Fugas - Viagens

  • Elisabete Jacinto
    Elisabete Jacinto DR
  • Henrique Sá Pessoa
    Henrique Sá Pessoa DR
  • Rui Zink
    Rui Zink Daniel Rocha

Qual foi o momento em que se sentiu mais próximo do paraíso?

Por Fugas

Há quem encontre o paraíso em cidades caóticas, como Rui Zink, à mesa, como Henrique Sá Pessoa, ou a conduzir no deserto, como Elisabete Jacinto.

Rui Zink, escritor
Japão, deslumbramento absoluto

“A primeira vez que fui ao Japão, já para lá dos quarenta anos, foi para mim o deslumbramento absoluto. Um paraíso como deve ser é feito essencialmente de duas coisas: ser muito desejado e tarde alcançado. Na verdade, através da imaginação eu já vivia no Japão desde muito cedo: através do karate, da cultura pop, dos romances de samurais, do Mishima e do Wenceslau, do cinema, da animação, da gentileza certeira, da simplicidade ora elegante ora quase rude. E quando lá fui — convidado para uma Feira do Livro — lembro-me de ser o único membro da comitiva que não só já conhecia Tóquio como tinha uma curiosidade ávida por ver, por estar, por sentir. Depois fiz dois dos melhores amigos que tenho hoje, embora pouco os veja: o Óscar Hioki, um japonês com coração português, o Pedro Aires, um português com coração japonês. E, claro, a Linda Rika Naito, que nos conhece melhor do que nós próprios e até tem um livro sobre Macau. 

Entrementes, no espaço de dez anos voltei lá cinco vezes, e o paraíso passou a ser não tanto o ‘estar no Japão’ como o ‘estar com os meus amigos’. Qualquer paraíso começa por ser um país e uma língua para, à medida que nos entranhamos e entrosamos, se tornar aquilo que verdadeiramente importa: pessoas que amamos. O resto é paisagem, e as paisagens aborrecem-me, a menos que sejam pintadas. 

Isto leva-me a outra confissão: gosto de cidades. Também por isso o Japão é o paraíso: haverá cultura mais urbana e caoticamente harmónica? Duvido. Mais caótica, decerto; mais harmoniosa também quiçá. Mas uma que conjugue tanto e em tão pouco espaço o caos e a ordem, o equilíbrio e o excesso, a seriedade e o prazer de brincar? 

O paraíso é, como nós sabemos, à medida dos nossos sonhos, e também da nossa auto-imagem. É o sítio onde quem somos mais aceite, ou (vai a dar no mesmo, a maior parte das vezes) onde imaginamos que mais aceites somos."

 

Henrique Sá Pessoa, chef
Um inesquecível almoço 

Henrique Sá Pessoa irá “muito em breve” reabrir o seu restaurante Alma num novo espaço, no Chiado, onde promete “arriscar mais” e mostrar uma cozinha “com a mesma matriz mas com uma maior evolução”. Para responder ao pedido da Fugas e descrever um momento em que se sentiu “próximo do paraíso” recuou a 2008, poucos meses antes de abrir o primeiro Alma (que inaugurou em Fevereiro de 2009) e a uma viagem a Espanha:

“Uma das situações de que guardo uma memória muito boa é uma viagem de um grupo de chefs portugueses a San Sebastian. Íamos eu, o Vítor Sobral, o Fausto Airoldi, o Luís Baena, o Ljubomir Stanisic, o Bertílio Gomes, o José Avillez, acompanhados pelo Duarte Calvão [hoje director do festival Peixe em Lisboa]. Foi em Novembro de 2008 e fomos participar no congresso Lo Mejor de la Gastronomia que naquele ano tinha Portugal como país convidado.

Estavam representadas naquele grupo duas gerações de chefs, os já estabelecidos como o Sobral, o Airoldi ou o Baena… o Avillez estava no Tavares mas ainda não tinha recebido a estrela Michelin, eu estava numa fase de transição prestes a abrir o Alma. 

Fomos todos almoçar ao restaurante do Martín Berasategui, um almoço que foi servido pelo próprio, com 24 ou 25 pratos, e que foi absolutamente excepcional. Recordo em particular alguns que são dos seus pratos mais emblemáticos, como a enguia com foie-gras e maçã Granny Smith, o salmonete com as escamas viradas ao contrário numa técnica que as deixa com uma textura estaladiça, um raviolli de tinta de choco preto, tecnicamente muito difícil de fazer — em cada dez pratos saem dois ou três perfeitos — e uma salada de lagosta inspirada num prato de [chef francês] Michel Bras.

Estar presente naquele que na altura era o maior congresso gastronómico de Espanha, um palco tão emblemático e mediático, foi muito importante para mim. Foi a primeira vez que vi a constelação dos grandes chefs espanhóis, Ferran Adrià, os irmãos Roca, Arzak, Andoni Aduriz, e também [o britânico] Heston Blumenthal.

Mas aquele almoço, naquele momento das nossas carreiras, foi um momento único. Não me lembro de ter tantos chefs daquele calibre sentados à mesma mesa. Senti-me especial por estar incluído naquele grupo.” 

 

Elisabete Jacinto, piloto todo-o-terreno
O ambiente do deserto

“Quando comecei a andar de mota não tinha qualquer experiência na areia, e enervava-me sempre quando surgia uma zona de dunas para atravessar. A certa altura, percebi que só resolveria isso se tivesse oportunidade de treinar. Foi então que passei a ir para Marrocos e, a partir daí, comecei a fazer grandes progressos em termos de condução, na maneira de estar, a aprender a ler as dunas e a saber escolher caminhos. 

O ambiente do deserto é o paraíso do nada, da ausência de praticamente tudo. Temos a terra e o céu. Mais nada. Essa inexistência de animais, de vegetação, de pessoas, faz com que haja um pouco a sensação de que estamos ali a mais. Não fazemos parte daquela paisagem e sentimos, de alguma forma, que a nossa sobrevivência não está garantida. Mas, por outro lado, essa insegurança desenvolve em nós uma capacidade de tomar decisões e de formular raciocínios que, de outra forma, não seríamos capazes. 

Por essa razão, costumo dizer que o deserto nos torna muito mais inteligentes, e esse, para mim, é o seu verdadeiro fascínio. Há uma ambiguidade engraçada: no meio daquele nada, as pessoas sentem-se muito pequeninas, mas, ao sentirem-se tão pequenas, acabam por se pôr em bicos de pés e fazer coisas que, em circunstâncias normais, nunca fariam. Ultrapassam-se medos. Se, por um lado, as dunas exercem um fascínio enorme, por outro foi lá que senti algumas das emoções mais aterradoras: é de repente pensar que se está no meio do nada e que ninguém nos poderá salvar. Lembro-me uma vez de ter caído e, quando fui pôr a mão no punho da mota, para a levantar, ao lado estava uma cobrinha muito pequenina, toda enterrada na areia. Primeiro fiquei muito assustada, mas tive de levantar a mota — não podia ficar ali. A cobra acabou por desatar a mexer-se e ir-se embora.

Anos mais tarde, descobri, ao ver um programa de televisão, que não se tratava de uma cobra inofensiva, era uma víbora do deserto.”

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