Fugas - Viagens

Bordéus, o despertar da Bela Adormecida

Por Sousa Ribeiro

Superando Lisboa e sucedendo ao Porto, Bordéus venceu a competição para Melhor Destino Europeu 2015. Fomos descobrir uma cidade de cara lavada, orgulhosa da sua aura vinícola mas com outros argumentos para seduzir os turistas após dez anos marcados por uma transformação radical.

Gwenaëlle Towse-Vallet já viveu em Paris, em Londres, em Nova Iorque e em Montreal.

- Agora, depois dessas experiências, sem dúvida enriquecedoras, moro em Bordéus há dez anos. E sabe que mais? Não troco esta cidade por nenhuma delas. Quando me apetece, vou à praia, em Arcachon, aqui bem próxima, ou em passeio até à região basca. E, tanto San Sebastian, como Paris, estão apenas a três horas de comboio, a duas em 2017, admite a responsável do turismo para as relações com a imprensa.

Bordéus, a urbe do sudoeste de França que abriga 750 mil almas, acaba de conquistar o título de Melhor Destino Europeu 2015, superando Lisboa, segunda classificada, e sucedendo ao Porto, a vencedora em 2014. Na base deste sucesso, numa grande competição com outras cidades, entre elas Roma, Amesterdão, Paris, Londres, Bruxelas, Milão, Viena, Istambul, Madrid e Berlim, uma fantástica mobilização desde a primeira hora e durante a maratona de três semanas da votação online (a participação registou um aumento de 6% face ao ano anterior e abrangeu 113 países) que se traduziu em números nunca vistos — Bordéus obteve 42.396 votos, o que corresponde a 17% de um total de 244.696, contra os 37.621 da capital portuguesa.

- É uma grande honra para nós e, ao mesmo tempo, muito excitante, assume Gwenaëlle Towse-Vallet, relativizando a importância do trabalho desenvolvido e altamente elogiado pelas autoridades locais e pela European Best Destination (EBD), uma organização com sede em Bruxelas que tem como objectivo promover e desenvolver o turismo na Europa.

Se o dinamismo da equipa promocional do turismo da cidade e o envolvimento de Alain Juppé, antigo primeiro-ministro e presidente da câmara de Bordéus, são apontados como relevantes no êxito da campanha, ninguém se cansa de valorizar o papel desempenhado pelos meios de comunicação social e a importância de acordos estabelecidos, em tempo oportuno, com clubes desportivos, com restaurantes, com hotéis, bem como instituições locais e regionais, celebridades e os cidadãos anónimos — todos eles contribuindo, de uma forma ou de outra, para tornar mais radioso o futuro de Bordéus, como perspectiva Gwenaëlle Towse-Vallet.

- Esperamos atrair muitos mais turistas. Veja-se o caso do Porto.

A analogia com a cidade portuense parece estar sempre presente e assenta num crescimento de 16% no número de turistas e num encaixe financeiro na ordem dos dez milhões de euros após ser coroada rainha da Europa. Para chegar a este patamar de excelência, Bordéus pretende confirmar a sua posição como destino internacional e se, por um lado, acredita que, de agora em diante, terá ainda uma maior cobertura mediática, por outro, sente que, graças ao novo estatuto, tem argumentos mais válidos para convencer os operadores turísticos americanos, chineses, japoneses e brasileiros, sem ignorar que contará com o forte apoio e promoção em www.europeanbestdestination.org e nas redes sociais, atraindo mais facilmente agências de viagens e companhias aéreas.

O tempo da negligência

Retalhos do céu manchado de meia-dúzia de farrapos de nuvens brilham nas águas serenas do Garonne e o Quai de la Douane, colonizado pelo silêncio, revela-se um lugar aprazível para perscrutar o rio ou, nas minhas costas, a magnificência da elegante Place de la Bourse. De olhar ora fixo no horizonte, ora no pequeno caderno de apontamentos pousado sobre os joelhos, um jovem solitário absorve os prazeres da manhã, de uma luz límpida.

- Estive uma vez em Bordéus mas era criança e não guardo uma única memória dessa viagem feita na companhia dos meus pais. Mais tarde, na minha adolescência, li ocasionalmente um ou outro artigo dedicado à cidade, sentindo-me atraído pela forma tão pungente como descreviam o conjunto arquitectónico do século XVIII, as fachadas clássicas dos seus edifícios, das mais belas em todo o país. Mas, por esta ou por aquela razão, sempre fui adiando a viagem, o regresso, digamos. Até ontem, conta Sylvain Serge Mignon.

Um pássaro pousa ao nosso lado, ergo o olhar e avisto uma chaminé fumegante; não corre um fio de vento na manhã que avança lentamente na sua quietude de fim-de- semana. 

- Não posso dizer que Bordéus me esteja a surpreender porque, pelo conhecimento que tinha, já esperava encontrar toda esta grandiosidade que nos rodeia. Mas está a superar as minhas expectativas – isso tenho de admitir.

À nossa frente, estendendo-se para um lado e para o outro, num total de quatro quilómetros, um longo passeio ribeirinho bordejando a margem esquerda do Garonne, irreconhecível se comparada com um tempo, não tão distante como isso, em que uma palavra resumia na perfeição o quadro que se deparava neste mesmo espaço: negligência. Parques de estacionamento caóticos, gruas e hangares delapidados moldavam a paisagem, em claro contraste com os dias de hoje: o verde sobrepondo-se ao cinzento, na forma de um parque onde não faltam as árvores, áreas reservadas aos jogos que seduzem as crianças, trilhos que cada vez cativam mais ciclistas e toda uma sensação de bem-estar que se dissipa com mais dificuldade do que as brumas que pairam sobre o rio.

- Bordéus tem monumentos grandiosos, edifícios, praças, cais. Todas as fachadas foram limpas, o centro histórico é perfeito para os transeuntes e está dotado de pistas para bicicletas, um pouco como Amesterdão. E não deixe de dar um passeio à noite, a iluminação é simplesmente soberba - convencera-me, umas horas antes, Gwenaëlle Towse-Vallet.

A importância do porto

Fundada pelos romanos no século III a.C., Bordéus conheceu nos últimos anos uma verdadeira metamorfose, semelhando-se a uma bela mulher que foi descurando a sua aparência até ao dia em que, olhando-se ao espelho, viu no rosto os contornos bem definidos desse desleixo e, decidida a não esperar mais tempo, sentiu necessidade de recorrer a um lifting capaz de lhe garantir uma segunda vida. Qual Bela Adormecida, a cidade, visitada por cerca de 2,5 milhões de turistas por ano, assiste a uma espécie de retorno a uma época dourada, mas um retorno ainda mais ambicioso e sustentado nos seus quase 400 monumentos classificados como Património Mundial da UNESCO que abarcam uma área de 1800 hectares (quase metade da superfície total). Definida, ao longo dos séculos, como a grande rival de Paris, Bordéus, com a sua beleza clássica, é um exemplo de estética que atinge a sua expressão máxima nas jóias da Place de la Bourse, dominada pela Fonte das Três Graças, e nas fachadas que, de olhos postos no Garonne, se projectam contra o céu numa extensão de um quilómetro e meio, transformando esta verdadeira continuidade estilística num caso único no continente europeu — e se estão viradas para o rio, logo de costas voltadas para a cidade, é porque foram idealizadas, desde finais do século XVII (e os trabalhos na praça prolongaram-se por dois decénios) para produzir nos visitantes uma impressão de imponência e de prosperidade.

Bordéus vivera, no período medieval, um tempo de pujança que se apoiara no comércio com a Inglaterra e o Norte da Europa. Sob o domínio dos ingleses, a quem devem a reputação internacional do vinho de grande qualidade produzido na região — do outro lado do Canal da Mancha designado vulgarmente por clarete — , a cidade prosperou entre 1154 e 1453 mas é em pleno século XVIII, período em que conhece um segundo renascimento, que verdadeiramente se afirma.

Se o vinho continua, por essa altura, a ser a alma de Bordéus, o comércio com as Antilhas e a África, das especiarias e dos escravos, torna-se no seu coração, com batimentos cada vez mais fortes. Negociantes, marinheiros e armadores, todos eles têm, por essa altura, os olhos plantados na cidade, que não tarda a abrigar o porto mais importante de toda a França e o segundo no mundo, logo a seguir a Londres. Sentindo uma premente necessidade de rasgar novos horizontes, Bordéus começa, gradualmente, a desfazer-se do seu legado medieval e, obedecendo aos impulsos futuristas e visionários dos intendentes Claude Boucher e Louis-Urbain-Aubert de Tourny, com a promessa de recorrerem aos serviços de Jacques Gabriel, Primeiro Arquitecto de Luís XV, o Parlamento e os vereadores aceitam com benevolência a decisão de derrubar uma boa parte das muralhas seculares, de cobrir os fossos e de destruir as suas fortificações. A cidade-medieval, a cidade-fortaleza, caminhava com passos sólidos para se tornar na cidade-clássica: em poucos anos, Bordéus adorna-se com novas avenidas, parques, pavilhões e hotéis ligados ao sector privado, como se a metrópole se transformasse, de um momento para o outro, numa Primavera onde todas as flores desabrochavam.

Grandes obras

E como é agradável, a qualquer hora do dia, vê-las florir no Jardin Public, o elegante jardim inaugurado nessa época de glória, em 1746, mas desenhado de acordo com o estilo inglês um século mais tarde. A uns escassos 200 metros, integrado na área (um total de onze hectares) ocupada pelo pulmão verde da cidade, despontava o ainda mais idoso Jardin Botanique, catalogado meticulosamente e com quase 400 anos de existência (foi fundado em 1629), hoje transferido para o Bairro de la Bastide; já no regresso, quase à saída deste espaço banhado de tranquilidade e tão do agrado dos locais, o Museu de História Natural, alvo de obras de restauro e com reabertura agendada para 2016 — o famoso teatro de marionetas Guignol Guérin, o mais antigo (1853) de França, está por ali perto e é uma alternativa para as crianças e os adultos.  

Um pequeno desvio, para oeste, conduz os meus passos pela Rue de Fondaudège e, virando à esquerda, alcanço a Rue du Dr. Albert Barraud, ao encontro do Palais Gallien, as ruínas de um anfiteatro do século III e o mais impressionante de todos os vestígios romanos em Bordéus, uma cidade que a cada esquina, a cada olhar mais demorado, me vai parecendo mais encantadora do que nunca.

Aqui e acolá, enquanto as sombras nocturnas avançam rapidamente, vou recordando palavras de Gwenaëlle Towse-Vallet.

- Gosto deste estilo de vida, do clima, da descontracção das pessoas, dos muitos lugares onde se pode apreciar bom vinho e a gastronomia. Bordéus é uma cidade deslumbrante, segura e na moda.

De novo a caminho da Place de la Bourse, volto a passar pela Place de la Comédie, para admirar calmamente a perfeição de um rectângulo que domina a praça, o Grand Théâtre, mandado erguer em 1770, outra obra desse tempo de esplendor. Financiado pelos negociantes de Bordéus da loja maçónica L’Amitié e levantado sob a direcção do arquitecto parisiense, Victor Louis, durante o reinado de Luís XVI, o teatro acabaria por inspirar, anos mais tarde, em 1860, a construção da ópera Garnier, em Paris, um dos monumentos mais emblemáticos do Segundo Império e símbolo de ostentação e do poderio de Napoleão III. A sala de espectáculos do Grand Théâtre (no interior do edifício há cafés que nos transportam no tempo) é uma das mais impressionantes do século XVIII e frequentemente comparada às óperas de Versalhes e de Turim, uma beleza que esmaga e que, de tão assombrosa, quase faz esquecer a sua efémera vocação política — em circunstâncias trágicas, em 1870, 1914 e 1941, com Bordéus elevada a capital, foi sede da Assembleia Nacional. 

Mágica é a noite

A noite tomba sobre a cidade, caminho na direcção do Garonne e não tardo a escutar o marulho das suas águas, onde já se espalham as luzes amareladas, contorcendo-se como malabaristas ao sabor da corrente. Mesmo à minha frente, mas ali desde 2006, incluído no projecto de requalificação dos cais e concebido por Michel Corajoud (com a colaboração de Jean Max Llorca e do arquitecto Pierre Gangnet), está o maior espelho de água do mundo, com uma área de 3450 m2, a simbiose perfeita entre água e neblina sobre lajes de granito e tão apreciado pelos mais pequenos e pelos casais de namorados — seguramente ainda mais sedutora no Verão, quando o sol castiga a cidade, do que por estes dias, que não são mais do que um anúncio da Primavera.

É com alguma dificuldade que me desprendo daquela espécie de magnetismo que emana do rio mas logo me deixo enfeitiçar uma vez mais, no momento em que me viro para a cidade, para a Place de la Bourse, de olhos pousados nas luzes cintilantes, iluminando para a direita e para a esquerda as fachadas harmoniosas na sua beleza eterna e intacta de dois séculos.

Gwenaëlle Towse-Vallet já me prevenira mas, no meu cepticismo, em momento algum admitira que Bordéus se transfigurasse num lugar tão mágico quando o dia se extingue. Mas transfigura-se. Lentamente, as suas artérias vão abandonando aquela paz crepuscular para dar lugar, mal a lua se levanta, cheia e pálida, a um formigueiro impetuoso, a uma maré que vai rugindo cada vez mais forte, quando os estudantes, na incessante procura dos prazeres mundanos, enchem a atmosfera com suas vozes. Alguns deles dão início a esta peregrinação nocturna com um copo de Lillet, um aperitivo tradicional feito à base de vinho branco, sumo de laranja e quinino, no Le Régent, na Place Gambetta, hoje uma espécie de ilha esverdeada no meio do intenso movimento do centro da cidade mas ligada, durante o Reinado do Terror que se seguiu à Revolução, à infame recordação de uma guilhotina que cortou as cabeças de 304 alegados contra-revolucionários, dos quais quase meia centena de mulheres.

À medida que a noite avança e a lua sobe no céu, os jovens parecem acompanhar o ritmo de uma e outra, invadindo lugares como a Place de la Victorie, a de St. Pierre, a Place du Parlement e a Camille Julian, muitas vezes antes de um regresso ao ponto de partida, a Place Gambetta, à qual se pode chegar utilizando a Rue de la Porte Dijeaux (uma designação que presta homenagem a uma antiga porta construída em 1748), uma artéria pedonal e paraíso de compras que rivaliza, em termos de comércio, com a Cours de l’Intendance, a Place des Grands Hommes e a Rue Ste.Catherine, que corre paralela ao Garonne ao longo de mais de um quilómetro entre a Place de la Victorie e a Place de la Comédie. 

Quando a manhã desperta, o profano não é mais do que uma memória e, sob uma imponderável luminosidade, recorta-se o sagrado, representado pela Cathédrale St. André, já Património da UNESCO (1998) quando a cidade ainda sonhava com essa classificação e o lugar onde, em 1137, o futuro rei Luís VII casou com Eleanor da Aquitânia (bem como Ana da Áustria e Luís XIII). A parede exterior da nave da catedral data de 1096 mas a maior parte da estrutura foi erguida entre os séculos XIII e XIV; bem mais recente, a renovação do portal do lado norte pôs a nu admiráveis esculturas vestidas de sujidade durante séculos — um paradoxo se pensarmos que muitas delas foram pintadas com cores garridas para atrair um maior número de devotos. Tristemente, a catedral, localizada perto do edifício da Câmara Municipal e considerada, justamente, o mais belo de todos os monumentos religiosos da cidade, serviu de armazém de forragem durante os tempos conturbados da Revolução Francesa e, já mais tarde, no século XIX, foi devastada por um incêndio (o mobiliário actual pertencia a outras igrejas espalhadas pela cidade). 

A aura vinícola

- Não, felizmente Bordéus não é apenas vinho, é uma maneira de viver, como São Francisco, nos Estados Unidos, assume Gwenaëlle Towse-Vallet.

Bordéus organiza, de dois em dois anos, a Festa do Vinho (em 2016 terá lugar entre 23 e 26 de Junho e também para o ano está prevista a inauguração do Museu do Vinho) e, por essa altura, as ruas enchem-se de apreciadores e simples curiosos. Com ou sem celebração, em Bordéus bebe-se e respira-se vinho e as possibilidades de o turista se embrenhar neste admirável mundo velho de séculos, tão íntimo da cidade e da região como um cordão umbilical de um filho e de uma mãe, multiplicam-se como as vinhas em terrenos que se perdem para lá do horizonte. O posto de turismo propõe um grande número de circuitos, de carro, de bicicleta ou de barco, degustações, visitas clássicas aos châteaux, dias gastronómicos em Margaux, descoberta de três diferentes vinhas ou de vinhas classificadas, como o Médoc 1855, uma variedade de ofertas que certamente deixará os admiradores ébrios de… felicidade. Eu, talvez mais seduzido pela lenda, prefiro percorrer os poucos quilómetros que me separam de Saint-Emilion, a charmosa aldeia medieval onde a proeminente arquitectura e a reputação dos vinhos são como irmãos inseparáveis.

Permito que a lenda reze.

No século VIII, um monge bretão fugiu de Vannes, a sua cidade-natal, para procurar refúgio numa das grutas de um lugar chamado Ascum bas (o antigo nome da aldeia). Emilion era o nome desse monge em fuga. Vivendo a sua vida de eremita, Emilion realizou alguns milagres e rapidamente se tornou famoso na região e mesmo para lá das suas fronteiras. Com a mesma celeridade, o monge viu-se rodeado de muitos discípulos e, com a ajuda destes, evangelizou o lugar e transformou-o num importante centro religioso.

Em Saint-Emilion, o trabalho do homem e a natureza sempre viveram numa perfeita harmonia, como harmonioso é o quadro composto por vinhedos e conjunto arquitectónico. Em 1999 e pela primeira vez, umas vinhas passaram a integrar a lista de Património Mundial da UNESCO como Paisagem Cultural — as de Saint-Emilion.

Ergo o copo contra os raios tépidos do sol. É tempo de regressar a Bordéus e de redescobrir ainda, durante mais umas horas, uma boa parte do seu legado.

Pontes sobre o Garonne

Património Mundial da UNESCO desde 2007, permanece a dúvida se esta classificação é a causa ou o efeito deste rejuvenescimento da cidade. A sua monumentalidade nunca a abandonou mas a imagem que guardo de Bordéus, dos últimos anos do século passado, está mais associada a uma atmosfera decrépita, como uma idosa cansada da vida, às suas ruas estreitas que, embora protegidas por André Malraux, o escritor que foi ministro da cultura (o primeiro da era moderna depois de Charles de Gaulle ter criado a pasta, em 1958, quando regressou à presidência da república), pouco mais tinham para oferecer do que fachadas negras e gastas pelo tempo. 

Como um sol resplandecente que ocupa um espaço onde antes cavalgavam nuvens cinzentas, Bordéus sai da penumbra e potencia a infinitude da sua beleza, tão bem expressa na histórica Esplanade des Quincones, uma praça idealizada em 1820, com a sua elegante fonte que é um monumento aos Girondinos, um grupo de deputados, moderados e burgueses, da Assembleia Nacional durante a Revolução Francesa — 22 dos quais executados em 1793 depois de serem acusados de actividades contra-revolucionárias.

Regresso ao rio e caminho ao longo da margem esquerda até me surgir no campo visual a Pont de Pierre, a primeira em Bordéus, autorizada por Napoleão Bonaparte e inaugurada em 1822. Até essa altura, a travessia entre as duas margens do Garonne era feita de barco e, após a sua construção, permaneceu durante 150 anos como a única a ligar o centro histórico ao bairro de La Bastide. Nos dias de hoje, a ponte de pedra, com os seus 17 arcos, tantos como as letras do nome do imperador, é cruzada por modernos eléctricos movidos a energia solar mas continua a ter um lugar muito especial no coração dos habitantes da cidade. Situada entre esta e a Pont d’Aquitaine, a Jacques-Chaban Delmas (a quinta a ser erguida sobre o rio e assim denominada para prestar tributo ao antigo general da Resistência durante a II Guerra Mundial que mais tarde se tornou presidente da câmara de Bordéus), com o seu toque de modernidade, é uma rival à altura, especialmente à noite, quando a iluminação lhe transmite ainda mais encanto e uma imponência que as suas medidas ajudam a exacerbar — 575 metros de comprimento e 77 de altura, o que lhe confere o estatuto de ponte levadiça mais alta da Europa. 

O Garonne corre silencioso e reflecte uma vez mais o brilho das luzes, as estrelas brilham e até a lua, sempre cheia, lança sobre a cidade uma luz menos amedrontada.

Gwenaëlle Towse-Vallet já visitou Lisboa, o ano passado, por esta mesma altura, acabando por se render à maior concorrente de Bordéus na corrida pelo estatuto de Melhor Destino Europeu 2015.

- As condições atmosféricas não eram as ideais mas adorei a atmosfera, os bares de vinho no Bairro Alto; pareceu-me uma cidade muito autêntica, com os antigos eléctricos amarelos e pessoas simpáticas. E o facto de, tal como Bordéus, também ter um rio.

Não cheguei a perguntar mas fiquei com a impressão de que, a exemplo do que acontece com Paris, Londres, Nova Iorque e Montreal, Gwenaëlle Towse-Vallet não trocava Bordéus por Lisboa. Talvez porque tudo brilha no reino da Bela Adormecida.


GUIA PRÁTICO

Como ir

A partir de Lisboa, a TAP voa directa e diariamente para Bordéus com tarifas (tendo por base a última semana de Março) a rondar os 190 euros (ida e volta). Mais barata (depende das datas escolhidas), também a easyJet faz a ligação entre a capital portuguesa e aquela cidade francesa, com preços (igualmente ida e volta) próximos dos 120 euros. Embora, tal como a easyJet, não ofereça voos diários, a Ryanair pode constituir alternativa bem mais barata para quem pretende visitar Bordéus — se bem que o faça apenas com partida do Porto (ida e volta por cerca de 70 euros). Para quem preferir utilizar veículo próprio, Bordéus dista 1150 quilómetros de Lisboa, um trajecto que pode percorrer quase sempre em auto-estrada (custo das portagens a rondar os 50 euros), a exemplo do que acontece desde o Porto (qualquer coisa como 33 euros e uma distância de mil quilómetros).  

Quando ir

Bordéus pode ser visitada em qualquer altura do ano mas a melhor época é durante a Primavera ou nas primeiras semanas do Outono, quando as temperaturas são mais amenas. A cidade, situada perto da costa, beneficia de um clima temperado por influência do Oceano Atlântico e do estuário do Gironde, com invernos não muito frios e verões cada vez mais quentes.

Onde comer 

O que não falta em Bordéus são bons restaurantes mas um dos melhores, também pela sua localização, nos Quais des Queriés, 33, construído sobre pilares que se debruçam (na margem direita) sobre o Garonne e mesmo em frente à Place de la Bourse, é o L’Estacade (www.estacade-restaurant.com), um espaço agradável que mistura os sabores do Mediterrâneo e do Atlântico. Outro lugar que não desilude — e a um preço acessível — é o Le Saint-Georges, na Place Camille Jullian, 2, com uma cozinha típica do sudoeste da França e uma decoração focada na Sétima Arte. Mas, melhor ainda, a La Brasserie Bordelaise (www.brasserie-bordelaise.fr), na Rue Saint-Rémi, 50, um autêntico templo da gastronomia do sudoeste (não deixe de provar, quando possível, os espargos de Blayais ou as ostras de Oléron ou, ainda, o carpaccio de pato com azeite e trufas) aberto diariamente para jantares.

Onde dormir

Bordéus é uma cidade que proporciona agradáveis surpresas para quem viaja com orçamentos mais reduzidos. Entre elas, o Auberge de Jeunesse (www.auberge-jeunesse-bordeaux.com), na Cours Barbey, 22, com uma tarifa diária de 23 euros que inclui, entre outras facilidades (café-bar, cozinha, lavandaria e Internet), pequeno-almoço. O albergue de juventude, situado no coração do bairro de Saint-Jean, a apenas dez minutos a pé da estação ferroviária com o mesmo nome, a 15 do centro histórico e também próximo da Place de la Victoire, aceita reservas para um longo período mas somente a quem apresentar prova de estar a estudar na cidade — todos os outros, de passagem, não poderão prolongar a sua estada mais do que três noites. Para aqueles que, em viagem, não abdicam de um certo luxo, a cidade oferece alternativas verdadeiramente sumptuosas, como a Maison Fredon (www.latupina.com/maison-d-hotes-fredon-bordeaux), na Rue Porte de la Monnaie, 5 (a recepção funciona no restaurante La Tupina, mesmo em frente), num elegante imóvel do século XVIII inteiramente renovado, com preços entre os 180 e os 250 euros na época alta (varia consoante a dimensão do quarto escolhido e, no total, são apenas cinco) e com a possibilidade de, mediante o pagamento de mais 140 euros, jantar no referido restaurante, uma tarifa que corresponde a uma ocupação dupla e com direito a vinho e ao pequeno-almoço no dia seguinte. Um pouco mais barato, com tarifas entre os 90 e os 130 euros (150 para a Suite Prestige), o Hôtel des 4 soeurs, um dos históricos de Bordéus, está situado a dois passos da Place des Quincones e do Grand Théâtre, contando com 34 quartos que foram alvo de uma completa reforma em 2007 e onde, em 1850, ficou alojado o compositor alemão Richard Wagner, dividido entre compor a Lohengrin (que estreou nesse ano) e a sua relação com a jovem — e casada — pianista Jessie Taylor, que ele conhecera dois anos antes em Dresden.

A visitar

Construído em 1824 como armazém para os raros e exóticos produtos (café, cacau, amendoins, baunilha, especiarias, açúcar e madeiras preciosas) provenientes das colónias francesas, do Brasil ou da República Dominicana, o entreposto Lainé acolhe no seu amplo espaço o CAPC, o Museu de Arte Contemporânea, com instalações e exposições temporárias da corrente artística dos últimos 40 anos. Outro museu — coexistem onze na cidade — que justifica amplamente uma vista é o Musée d’Aquitaine, na Cours Pasteur, 20, com uma mostra da história e da etnografia de Bordéus desde os primórdios, com artefactos que incluem algumas esculturas em pedra de mulheres e uma importante colecção de estelas galo-romanas, estátuas e cerâmicas. A não perder, também, o Museu de Artes Decorativas, instalado numa casa senhorial cuja construção data de 1779, o de Belas Artes, para uma aproximação aos nomes mais sonantes da pintura europeia, a Basílica de St. Michel e a sua torre sineira (a segunda mais alta do país com 114 metros), a de Saint-Seurin (do século VI e a mais antiga de Bordéus), bem como a Porte Cailhau, uma entrada real da cidade construída em 1494 e com uma altura de 35 metros, e o Grosse Cloche, o sino que toca seis vezes por ano (grandes eventos) e pesa 7750 quilos. 

Informações úteis

Os cidadãos portugueses apenas necessitam de um documento de identificação (passaporte, cartão de cidadão ou bilhete de identidade) para entrar em França. Bordéus tem um consulado português, na Rue Henri Rodel, 11 (telemóvel + 33 556 00 68 20), com um horário de atendimento em dias úteis entre as 9h e as 15h, excepto às quintas-feiras (encerra às 13h). Com preços a partir de 21 euros, o City Pass (disponível para um, dois ou três dias) é uma das formas mais económicas para visitar a cidade e arredores, incluindo museus e transportes.

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