Fugas - Viagens

  • A partida do
comboio foi
assinalada
com pompa e
circunstância,
com direito
a coro de
música
clássica. Miguel Pires
    A partida do comboio foi assinalada com pompa e circunstância, com direito a coro de música clássica. Miguel Pires
  • Chiavenna,
uma cidade
ideal “para
um fim-desemana
curto ou
prolongado,
quer se goste
de desporto,
natureza ou
história”
    Chiavenna, uma cidade ideal “para um fim-desemana curto ou prolongado, quer se goste de desporto, natureza ou história” DR
  • Valtellina,
um dos
quatro vales
que fazem
de cortina
para o centro
da Europa
— o nosso
percurso vai
atravessando
aldeias e
vilas antigas
rodeadas
de prados e
vinhas.
    Valtellina, um dos quatro vales que fazem de cortina para o centro da Europa — o nosso percurso vai atravessando aldeias e vilas antigas rodeadas de prados e vinhas. DR
  • Forme Bitto nella casera
    Forme Bitto nella casera DR
  • O Berlina
Express
pode não
ter o mesmo
charme do
slow train que
nos trouxe
de Milão
mas permite
apreciar
melhor a
paisagem.
    O Berlina Express pode não ter o mesmo charme do slow train que nos trouxe de Milão mas permite apreciar melhor a paisagem. DR
  • Triacca-La
Gatta, no sopé
da montanha,
às portas
de Tirano
    Triacca-La Gatta, no sopé da montanha, às portas de Tirano DR

No comboio ascendente entre Valtellina e Valposchiavo

Por Miguel Pires

A Expo Milão 2015 está aí e as regiões em seu redor mexem-se para captar parte dos 20 milhões de visitantes que se esperam no evento. Fizemos a viagem de comboio entre a cidade e as zonas transfronteiriças de Valtellina (Itália) e Valposchiavo (Suíça) em busca da gastronomia local.

Não é todos os dias que se pode encontrar um comboio da primeira metade do século passado prestes a partir na Estação Central de Milão, em Itália. Portanto o momento é de pompa e circunstância e há mesmo direito a coro de música clássica e quarteto de cordas. Já no interior das carruagens, de compartimentos impecavelmente forrados a madeira, os convidados vão-se acomodando nos bancos de veludo. A música de Adele que sai do precário sistema de som não combina com o momento. Porém, quando o comboio finalmente parte, pelas onze da manhã, já ninguém se incomoda com o detalhe.

O destino é Tirano, 150km a norte do país, na província de Sondrio, às portas da Suíça, numa jornada que terá continuidade no dia seguinte, já neste país, num outro comboio. A iniciativa tem um propósito: mostrar a uma comitiva de jornalistas e operadores de turismo a gastronomia das regiões transfronteiriças de Valtellina (Itália) e Valposchiavo (Suiça), com o intuito de atrair uma fatia dos 20 milhões de visitantes que se espera que se desloquem à Expo Milão 2015, entre Maio e Outubro. Segundo Matteo Mauri , responsável pelas relações institucionais do evento, “a Expo é uma oportunidade”. “Não queremos que seja apenas um evento que dure seis meses, mas também uma ocasião para mostrar o que de melhor temos à nossa volta. Não queremos que as pessoas venham a Milão e depois partam para Paris ou Londres. Queremos que visitem a região. Como, neste caso, as regiões de Valtellina e Valposchiavo”.

Uma hora depois estamos na carruagem-restaurante para o almoço, preparado por chefs da região com estrelas Michelin. Os aperitivos foram servidos ainda nas cabines: chips de bresaola, esferas de queijo e polenta cremosa, produtos do território numa interpretação contemporânea.

Os montes Resegone surgem agora na paisagem. Dantes nenhum prédio podia subir de forma a perturbar a vista, mas hoje já não é bem assim. Durante meia hora ladeamos uma boa parte dos 45 quilómetros do lago Como com vários  túneis pelo meio. Procuro o cliché, a casa de George Clooney ou, pelo menos, a bela mansão onde filmou Ocean’s Twelve. Em vão. Talvez me tenha passado despercebida enquanto apreciava o bife tártaro com variações à base de queijos locais de Antonio Borruso, do restaurante Umami do Hotel Eden (Bormio) ou os gnocchetti de trigo sarraceno com cogumelos porcini de Ivan Schenatti, filho da região, mas a oficiar em Paris, no restaurante que leva o seu nome. Tendo em conta o balouçar habitual num comboio de respeitável idade, nada descarrilou: nem a confecção, nem os empratamentos, nem os copos de vinho que escorriam soltos em gargantas sequiosas.

Quando o lago Como acaba começa a região de Valtellina, um dos quatro vales que fazem de cortina para o centro da Europa. Uma boa parte do território é composto por áreas protegidas, entre monumentos, reservas e parques naturais e o nosso percurso vai atravessando aldeias e vilas antigas, com as suas torres, castelos e igrejas, rodeadas de prados e vinhas. Não é de espantar que este seja um paraíso para caminhantes de montanha e ciclistas corajosos, mas não nos esforcemos em vão.

Perto de Sondrio, a capital da província, com pouco mais de vinte mil habitantes, dá-se um episódio insólito: o nosso slow train ultrapassa o intercidades local, perante a gargalhada da comitiva. Por esta altura começam a aparecer os primeiros campos de vinhas em socalcos. Não têm a espectacularidade de um vale do Douro, mas não deixam de constituir um belo quadro.

Tirano é a ultima paragem em Itália e onde acaba a viagem no comboio de época. Amanhã mudamos para o moderno Bernina Express, mas, entretanto, para não perdermos o hábito, já temos à espera um daqueles comboios de rodas para um city tour. Com menos encanto, mas também com menos solavancos, percorremos o pequeno município tendo como cenário os terraços de vinhas nas encostas que o circundam. A imponente basílica destaca-se entre o casario e ao contorná-la entramos no centro histórico, com paragem no recém-restaurado Palácio Salis (século XVI), cujas salas albergam preciosos frescos e um conjunto de quadros e objectos de época. Como é comum em Itália, também aqui se tropeça num pequeno palácio a cada esquina, com alguns ainda habitados e a passarem de geração em geração nas mesmas famílias.

 

Os vinhos Nebiollo

Num desses edificados, próximo da sede do município, fica a Rivetti&Lauro, uma das muitas vinícolas da região que produzem sobretudo tintos à base da casta Nebbiolo. Mais ligeiros, com menos taninos e menos corpo do que os famosos e prestigiados Barolo e Barbaresco da região vizinha de Piemonte, os vinhos de Valtellina possuem uma qualidade média muito aceitável, tendo em conta o seu preço (em geral) acessível. Mas a grande revelação para a maioria dos presentes é mesmo o Bitto Storico, o queijo local que nos servem a acompanhar alguns dos vinhos da casa.

“Coloquem o queijo na boca e deixem os sabores evidenciarem-se ao derreter-se com o calor do corpo”, indica Virginio Cattaneo, dono do restaurante La Brace di Forcola (Sondrio) e membro do Consórcio de Salvaguarda do Bitto Storico. O sabor lácteo e o toque salgado com um ligeiro pico revela a componente principal de origem (leite de vaca) e um bom período de cura. O queijo foi raspado numa mandolina e as tiras finas e leves, como uma folha de papel, facilitam o exercício proposto por Cattaneo. Contudo, impressionante mesmo é o segundo exemplar com mais tempo de envelhecimento (é comum encontrar aluns Bito com 10 anos de cura) e uma percentagem de leite de cabra na sua composição. O sabor é naturalmente mais forte e aguçado. Puro umami!

Há ainda mais uma prova de vinhos num outro produtor local, a Casa Triacca-La Gatta, no sopé da montanha, ainda às portas de Tirano. Os Alpes cobertos de neve avistam-se ao longe mas a maior parte dos treze hectares de vinhas de Nebbiolo estão surpreendentemente a pouco mais de 300 metros de altura (só para se ter a noção do que significa, em Estremoz, no Alentejo, há vinhas a uma cota superior).

A imagem é bela e os terraços de vinhedos lembram de novo o Douro, não fossem os picos nevados e as caves instaladas num antigo convento do século XVI, com uma arquitectura exterior a lembrar que estamos mais próximos (culturalmente) da Baviera do que do mediterrâneo.

 

Um jantar nas ruínas

O sol há muito se foi, escondido pelas montanhas. Porém, a longa jornada não termina sem mais uma etapa à mesa, desta vez no Castelo Grumello. O autocarro deixa-nos a uma certa distância do cume onde fica esta antiga fortaleza militar composta por um castelo gémeo e três torres: uma virada para Tirano, outra para Sondrio e a terceira, actualmente, para lado algum, dado que dela apenas resta uma ruína. A vista já no lusco-fusco vale o exercício físico. E abre o apetite. 

“Os Alpes eram vistos como uma barreira, mas agora estão-se a valorizar as coisas locais e na alimentação passa-se o mesmo. A cozinha é uma cozinha pobre mas rica de sabores”, refere o presidente da Câmara de Sondrio, Alcidi di Molteni.

O primeiro prato é disso exemplo: massa de trigo sarraceno com queijo, batata e couve. Prato de conforto, guloso, típico de montanha. Muito bom! Dispensa-se a faca e come-se apenas com o garfo. Os locais, mesmo as individualidades, rapam tudo, já os mais citadinos deixam uma boa parte das batatas no prato. Que sacrilégio...

A noite é passada num pequeno hotel de charme de montanha, a dez, quinze quilómetros de Tirano. Mal dá para apreciar a vista ou aproveitar as amenities. Chegamos tarde e partiremos cedo.

 

Vistas de tirar o fôlego

A estrada que no dia seguinte nos leva de regresso a Tirano serpenteia parte do vale, onde a vinha tem concorrentes a disputar-lhe a terra: o trigo sarraceno e as macieiras carregadas de maçãs que salpicam a paisagem de verde e vermelho. Os campos de oliveiras parecem também querer fazer parte do grupo, numa era em que o azeite começa a disputar a hegemonia da manteiga como gordura dominante na gastronomia das regiões de montanha.

O trigo sarraceno faz parte de cozinhados típicos da zona, como a polenta ou o pizzocheri (massa). O falso cereal, que se cultiva no vale, esteve em produção decrescente por falta de interesse das gerações mais novas em trabalhar o campo. Por isso, para compensar, tiveram passar a importá-lo da Alemanha. Contudo, no últimos tempos a tendência das dietas sem glúten aumentou o consumo e trouxe um novo alento produtivo ao seu cultivo.

O comboio parte às 8h52 e minutos depois já estamos em território suíço. O Berlina Express pode não ter o mesmo charme do slow train que nos trouxe de Milão. Todavia, é mais confortável, além de permitir apreciar melhor a paisagem com as suas janelas panorâmicas. Em 2010 celebrou-se o centenário do primeiro comboio a vapor que fazia, no Verão, o percurso entre Valposchiavo e St. Moritz (no Inverno, só começou a funcionar em 1930). A linha ferroviária e grande parte do perímetro em volta são património da UNESCO e não há como fugir ao lugar comum para descrever o percurso: do famoso elíptico viaduto de Brusio às margens do rio e do lago Poschiavo, a subida pela montanha até à Marmita dei Giganti, em Cavaglia, passando depois por Alp Grüm (a 2091m), Ospizio Bernina (a 2253m), Passagem de Diavolezza e o glaciar de Morteratsch. A paisagem é literalmente de tirar o fôlego.

Pausa em Poschiavo. Primeiro para um aperitivo na Casa Tomé, um impressionante símbolo da cultura camponesa dos Alpes, datado de 1352. Os seus dois últimos habitantes, (duas irmãs) que ali moraram até aos anos de 1990, viviam praticamente isolados e indiferentes ao que se passava em volta e aos confortos da vida moderna. A casa, um  monólito no meio de uma vila que se transformou bastante desde o século XIX, faz hoje parte do pólo museológico da região e a visita não só é interessante pela peculiaridade descrita, mas igualmente como mostra de actividades “do campo à mesa”, como o processo de transformação do trigo sarraceno em alimento, por exemplo. Poschiavo é uma localidade onde vale a pena ficar algum tempo para passear entre ruelas sempre muito limpas e apreciar o edificado neoclássico e os monumentos medievais. Quando a fome aperta, tal como na parte italiana, o sarraceno e o pizzocheri são ingrediente e produto dominantes da gastronomia local. Mas não são os únicos, claro: há que provar o capunet (folhas de espinafres enroladas), risotto de luganighetta (salsicha), truta, presunto de gamo, a brasciadela (bagel de centeio com sementes de aneto) ou a pastelaria à base de maçã, pêra e frutos secos.

 

Chiavenna no regresso

De novo a caminho, as obras na linha férrea perto de St. Moritz fazem com que tenhamos de trocar o comboio pelo autocarro. A paisagem continua a ser incrível ou não fosse esta uma das estâncias de férias (de neve, mas não só) mais famosas do mundo. Circundamos o local sem parar e, embora seja possível fazer o regresso a Milão de comboio, o percurso será feito sobre rodas para possibilitar a paragem em Chiavenna, já de novo em Itália. Uma brochura da edilidade local refere que a pequena cidade “é um local ideal para um fim de semana curto ou prolongado, quer se goste de desporto, natureza ou história”. Assim o fazemos nas horas seguintes, continuando entre a natureza e um dos vários monumentos locais (o Palácio Vertemate) de uma região em tempos abastada, pois por ali passava muito do comércio com a Europa Central. Já quanto ao desporto, a actividade principal continua a ser a elevação do copo e do garfo da mesa até à boca. Afinal, estamos em Itália e esta é uma viagem gastronómica. 

A Fugas viajou a convite do Progetto Valtellina Valposchiavo Expo e com o apoio da TAP

 

 

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