Mas o espaço — o projecto de arquitectura é do arquitecto Charles Correa — pode também ser usado para lazer, seja no jardim ou no Darwin’s Café, onde podemos aproveitar para jantar.
Hotel Myriad
Depois de dois dias (e vários séculos), e de uma primeira noite passada no século XIX, o melhor será terminar esta corrida no tempo no século XXI e na zona mais recente de Lisboa, que nasceu com a Expo 98 e manteve o nome desta exposição mundial. E num dos seus hotéis mais emblemáticos: o Myriad. Aí, num edifício que parece um navio, podemos (finalmente) esticar as pernas e beber um copo de vinho olhando o Tejo — o rio que, melhor do que ninguém, conhece a história desta cidade.