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A Cuba das jóias patrimoniais e das "majestosas montanhas verdes"

Por Andreia Marques Pereira, Sandra Silva Costa

Estamos longe de Havana, geográfica e, sobretudo, mentalmente, e tão pouco temos praias a intrometerem-se. Longe dos cartazes turísticos, portanto, mas perto da essência cubana, que se faz de história e natureza. De Remédios a Cienfuegos, daqui até Trinidad, percorremos cidades que são jóias patrimoniais.

O carnaval é uma parranda

É verdade que o poeta (Ary dos Santos) escreveu que o “Natal é quando um homem quiser” mas não esperávamos encontrá-lo em Maio em Cuba – falha nossa porque o poema segue: “Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser”. Não é comum, mesmo em Remédios, a pequena cidade do norte da ilha que é, a poucos quilómetros da costa, passagem (quase) obrigatória a caminho dos cayos Santa Maria e Las Brujas. Neste sentido somos privilegiados – fez-se Natal, literalmente, para turista ver. 

E aqui em Remédios isso significa uma batalha musical e de fogos de artifício, num ritual centenário que começou como forma de levar as pessoas à igreja para a missa do galo. Não só resultou como evoluiu para esta espécie de carnaval fora do tempo, Parrandas de Remedios, que é hoje uma das maiores festas populares cubanas. E então é sexta-feira e uma pequena multidão surge para nos dar música e muita confusão na praça principal da cidade que é uma das mais antigas do país: a data oficial aponta para a fundação em 1578, a data informal para 1513 (o que faria dela a segunda mais antiga, à frente, por exemplo de Trinidad) – a diferença é que em 1513 era propriedade privada.
O sol é inclemente nesta espécie de plaza mayor de Remédios (monumento nacional), que leva o nome de Jose Martí. É aqui que parece concentrar-se a vida desta cidade pequena e sem atractivos de maior excepto os que a arquitectura colonial nos dá e as gentes preenchem. Há quem veja nela uma mini-Trinidad, os edifícios coloridos a desenharem-na baixa e em harmonia, com algum comércio e um dia-a-dia que parece passar sem pressas. 

Sentados no café Louvre, na praça Martí, quase defronte à igreja de São João Baptista, a principal da cidade, edifício volumoso e atarracado que apenas sobe na torre sineira de três andares, é fácil entrar nesse ritmo lânguido que, inevitavelmente, o calor acentua. A conversa flui fácil, os estrangeiros são sempre fonte de curiosidade. Fidel – sim, “em homenagem ao comandante”, diz sem qualquer pergunta – fala-nos do 25 de Abril, dos claveles, e de Eça de Queirós; mas fala-nos mais da “vida boa” de Remédios. “Não nos falta nada”, desde casa, onde vai fazendo uns arranjos sempre que pode, a trabalho, a qualidade de vida. “A minha irmã conseguiu ir para Havana. Ela não o diz, mas sinto que está arrependida.” 

Remédios está muito longe de Havana. Não são só as cinco horas de viagem, é toda a maneira de estar. Está até longe de Santa Clara, a apenas 45 quilómetros de distância, cidade-ícone da revolução cubana, palco da sua última batalha. Quem aqui chega já está com as praias paradisíacas da costa e dos cayos na mente e é fácil desacelerar, sobretudo se se vem da capital. Não há multidões a solicitar a atenção para comprar CD e filmes pirateados, charutos ou apenas a pedir dinheiro. Talvez seja por os turistas serem poucos que Remédios se mantém como que parado no tempo. 

O coreto da praça Martí até ajuda a transportar-nos para o passado, ainda que os vendedores ambulantes rondem a zona, a única na praça à sombra de árvores e as ocasionais palmeiras. Encostado à parede lateral da Igreja de São João Baptista, Juanillo prefere o sol e a sua banca improvisada é uma máquina do tempo: revistas Life e National Geographic dos anos 50, velhos símbolos da Coca-Cola, relógios de bolso, postais antigos descolorados pelo tempo. Sentimo-nos como se estivéssemos a revirar um baú antigo, esquecido num qualquer sótão empoeirado. 

Durante alguns séculos também estiveram esquecidos os 13 altares de ouro da igreja de São João Baptista, escondidos debaixo de tinta acrescentada para enganar piratas. Ainda antes da revolução foram devolvidos ao convívio da população e hoje são uma atracção turística que enquadra uma imagem da Nossa Senhora grávida. A caminho de se tornar numa, está a outra igreja da praça (algo invulgar) a del Buen Viaje, da Boa Viagem, actualmente em obras de restauro. 

Há obras em vários locais da cidade e um investimento turístico algo invulgar – hotéis boutique, como mais uma forma de atrair turistas para mais do que uma passagem rápida. Nós que até seguimos as tendências actuais do turismo em Remedios e ficamos poucas horas temos então o privilégio de ver, de participar, nas parrandas que têm direito a um museu que não chegamos a conhecer. Afinal, de repente somos envolvidos por uma turba que simboliza as duas “facções” em que a cidade se divide, correspondendo a dois bairros: São Salvador, a norte, e Carmen, a sul, com a praça principal como fronteira. 

Há galos e águias pelo meio porque são as mascotes de cada lado, desfilam uns mini-carros alegóricos, erguem-se faixas e cartazes pintados com ditos provocatórios, há foguetes e outros engenhos pirotécnicos à solta. Mas o que realmente se destaca é a música incessante acompanhada de corpos bamboleantes. Tambores, trombones, trompetes, cornetas, chocalhos, apitos, buzinas, latas num caldeirão de tudo o que faz ruído misturado em rumbas e linhas de conga. Não é um Carnaval, mas parece: só que as parrandas duram oito dias que vimos condensados em meia-hora, com algumas dezenas de participantes. Em Dezembro é a cidade toda que se mobiliza, transformando-se numa versão caribenha de sambódromo. Mas aberto a todos.

Pérola do sul

Dirigimo-nos ao sul, entre slogans revolucionários, entre a reforma agrária – mais sonhada do que concretizada, pela quantidade de campos que vemos abandonados. Por acaso, às portas de Cienfuegos não é o caso, há muita gente a lavrar campos, passam carroças e cavalos e ainda se encontra tempo para falar entusiasticamente ao telemóvel. “Trabajar con orden, disciplina y exigencia”, “Hay que producir más la tierra”, “Por un socialismo prospero y sostenible”, lê-se em muros e cartazes; a efígie de Che Guevara é omnipresente, os perfis de Fidel e Camilo Cienfuegos acompanham por vezes. “Puede decirse que Cienfuegos nunca ha fallado”, “Cienfuegos Património Cultural de la Humanidad” – estes são os slogans locais, específicos desta “Pérola do Sul”, cidade que tem nome de revolucionário mas é a um antigo governador que o deve, cidade de “cem fogos”, portanto, mas que se distingue pela sua baía, cidade de nome bem espanhol mas de fundação francesa, cidade recente mas também pioneira (e até única) no país.
Tem, por exemplo, o único arco de triunfo do país, construído com dinheiro angariado pelos trabalhadores para celebrar a república. E foi a primeira no país a aplicar os novos conceitos urbanísticos – um corte com a herança colonial. 

Porém, entramos em Cienfuegos longe desse conglomerado que lhe dá a fama: os arredores são feitos de casas mais ou menos anódinas, onde sobressaem as guareperas, invariavelmente rodeadas de gente à espera de se refrescar com o guarapo, sumo de cana do açúcar – pouco aconselhável a diabéticos, está visto –, espremido na hora, que se calhar é mais universal em Cuba do que o rum, antes de começarem a surgir bairros residenciais feitos de prédios entre parques. Isto é Cienfuegos que transbordou, em muito, dos 25 quarteirões originais, construídos a partir de 1819 por imigrantes franceses, muitos vindos do Louisiana (EUA), que lhe deram o nome de Fernardina de Jagua, homenagem ao rei espanhol da altura e ao povo indígena que ocupou esta área, na baía de Majagua. 

Como nova cidade, Cienfuegos imbui-se do ar do tempo e foi a primeira na América Latina a aplicar as novas ideias de planeamento urbanístico, higiene e modernidade que abriam caminho nas (velhas) cidades europeias, que derrubaram as suas muralhas para as concretizar. Por este motivo, a UNESCO distinguiu a cidade como património da humanidade (2005) – por este e por uma certa homogeneidade arquitectónica ditada por uma regulamentação restrita que não permitia, por exemplo, a construção em madeira e impunha um determinado modelo aos edifícios, com as características arcadas a predominarem. Começou por ser neoclássica, abriu-se posteriormente ao eclectismo cubano da República, mas nunca perdeu o espírito primevo. 

Não é, porém, sob os auspícios da uniformidade que fazemos a primeira paragem cienfueguera. Na verdade, o edifício parece-nos tanto um ovni quanto o estádio de basebol que iremos ver da baía, duas palas de cimento enormes a sobressair entre o casario, onde joga a equipa da província conhecida como “Los Elefantes”. Chamar-lhe capricho pode ser exagerado, mas é Cuba a fingir Granada com o rosa e o verde a pintarem os traços neo-mudéjares predominantes, carregados de ferro forjado, do Palácio del Valle, construído para residência, quase convertido em casino anexo ao hotel contíguo, resgatado para a cultura pela revolução, ancorado por um museu, um restaurante e um bar. Estamos num dos extremos de Punta Gorda, uma língua de terra que é um bairro a abraçar a baía com mansões sumptuosas, algumas com a mesma mistura de estilos que enforma o Palácio del Valle: é que se à primeira vista é o estilo mourisco que sobressai, rapidamente percebe-se que esse é apenas o traço mais saliente de um ecletismo onde cabe desde o estilo gótico ao bizantino, do românico ao barroco, tudo encimado por um miradouro glorioso para a cidade e a baía.

É pela baía que chegamos à nossa próxima paragem – e continuamos longe do centro histórico de Cienfuegos: Punta Gorda foi um dos caminhos, o mais opulento, do crescimento da cidade a partir dos seus 25 quarteirões originais. De barco aportamos, então, ao Clube Náutico de Cienfuegos, um “clube à americana”, onde “os sócios pagam quotas para aceder às instalações desportivas e fazer refeições”, explicam-nos, porém nem esta incursão aquática nos permite ter uma ideia mais clara da geografia que nos rodeia – uma baía de 88 quilómetros quadrados cuja entrada está guardada pela Fortaleza de Nuestra Señora de los Ángeles de Jagua  (século XVIII) e onde na década de 1970 uma empresa canadiana decidiu colocar caiaques no que foi o início de uma bela relação turística com o Canadá.

Saídos do clube náutico, é o Paseo del Prado que nos levará até à órbita da antiga Praça de Armas, actual Parque Martí – é a avenida mais longa de Cuba, marginada por árvores e atravessando Cienfuegos. Numa parte, ao unir Punta Gorda e Pueblo Nuevo, que apesar do nome é constituído pelo núcleo histórico da cidade, faz-se malécon, cara a cara com o mar, com cafés, esplanadas e até um clube de jazz. O Paseo del Prado foi e continua a ser a via estruturante da cidade. No seus primórdios, o Prado, como é mais conhecido, era uma espécie de passeio público, centro da vida social, “onde as senhoras passeavam para arranjar marido”, tudo sob “uma série de códigos restritos que formavam parte do encanto e que ainda hoje lhe empresta uma aura especial”, explica Yomary, a guia. 

Hoje continua a ser um ponto essencial da vida cultural e recreativa da cidade e continua a surpreender pela sua arquitectura com um simetrismo notável na sua disposição e na predominância de fachadas com colunas encimadas por arquitraves, a desenharem passeios-galerias contínuas. Um classicismo notável com o seu twist das Caraíbas: o (inevitável) arco-íris que o pinta normalmente com molduras brancas. É a partir do Paseo del Prado que melhor se percebe a originalidade de Cienfuegos, com o seu traçado em quadrícula, “como um tabuleiro de xadrez”, de ruas largas e rectas pontuadas por parques e praças. 

Nada melhor do que caminhar e o nosso percurso levou-nos a percorrer o boulevard como é conhecida a principal artéria comercial (e pedonal) de Cienfuegos, que une o Prado ao Parque Martí. Não vimos outra igual em Cuba, nem sequer em Havana. Esqueçam-se todos os estereótipos: aqui o comércio é intenso e as multidões passeiam calmamente, desfrutando da oferta (dos cachorros quentes da esquina, aos sorvetes ou flores) e sente-se uma certa prosperidade. Passamos edifícios majestosos, muitas vezes com loggias no primeiro andar, que albergam restaurantes (de cadeias e independentes, em grandes casonas), cafés, armazéns de produtos para casa, super e minimercados, lojas de fotografia, de roupa, de calçado e barbearias onde os clientes estão virados para a rua enquanto lhes cuidam das pilosidades. Entramos no que descobrimos ser o Palacio Blanco (apesar de estar pintado de verde água), recentemente recuperado para dar casa a artesão locais. Miguel, que “toma conta disto das sete às sete”, vê mais cubanos do que turistas a entrarem pela porta e deixa-nos espreitar o andar superior, ainda não ocupado. Da escadaria de madeira, em caracol duplo, diz-nos que “só há outra assim, em França ou Itália”, não se recorda. No rés-do-chão que desemboca num pátio central alinham-se bancas com marroquinaria variada, bijutaria, dominós, os familiares “ches”. Caminhando mais, vemos o centro da grande rua ocupada por mais artesãos e algumas instalações artísticas, há pequenas árvores em vasos e a Casa Arco, “donde lo cubano se hace arte”. 

E desembocamos na Parque José Martí, o quilómetro zero de Cienfuegos assinalado, neste centro cívico da cidade. “Desde este lugar el comandante em jefe Fidel Castro Ruiz en su marcha trinfual hacia La Habana dirigio la palabra al heroico pueblo cienfueguero em la madrugada de 7 de enero de 1959”, lê-se numa placa de mármore do edifício cinza e de cúpula vermelha do agora Museu Provincial e, ironicamente, antigo casino. É o primeiro edifício que vemos no parque que é mais uma praça, com a estátua marmórea de Martí ao centro em linha recta com o singelo arco do triunfo, rodeado por palmeiras e um coreto. A toda a volta alinham-se edifícios oitocentistas e do início do século XX, no estilo ecléctico tão caro aos cubanos do período da República. O Teatro Tomás Terry destaca-se pela monumentalidade e intricado da fachada, ao lado o Colégio San Lorenzo pelo clássico irrepreensível, o palácio Ferrer pelo azul céu da fachada – como centro cívico, encontram-se aqui a catedral, a câmara municipal. E um dos seus centros profanos, o Café Palatino, música ao vivo e esplanada debaixo de arcadas.
Há quem diga que Cienfuegos é a Paris que Paris seria se estivesse nas Caraíbas. Não vamos tão longe, mas certamente Cienfuegos é uma Cuba (umas Caraíbas, na verdade) absolutamente singular.
 

O arco-íris colonial

Deixamos Cienfuegos e a Cuba afrancesada para mergulhar no seu estereótipo de cidade arco-íris colonial. Para Trinidad nunca foram avaros os encómios e, na verdade, nunca lhe pesaram. Tem fama de ser a mais bela cidade cubana e vive leve e esfusiante, como se não fosse nada com ela, numa espécie de cha cha cha interminável de que aqueles dois homens que tocam e cantam num banco de jardim aos pés do Museu Nacional da Luta Contra os Bandidos (curiosamente, um antigo convento) são o melhor exemplo. Poderíamos pedir melhor final de tarde? Se calhar poderia complementar-se com uma visita ao Floridita Trinidad, tirar uma fotografia com (o busto de) Hemingway e beber daiquiris na rua, um empedrado que parece ser feito das mesmas pedras que saíram dos galeões espanhóis há séculos (pelo menos o desenho urbano não sofreu alterações significativas nos seus 500 anos de vida). 

Trinidad surge-nos no horizonte ao final do dia como um sonho: não sabemos se os contornos são reais ou uma visão. Numa península do sul de Cuba, a cidade foi um importante porto: primeiro para a conquista espanhola da América Latina, depois para o escoamento de produtos, sobretudo do açúcar, que fez a glória da região e agora é atracção turística por vezes fantasmagórica (já lá iremos). O mar das Caraíbas anda perto, portanto, mas não o chegamos a ver. A cidade de 50 mil habitantes pede tempo para ser desfrutada: não é grande, mas merece ser percorrida tão lentamente quanto possível, não recusando os convites às paragens em esplanadas, pequenas praças, tascas e bares. Faz parte do charme deste recanto com sabor crioulo que não permite tristezas, pois tem a alegria plasmadas nas paredes azuis, amarelas, vermelhas, ocres, verdes, tons carregados, sempre, e na música que é omnipresente mesmo que não descubramos de onde vem. Está na rua e é na rua que se está bem em Trinidad. 

A UNESCO não ficou indiferente à cidade fundada em 1514 e consagrou-a Património da Humanidade, distinguindo-a pela excepcional homogeneidade e continuidade da sua construção, que compõem um todo harmonioso. Porém, não se espere encontrar uma Disneylândia colonial. Esta é uma cidade vivida pelos trinitarios, os turistas são convidados a espreitar, a ver para além das fachadas, quase todas dos séculos XVIII e XIX, altura em que se começou a construir com pedra, depois do início do ciclo da cana de açúcar. É assim que vagueamos entre edifícios marcadamente coloniais, ao estilo andaluz e estremenho, portanto, sobressaindo as varandas de madeira pintadas em forte contraste com as paredes, e outros que já integram formas neoclássicas. Nem todos são palácios – longe disso – nem todos estão exemplarmente conservados e este é o segredo da autenticidade de Trinidad, atrevemo-nos. 

Na esquina da San Procopio com a Jesu Maria, carne de porco em sandes, cães a catar migalhas no chão, mulheres com rolos gigantes na cabeça, velhas a pedir um peso. Dejectos de cavalo na rua, joga-se xadrez nas soleiras das portas viradas para as ruas. As janelas das casas estão abertas e ouvem-se as vozes para lá dos gradeamentos (às vezes madeira a compor uma espécie de marquise) que são ornamentos (e uma das imagens de marca dos rés-do-chão de Trinidad) mas também pragmáticos: por vezes nem vidros ou portadas existem, deixando as casas abertas à mais leve brisa. É sábado à tarde e a cidade fervilha numa mescla de locais e turistas. Os cavalos a puxar carroças partilham as ruas estreitas e tortas do centro histórico, algumas inclinadas até perder de vista, com motorizadas ruidosas e alguns carros e carrinhas, estas sobretudo nas cargas e descargas – como se espera, não há qualquer disciplina neste trânsito, que até é proibido em parte da zona. 

Seja como for, não incomodam enquanto passeamos – e todos os caminhos parecem ir dar à Plaza Mayor, inclinada e irregular, com jardim central arrumado em porções relvadas guardadas por gradeamentos baixos e palmeiras nos cantos, e fachadas que parecem cenários brilhantes. Tanto é assim que lá passamos de amiúde. De uma vez conseguimos espreitar a igreja da Santíssima Trindade, quando escutamos os cânticos do serviço religioso, tempo apenas para distinguir um altar neo-gótico; da segunda vez ficamos à porta, com Fulgencio, que faz artesanato de palha, por companhia. “Já está fechada, até às 10h de amanhã. É pena que não a vejam, é uma das igrejas mais bonitas da América latina”, garante. Não é que tenha viajado muito, mas já foi “a Havana, a Matanzas”, e não tem dúvidas de que Trinidad “é a melhor cidade para se viver”. “É bonita, histórica e tranquila. A vista daqui não tem preço” – e lança o olhar sobre esta tarde abafada. 

Sol para um lado, nuvens pousadas na serra do Escambray. Subimos às alturas para mirar a paisagem e a quadrícula insubmissa de Trinidad até à praia de Ancón – não muito longe o palácio Cantero oferece vista semelhante (mais o bónus de ser o museu municipal que preserva irrepreensivelmente o fausto da residência original), mas há uma certa simbologia em observá-la do convento São Francisco feito então Museu Nacional da Luta Contra os Bandidos, sendo que os “bandidos” são os contra-revolucionários que entre 1960 e 1965 fizeram a guerrilha contra o governo dos “barbudos” de Fidel na serra de Escambray, que já havia sido território guerrilheiro na luta que depôs Fulgêncio Baptista. 

É o eterno ciclo da história a exibir-se em Trinidad. O mesmo que converteu a Plaza Mayor em museu vivo recuperando as mansões dos antigos donos do açúcar, transformando-as mesmo em espaços expositivos, onde se mantém a opulência de outros tempos na arquitectura, mobiliário e decoração – veja-se o Museu de Arquitectura e a Casa Brunet. O mesmo que, por exemplo, transformou o antigo Carcel Real em restaurante, onde a sala é muitas vezes o pátio central, e um velho teatro em ruínas há várias décadas em Casa da Cerveja, um bar com certeza, todo ao ar livre, entre paredes ocres interrompidas, colunas e arcos incompletos – especialidade: cerveja com mel e açúcar. 

Mas esta não é a bebida-ícone de Trinidad, que até tem taberna com o mesmo nome, bem perto da recentemente aberta La Bodeguita del Medio – uma cópia da original habanera, aqui a brilhar de nova. Essa bebida – e taberna – é La Canchánchara, rum, mel e sumo de limão, originalmente servida quente aos revolucionários cubanos que no século XIX lutavam, aqui na região, pela independência, e que nos servem numa taça de barro com pedras de gelo. 

E numa cidade tão hedonista, nenhuma visita pode passar ao lado da Casa de la Música, profanamente instalada mesmo ao lado da igreja da Santíssima Trindade – uma longa escadaria de pedra é a nave, o altar é a esplanada no cimo, a liturgia é salsa, son, cha cha cha. E a música, que aquece a partir das 22h, enche todo o centro histórico, competindo, é certo, com dezenas de outros locais, mais pequenos mas igualmente com sabor cubano. Excepção notável: o bar Yesterday, Beatles reloaded todas as noites, servidos por músicos locais. 

Se Trinidad é assim hoje é porque no século XVIII se descobriu “ouro” em forma de cana do açúcar, desenvolvendo-se uma florescente indústria. Herança que chegou até hoje no Valle de los Ingenios, onde até ao final do século XIX funcionaram 55 engenhos de açúcar, tendo por aqui passado 30 mil escravos. Está às portas de Trinidad a melhor vista sobre ele – que na verdade são três – um miradouro (com restaurante) onde o olhar chega até ao mar de um lado e mergulha nos verdes mil do vale do outro. Há algo de nostálgico na paisagem abandonada, coroada por palmeiras reais.

Do miradouro seguimos para Manaca Iznaga entre paisagem rural profunda, com casas esparsas. A aldeia é a antecâmara do ingenio Manaca Iznaga, que preserva a casa principal (museu e restaurante), as barracas dos escravos e moinhos de cana. Singular é a torre que com os 45 metros é a mais alta da região açucareira da América e Caraíbas e de onde os donos e capatazes vigiavam todos os trabalhos. Agora, lá do alto, vê-se abandono – ou turismo: aos pés uma série de mulheres vestidas de branco vendem artesanato, sobretudo linhos bordados.

GUIA PRÁTICO

Onde Ficar

Hotel Moka
Km 51 da autoestrada para Pinar del Río
Comunidade Las Terrazas
www.hotelmoka-lasterrazas.com

Hotel Horizontes Villa Soroa
Candelaria, Soroa
Tel.: (+53) 5 3853861


Onde comer

Ranchón del Salto
Soroa

 

A Oeste  a revolução  é verde

O riso é geral na praça central de Las Terrazas – na verdade, a única praça de Las Terrazas. Em nosso redor desenvolve-se o centro desta aldeia que aqui se vê cidade em miniatura, com centro médico, biblioteca, cinema, café, discoteca, lojas de artesanato, mas nós estamos agora a rodear a grande árvore, tronco largo e alto, ramagem farta, a que chamam “do turista”, “põe-se vermelha e descasca-se”. É um almácigo, explica o guia. Se nos tivéssemos aventurado floresta adentro teríamos visto mais, quem sabe teríamos até visto o pássaro mais pequeno do mundo, o zunzuncito, como é aqui conhecido. Mas a nossa visita é curta e as caminhadas poucas. Ironia, porque neste canto a menos de 80 quilómetros de Havana o que se pede não são tergiversões, mas imersões: é terreno Reserva da Biosfera desde 1985, a primeira em Cuba. E este é também o destino primeiro do ecoturismo cubano, que tem em Las Terrazas a sua plataforma giratória.

Não é um rumo turístico (ainda) habitual o Oeste de Cuba, que desemboca em Pinar del Río, onde, diz-se, se cultiva o melhor tabaco do mundo. Nós ficamos a meio caminho entre Havana e a origem dos puros, em pleno território guajiro. A província agora é Artemisa, há quatro anos era ainda a Província de Havana, entretanto dividida em duas. Da capital a Las Terrazas o caminho dura menos de uma hora pela autoestrada Este-Oeste (autoestrada mas não demasiado: cruzamo-nos com carroças puxadas a cavalo) que rompe um cenário de planícies verdes que começam a aninhar-se em pequenos vales à medida que nos afastamos, enquanto as casas vão perdendo pose, tornam-se escassas até que desaparecem do cenário.

As árvores aglomeram-se, a vegetação compacta-se até tudo parecer um volume impenetrável, com palmeiras reais a elevarem-se acima. O porto de Mariel não se vê, mas merece referência orgulhosa do guia quando nos deparamos com o seu rasto de obras na órbita da autoestrada – afinal, é o maior investimento em curso no país, e será o maior porto cubano, libertando o porto de Havana apenas para o turismo 

É o turismo, ecológico e sustentável, a bandeira de Las Terrazas, aldeia transformada em complexo turístico - diríamos éden turístico. São 25 mil hectares de florestas montanhosas, rasgadas por rios, ribeiros, lagoas e cascatas, com 800 espécies botânicas (mais de 200 endémicas), uma avifauna notável, cerca de 100 espécies, entre migratórias (MIAMI) e endémicas (como o  tocororo, símbolo de Cuba), e outras curiosidades como um dos mais pequenos sapos do mundo e o minúsculo (e colorido) chipojo, um réptil.

Las Terrazas abraçam o rio San Juan e, apesar da distinção da UNESCO ter chegado em 1985, a verdade é que a integração no entorno natural sempre foi uma prioridade. Na verdade, a natureza foi um dos motivos da construção da comunidade, em 1968, quando a revolução era uma criança a desenhar utopias. 

Depois do período áureo do café, a decadência desta produção levou as populações locais à extracção de carvão o que agudizou o derrube da floresta e o surgimento de uma bolsa de pobreza extrema, com as pessoas a viverem isoladas, longe de cuidados de saúde e acesso à educação. Foi neste contexto que o governo criou aqui uma espécie de reforma agrária, com um programa bicéfalo: por um lado, promover o desenvolvimento rural, por outro restabelecer o equilíbrio ecológico. A aldeia foi criada em 1968 como pólo aglutinador das pessoas que viviam dispersas pelas montanhas que receberam a missão de reflorestar a zona. Foi assim até 1991, quando uma nova variável foi introduzida neste ecossistema – o turismo, comunitário e sustentável. “Até 1991 fomos subsidiados pelo Estado. Desde então, com o desenvolvimento da actividade turística, conseguimos auto-financiar-nos, com todo o produto reinvestido na comunidade”, sublinha Fernando Paredes, o director-geral. 

É assim que chegamos a Las Terrazas, equilibrada entre o turismo e o quotidiano rural. Somos turistas típicos quando desembocamos à beira de um lago – artificial – onde funciona um centro de acolhimento. Relvados bem tratados, longo ancoradouro, um dos restaurantes do complexo – e toda a natureza luxuriante a emaranhar-se no nosso horizonte. A aldeia fica para o outro lado e está embutida nos socalcos que dão nome à comunidade e forma à paisagem que se começam a ver as casas brancas pré-fabricadas, individuais, assentes em pilares com pequeno terreno em volta. “Os habitantes estavam habituados a ter o seu quintal, não quisemos tirar isso”, explica Fernando Paredes. Esta foi a primeira fase do pueblo, a segunda sobe um pouco em altura, com edifícios de dois andares e vamos vê-la de outro lado, na subida para o hotel Moka, ícone do complexo e do ecoturismo cubano. 

Por enquanto, paramos no centro da aldeia, uma praça ampla onde se reúnem todos os serviços que emulam uma mini-cidade e onde se destaca o edifício do cinema, que acompanha o desnível da sala, em escadaria invertida, para aproveitar o espaço de baixo para uma discoteca e bar. Rosario não vai à discoteca, mas gosta de saber que ela está lá. Ainda se lembra da vida na montanha, “dura”, e a mudança para Las Terrazas mudou-lhe o destino. Tem uma banca de artesanato aqui na praça, utiliza gorgónia para inventar pulseiras e brincos, com o nácar desenha formas com embute em metal que depois pode ir para um colar ou um broche, por exemplo, as cascas de coco e mexilhão alinham-se em colares. 

Se o convívio com os habitantes é uma das premissas do turismo comunitário, aqui este pode fazer-se tanto em ateliers de artistas, nos vários paladares que com os restaurantes (incluído o El Romero, considerado o melhor vegetariano do país) formam a oferta gastronómica, e até no alojamento, onde há a opção de ficar em casas de famílias. É um projecto do Hotel Moka, edifício que leva ao extremo a camuflagem na natureza: construído em torno de uma “árvore do turista” (que se escapa por uma clarabóia), distribui-se quase como que sendo uma continuação imaginária da ramagem. 

As árvores verdadeiras que compõem a sinfonia verde são também “estrada” para uma aventura em zip-line, uma das propostas mais radicais deste complexo turístico. Caminhadas, trekking, andar a cavalo, observação de pássaros, kayak no lago, mergulhos em cascatas são outras opções. Como o nosso tempo é curto, seguimos o caminho das ruínas de uma plantação de café do início do século XIX, para ver in situ a história da região. 

E esta é a história de imigrantes franceses que depois da revolução no Haiti aportaram a Cuba para se dedicarem à plantação de café. Começaram pela costa ocidental da ilha, mas aqui chegaram a existir mais de cem plantações. Na área de Las Terrazas estão sinalizadas seis, a maioria ruínas dispersas, mas a Buena Vista poderia ser cenário de um filme de época, recuperada que foi em 1994. Fica num dos topos da Serra do Rosario e a vista permite que os nossos olhos cheguem até ao mar das Caraíbas – aliás, como estamos no ponto mais estreito da ilha, 31 quilómetros, alguns locais oferecem como horizonte a costas norte e sul. É difícil largar os miradouros naturais, mas há um avistamento de torococo – não o conseguimos descortinar entre o rendilhado de vegetação. 

A casa principal foi totalmente recuperada e alberga por estes dias um restaurante e ao lado enfrentamos terraços quase como se estivéssemos perante uma pirâmide pré-colombiana. Mas a estrutura que se organiza em amplos terraços atravessados por uma enorme escadaria representa parte do ciclo do café, que depois de colhido era colocado nos degraus a secar, antes de ser separado da casca numa tahona (um moinho movido por escravos, cujos alojamentos se avistam em ruínas) que é o culminar da nossa ascensão. 

Deixamos os vestígios franceses da região para avançar em direcção ao “arco-íris de Cuba”, como Soroa é conhecida. Continuamos na serra do Rosário e o Jardim Botânico/ Orquidário de Soroa, disposto numa encosta abrupta, é um paraíso para orquidiófilos mas dificilmente alguém sai incólume daqui. São mais de 750 espécies de orquídeas, cerca de 20 mil exemplares, num entorno natural luxuriante, que inclui outras seis mil espécies de plantas. Mas voltamos ao arco-íris: dizem que se desenha junto da cascata conhecida como Salto de Soroa, quando sol e nevoeiro se cruzam sobre a queda de água de 22 metros de altura. É um mergulho na floresta tropical, percorrendo os trilhos que descem até desembocarem nas piscinas desenhadas pelas cascatas. Sabe bem a fruta que o senhor Jose aqui vende, todos os dias, “sobretudo a cubanos” – saberia melhor um mergulho na água. 

GUIA PRÁTICO

Onde ficar

Remédios
Hotel Barcelona (hotel boutique)
Calle José A. Peña, 67, entre La Pastora y Antonio Maceo
Tel.: (+53) 42 395144

Cienfuegos
Hotel Jagua
Avenida 2 | Punta Gorda
Tel.: (+53) 43 551003
www.hoteljagua.com

Trinidad
Brisas Trinidad del Mar
Península Ancón
Email: reservas5@brisastdad.co.cu
www.hotelescubanacan.com


Onde comer

Remédios
La Paloma
Parque Martí, 4
Tel.: (+53) 42 39 54 90

Cienfuegos
El Marinero
(Cienfuegos Yacht Club)
Calle 37, entre av. 10 e 12
Tel.: (+53) 43 43 51 28 91

Trinidad
Restaurante Santa Ana
(Carcel Real)
Plaza Santa Ana
Tel.: (+53) 41-998257

Manaca Iznaga
Poblado Manaca Iznaga Km. 12, Trinidad
Tel.: (+53) 41 997241

A Fugas viajou a convite do FITCuba 2014 

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