Fugas - Viagens

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O homem que pinta corações

Por Mário Lopes

Desde 2011 que começaram a aparecer nas paredes de São Miguel, Açores. Numa rua de Ponta Delgada, numa casa abandonada na Caloura. Corações. Pinturas de corações a nascer nas paredes da ilha. Yves Decoster, belga tornado açoriano há 26 anos, tem uma história para contar.

Não é preciso procurar nos lugares mais escondidos, ainda que também os encontremos neles. Aliás, não é preciso sequer saber que existem para reparar neles enquanto se viaja pela ilha de São Miguel, 65 quilómetros de comprimento para 15 de largura. Em algum momento repararão naqueles corações estilizados como em BD ou quadro de Pop Art, envolvidos por flores, plantas, animais. Alguns surpreendem-nos numa esquina em Ponta Delgada, outras descobrem-se à entrada de um café. Aparecem perante nós quando andamos por Lagoa ou na fachada de uma casa abandonada enquanto conduzimos pelas vias rápidas.

Há 278 pinturas destes corações espalhadas por São Miguel. Quanto tudo tiver terminado, serão 365, sem repetições. “Um para cada dia do ano.” É o autor que o diz. Chama-se Yves Decoster e deve ser o belga mais açoriano que existe. É o que intuímos quando fazemos as contas aos anos que vive em São Miguel desde que chegou, nos anos 1980. É o que temos por certo depois de passar algum tempo a ouvi-lo no seu português, o de um belga com sotaque micaelense perfeito.

Na ilha, todos conhecem os corações de Yves. E, desde que desenhou o primeiro, na Lagoa, em 2011, muitos de fora também os conheceram. Intrigados, foram em busca do seu autor e acabaram por levar para casa um coração belga-açoriano como recordação. Mas porquê passar os dias a cobrir São Miguel de corações? Foi para o descobrir que procurámos Yves. Como suspeitávamos, é uma questão de amor.

Passado o portão que nos é aberto por Yves Decoster, montado entre as paredes coloridas que protegem o interior do terreno da vista de quem passa por aquela rua na localidade do Livramento, descobre-se um refúgio dentro desse outro refúgio que é, para quem a visita, a ilha de São Miguel. Uma pequena elevação conduz à casa que acolheu durante mais de duas décadas o Pavilon Villa, restaurante onde a culinária portuguesa se cruzava com a belga e que, dizem-nos, era espaço muito considerado pelo seu requintado recato. À direita, o olhar segue o curto declive e demora-se um pouco na imponente araucária que se ergue, destacada ao centro, acima das restantes árvores. Demorar-se-á mais ainda a ver o burro e o cavalo que caminham lentamente sobre a relva num invejável dolce far niente.

O cavalo foi salvo de uma vida de maus tratos, explica Yves. Resgatado e de novo saudável, passeia pachorrento pelos seus novos domínios — vida abençoada e sem preocupações, esta que leva agora. Para ele, o refúgio é este pequeno terreno. Para Yves Decoster, belga nascido há quase seis décadas em Colónia, Alemanha, onde o pai militar estava estacionado, o refúgio é toda a ilha. Na verdade, refúgio já nem é a palavra certa.

Todo o mundo e solidão

Yves e Roland, o seu companheiro, aterraram pela primeira vez nos Açores em 1982. Voltaram todos os anos até 1988. Em 1989 já não precisaram de voltar. “Depois de seis anos a vir aqui de férias decidimos que tínhamos que mudar a nossa vida. Se estás sempre a pensar nos Açores, e era isso que acontecia, queres viver cá.” Tanto queriam viver nos Açores que, desde que chegaram, deixando para trás a empresa de publicidade e decoração que lhes ocupara o tempo durante dez anos, não mais saíram. “Era qualquer coisa que nos chamava”, diz Yves, conversa directa e sorriso traquina pronto a espreitar a cada momento, apesar da serenidade ímplicita naquilo que diz. “Aqui tens que ter paz de alma, tens que estar bem contigo mesmo. Esta ilha tem dinamismo, mas é de outro tipo. É o do tempo, o da luz. Vivemos aqui há 26 anos e, até hoje, nada foi aborrecido. Se eu quiser, apanho um avião amanhã. Mas não há necessidade.” Nunca houve.

Sentamo-nos com ele numa das divisões da casa que foi outrora restaurante. “Ainda nos telefonam para marcar refeições, mas está completamente fechado”, comenta. “Foram 23 anos e era muito cansativo. Tínhamos que parar.” Agora, Yves, que estudou pintura na Academia das Artes de Antuérpia, pode por exemplo dedicar mais tempo aos seus quadros. Vemos muitos deles pendurados nas paredes ou encostados no chão à espera de arranjar algures um espaço para si na casa ou numa próxima exposição. Montou a primeira no ano em que chegou a São Miguel e continuou a fazê-las regularmente na ilha. Na propriedade, além da casa que era restaurante, tem a sua residência e o atelier, o “pequeno casulo” onde passa as noites quando chega a inspiração. Sempre a noite. “Não pinto durante o dia. A noite é sagrada.” Põe a tocar música, a “melancólica” (“os Nocturnos de Chopin, Mahler, Lou Reed”), e entrega-se à tela e aos pincéis.

Em 2011, passou a pintar também fora do atelier. Fora visitar um amigo a Lagoa e uma casa no terreno chamou-lhe a atenção. “Tinha uma janela com basalto à volta e estava acimentada.” Aos olhos de Yves, estava ali uma moldura. Perguntou se podia pintá-la e fê-lo numa das tardes seguintes. Enquanto olhava a parede em branco pensou no que poderia desenhar ali. “Gosto desta ilha, da sua natureza e das suas pessoas. Pensei no coração e em flores. Mensagem: o meu amor pela natureza e o amor pelas pessoas.”

De regresso a casa, terminada a pintura, recebe um telefonema. Era a mulher do amigo. Assistente social, regressara do trabalho cansada e deprimida depois de um dia particularmente difícil. Mas estava feliz ao telefone. O seu espírito animara-se ao deparar com a pintura que Yves deixara e ligou para agradecer o sorriso que lhe devolvera. “Se fazes as pessoas felizes com um pequeno desenho, tens que continuar”, disse-lhe depois Roland. Yves assim fez. Até hoje, não mais parou.

Depois dessa primeira pintura, regressou a Lagoa em busca de mais paredes que pudesse pintar. Começou também a escrever o seu endereço electrónico junto à assinatura. “Boom! Foi uma bola de neve.” Não mais parou de encher São Miguel de flores e corações. No dia anterior à nossa visita, pintara o número 278. “Fi-lo na Caloura. São duas girafas que se beijam”, conta. Faltam apenas 87 para cumprir o objectivo: um coração por cada dia do ano. “Depois acabo. Não posso continuar nisto para sempre”, confessa com uma gargalhada.

Não faltarão coisas para fazer ao belga mais açoriano que existe. Ou açoriano mais belga, que no caso, já vai dar ao mesmo. “Os açorianos são como os belgas. São pessoas afáveis, mas que não te dizem que a porta está aberta. Isso leva tempo e a amizade constrói-se demoradamente. Com tempo, serás ou não aceite. O mesmo acontece com os açorianos.”

Claro que a realidade não é homogénea. As diferenças de temperamento e de traços culturais que marcam cada uma das ilhas do arquipélago manifestam-se também no interior de São Miguel. “Há sítios em que as pessoas sussurram e são mais coscuvilheiras, há outros, como Rabo de Peixe, de que gosto muito porque te dizem as coisas na cara. Prefiro assim.” O melhor, diz, é que a condição insular obriga à convivência. “Ricos, pobres, todos estão misturados. Acho que isso é das coisas mais bonitas desta ilha. As pessoas aceitam-se porque sabem que têm que viver juntas.”  

Yves Decoster trocou a Bélgica pelos Açores porque no país onde crescera a vida se estava a tornar “muito materialista e muito egoísta”. E porque, ano após ano, sentia os Açores chamarem-no novamente. Aqui consegue ter todo o mundo que deseja e, ao mesmo tempo, aceder a “uma certa solidão” de que necessita no seu quotidiano. “Este é o sítio onde vou ficar. É aqui que vou morrer.”

Está em São Miguel há 26 anos e a ilha ainda tem segredos para revelar. “Ah, isto não acaba”, suspira. E depois conta-nos de um pasto em Salga, no Nordeste, por trás de uma igreja, por trás do cemitério. O mar, as falésias, uma pequena casa. Ao deparar-se com aquele cenário, disse para si mesmo: “Quero ficar aqui para o resto da minha vida.” Talvez pinte ali um coração.

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