O itinerário não era original. O primeiro passeio todo-o-terreno organizado pelo Clube Escape Livre dentro das fronteiras da Companhia das Lezírias aconteceu em Novembro. Mas qualquer semelhança entre a incursão todo-o-terreno em pleno Outono com aquela que decorreu no auge da Primavera ficou-se pelos trilhos, garantem-nos participantes repetentes. Tudo o resto é novo. Até parece que se trata de uma outra paisagem.
O 2.º TT Da Charneca para a Lezíria, com a sempre meticulosa organização do clube da Guarda, decorreu a 9 de Maio e contou com quase uma centena de participantes que puderam testar o Volvo V40 Cross Country, a viatura oficial do evento — um crossover que assenta no confortável e sólido familiar compacto, revestindo-o de pormenores que nos levam a desejar conduzi-lo por caminhos mais acidentados. Caso das protecções da carroçaria ou da maior distância ao solo (+ 4cm) face ao seu mano familiar.
Mas ainda antes de seguirmos viagem, e já com o estômago aconchegado por um fausto pequeno-almoço de boas-vindas, o ideal é despertar os sentidos para o que nos aguarda. Numa pequena sala, às escuras, vários ecrãs, de distintos tamanhos e localizados um pouco por todo o espaço, bombardeiam-nos com informação deste conjunto de terras unidas pela Companhia das Lezírias do Tejo e do Sado, uma entidade criada em 1836 para poder arrematar o conjunto das propriedades cuja venda em hasta pública foi autorizada pela Carta de Lei de 16 de Março assinada por D. Maria II.
As pessoas que dão vida a estas terras e que as laboram todos os dias tornam-se, subitamente, protagonistas desta história. Com a sabedoria pronunciada em cada ruga e de mãos ágeis, enchem alguns dos ecrãs para nos explicarem parte das muitas tarefas agrícolas. Noutros ecrãs conseguimos ver uma pequena rã ou um gracioso equídeo. O desfile de imagens é sublinhado pelo jogo de sons que tem o seu auge quando um tiro precedido por um grito revela outra vertente: a caça, nomeadamente ao javali.
Saímos deste curso intensivo com vontade de avistá-los, mas em vez disso somos levados a prestar homenagem aos provavelmente mais distintos habitantes deste “reino”: os puros lusitanos.
Das pequenas portinholas, a curiosidade dos ainda jovens equídeos não resiste em espreitar-nos. Mesmo que o nervosismo ainda impere. “Estes estão cá há pouco tempo”, explica-nos a nossa guia, com manifesto orgulho nos exemplares que temos pela frente e que por estes dias enfrentam os desafios que a escola de equitação da Companhia das Lezírias lhes impõe. Quando começarem a revelar as suas melhores aptidões serão vendidos pelo melhor preço, que em muito depende da linhagem: uma árvore genealógica encarrega-se de exibir os antepassados de cada um dos bichos. Estes, ao contrário do que seria de esperar para recém-chegados, deixam-se acariciar pelos visitantes.
Mais adiante, já depois de iniciarmos a nossa aventura todo-o-terreno, avistaremos outros cavalos — “garanhões, éguas, potros até aos dois / três anos” — que vivem numa “falsa” liberdade. É que podem galopar livremente, sem rédeas nem arreios, mas comida nunca lhes falta. Nem veterinário para cuidar das suas maleitas — é que o imponente cavalo tem na maioria das vezes uma saúde muito frágil. Noutros campos, são os bovinos que salpicam a paisagem verdejante. Já estes olham-nos sem qualquer curiosidade — nem param de mastigar.
Pela aridez da charneca
Não sendo uma viatura com predicados todo-o-terreno por excelência, o Cross Country D2 de 115cv é carro para não se negar a praticamente nada e para não deixar alguém mal. Enquanto seguimos embalados pelo conforto e pelo fresquinho do ar condicionado (o sol não só acordou desinibido como passou o dia a ameaçar as peles mais sensíveis com uma queimadura ou outra), a charneca, com hectares a perder de vista de sobreiros e pinheiros, convida a que nos deixemos perder pelos seus trilhos. Algo muito difícil, uma vez que não só contávamos com um road book muito preciso como com uma série de sinalizações nos locais em que o caminho a seguir poderia ser menos óbvio. Mas nestas coisas até o que parece impossível acontece. E, volta e meia, lá ficávamos à frente de um carro cujo navegador mais distraído não dava com o desvio certo a tempo. Noutras vezes ficávamos nós para trás. Nada disto importa numa caravana em que o objectivo não é chegar primeiro mas saborear cada momento do caminho.
Por isso, nada mais apropriado que uma paragem na Adega Catapereiro, nome que muitos demoram a dizer correctamente (“E a quantidade de gente que nos sugere mudar de nome?”), mas que tem a sua origem nos pereiros-bravos (catapereiros) que abundavam na zona onde foi implantada a vinha. É de lá que chegam os frutos à adega que são transformados em vinhos únicos, como os Tyto Alba, criados sob a batuta do enólogo Bernardo Cabral, e que nos dão a provar antes de nos levarem a descobrir a adega. Pelo caminho explicam-nos a origem do curioso nome do vinho: trata-se da designação científica da coruja das torres, espécie que tem junto das vinhas um refúgio. Mais que o vinho, esta protecção aos passarinhos convence-nos e na loja da adega deixamos a garrafa mas não dispensamos a sua caixa, que foi concebida para se poder transformar num ninho para pequenas aves puderem descansar.
Não é apenas vinha, pinhal ou montado (trata-se da maior mancha contínua de montado de um único proprietário em Portugal com mais de 6500 hectares) que se encontram pela Companhia das Lezírias. A multiplicidade de cultivos é possível devido às terras ricas em água e minerais — inclusive na zona de charneca, em que os modernos sistemas de rega, alimentados pela barragem, permitem plantações a perder de vista de cereais, por exemplo. As com melhores condições agrícolas são arrendadas: cerca de 5500 hectares, referem. Nestes, a maior parte dedica-se ao cultivo do milho, cereal que progressivamente substituiu o trigo de outrora.
Há vida na lezíria
Os dourados do primeiro passeio realizado em Novembro deram lugar aos verdes luxuriantes e aos campos floridos que formam por esta altura extensos tapetes vermelhos, amarelos, lilases e brancos. Já a lama transformou-se em solo duro, e aqui e ali ouvem-se sons de animais animados pelo dia soalheiro que decidiu apadrinhar a iniciativa. A certa altura tem-se até o desafio de atravessar um pequeno leito de areia com algum aparato do lado exterior. A organização não arrisca nenhum atascanço e dá instruções de como lidar com o terreno árido: “Nunca levantes o pé do acelerador; dá o máximo! Continua a acelerar!”. Obstáculo superado. Talvez graças ao facto de já termos reposto as forças durante um farto almoço no Arneiro Pereiro.
Avançamos pela lezíria. O contraste é impressionante e a fronteira entre a charneca e a lezíria parece ter sido desenhada a régua e esquadro. Entre os campos alagados avista-se ao longe uma bonita igreja com ar de abandonada. Descobriremos mais tarde tratar-se de um dos templos para que os viajantes vindos um pouco de todo o país na primeira metade do século XX para as sementeiras e as colheitas da Borda d’Água pudessem fazer as suas orações.
Actualmente, os vastos arrozais fornecem o cereal necessário para encher as prateleiras dos supermercados com arroz Bom Sucesso. Cruzamos os campos e vamos reparando que enquanto alguns enchem, outros vão sendo vazados. Não percebemos é muito bem qual é qual. Mas, despreocupados, os nossos interlocutores garantem que 2015/2016 serão anos benéficos para a produção de arroz.
No entanto, os campos alagados não guardam apenas este cereal. Há um incalculável número de organismos vivos que servem de porta-estandarte para que a lezíria esteja para as rotas de migração de aves como as estações de serviço estão para a auto-estrada. Umas, até, gostam tanto do repasto que acabam por sacrificar a viagem e ficar pela lezíria até ao Outono, quando o frio começa a fazer com que as aves rumem a sul.
É já perceptível que estamos na Reserva Natural do Estuário do Tejo, uma das dez zonas húmidas mais importantes da Europa. E este vaivém de passarada acabaria por ditar a evolução positiva de um projecto inaugurado há dois anos: o EVOA, um espaço de observação de aves no estuário do Tejo com centro de interpretação e uma forte vertente didáctica. O espaço, concebido para estar em perfeita comunhão com a natureza que o envolve, reúne toda a informação sobre a flora e a fauna presentes pelos 80 hectares. E mostra como as diferentes aves são tão bem acolhidas pela lezíria que lhes fornece o espaço e o alimento necessário à sua sobrevivência.
Nós ficamo-nos pela observação destas vidas pelo canudo de um telescópio, enquanto absorvemos as cores com que as plumagens dos patos, alheios à nossa presença, se vestem na Primavera. Enquanto isso, uma mesa montada com um lanche regional alimenta outros sentidos que, com o fim do dia a aproximar-se, sentem-se moídos mas com vontade de perguntar: para quando o próximo passeio? A resposta está ao virar do mês: próximos dias 3, 4 e 5 de Julho, com um clássico: o “mítico” Rali da Guarda, que teve a sua primeira edição em 1988.
A Fugas participou no 2.º TT Da Charneca à Lezíria a convite do Clube Escape Livre