São quase 11 horas mas o sol está longe de queimar – apanhámos um dia bom, dizem-nos. Não está o calor abrasador e sufocante com que, habitualmente, o Alentejo interior é brindado em dias de Verão. Está sol, sim, mas agradável, com uma brisa a acariciar-nos os cabelos e a revoltear as ervas daninhas aqui e ali. Estamos na Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo, mas também podíamos estar no pátio da nossa escola primária ou num qualquer monte da nossa infância, onde as brincadeiras pelos pavimentos de terra batida resultaram muitas, tantas vezes, em joelhos esfolados. Há duas vivendas, uma já foi uma escola, outra foi a casa da professora. Há animais à solta, árvores de fruta em sítios inusitados e um tanque cheio de água a fazer as delícias das crianças em campo de férias. E campos pintados a verde e amarelo – das plantas, da palha, da calma.
São quase onze horas mas aqui o dia começou bem cedo, às 7h. Rianne van den Bink levantou-se a essa hora, reuniu-se com os oito voluntários da herdade, distribuiu-lhes as tarefas do dia e pôs a mão na massa, literalmente, pouco depois. A esta hora já há duas massas diferentes a levedar, numa sala contígua ao forno de lenha. A massa de pão alentejano está agora tapada e, dentro de algumas horas, vai dar para 35 pães. A de bolota, acastanhada, mais escura, vai dar para uns 16. Por volta das 13, 14 horas vão para o forno. “Hoje preparei a massa para o pão logo de manhã e logo posso ajudar na cozinha, fazer um bolo ou apanhar legumes”, conta-nos numa quinta-feira de manhã, as bochechas já rosadas.
Rianne é holandesa, formada em enfermagem. Veio a Portugal há oito anos e apaixonou-se. No fim de 2013, fez um voluntariado no Freixo do Meio. “Foi no Inverno, a época das bolotas. Andei dias e dias, manhã e noite, a apanhar bolotas e a trabalhar no campo. Mas gostei muito do convívio, é muito diferente da Holanda mas também de outros sítios em Portugal que conheci”, diz, num português quase perfeito. Aqui, oficialmente, é responsável pelos voluntários e pelo atelier do pão – o mesmo onde tentámos fazer o nosso próprio pão alentejano.
“Os dias aqui são todos diferentes”, continua Rianne, por isso não nos consegue dizer, ao certo, como é a sua rotina. Mas de uma coisa tem a certeza: os dias começam sempre cedo e com a ajuda de todos. Ao ar livre, mas perto da cozinha, já estão também várias panelas de barro postas sobre um lume de chão. É lá que vai ser cozinhado o cozido de grão-de-bico para o almoço. Pelo calor que vem de lá e pela água a borbulhar fervorosamente já devem estar ali há algumas horas. Lá dentro estão carnes diversas – “Aqui ao de cima temos uma orelha de porco, uma coisa horripilante para algumas pessoas. Mas no porco aproveita-se tudo!”, diz Alfredo Cunhal Sendim, proprietário do Freixo do Meio – e a seguir vêm os legumes, cozidos no caldo das carnes para ficarem mais tenros e suculentos.
A cozinheira de serviço, a dona Manuela, está de volta dos legumes (nabiças, couve-coração, batata, cenoura, nabo, feijão-verde), já todos cortados e preparados, mas mal a vemos com a azáfama – o almoço hoje é para as crianças, em campo de férias, para nós, para os trabalhadores. Somos muitos mas antigamente havia muito mais bocas para alimentar e uma “coqueira” para tomar conta de tudo. Cada trabalhador trazia a sua própria panelinha de barro, com os seus próprios ingredientes, e entregava-a à “coqueira”. Era ela que, durante toda a manhã de trabalho, tomava conta das labaredas, que podiam estar em círculo ou em linha, e pela cozedura de todo o almoço – com menos carnes, mais legumes. Sabia qual era a panela de cada trabalhador, os tempos certos.
A base deste almoço assenta numa sopa cozida lentamente. O fogo que agora vemos a aquecer as panelas de barro incide num só lado da panela. “Há uma série de questões específicas ligadas à termodinâmica da panela e a própria forma, tipo ovo, não é por acaso”, explica Alfredo Sendim. A panela não mudou, nem os ingredientes-base. Mas hoje há porco, vitela, peru, frango. Dantes não – era o que havia, o que a natureza dava, o que o mealheiro permitia comprar. “Lembro-me, quando era miúdo, de estar no campo e ver um pastor a depenar uma galinha e a colocá-la inteira dentro de uma panela destas”, conta. Mas a verdade é que “não há uma fórmula”. Há “milhares de combinações” e todas resultam numa comida “riquíssima a nível nutricional”.
Horas depois comprovámos – os legumes estavam realmente suculentos, as carnes tenras, o grão-de-bico macio.
Aventais postos, mãos na massa
De volta ao forno, ao pão. O pão alentejano, um ex-líbris da região que faz umas bocas salivar e outras refilar pela sua densidade. “Os pães do princípio eram ázimos, não cresciam. A base era de amido. Mas depois percebeu-se que podíamos compactuar com a natureza e com um microorganismo chamado levedura, que não é bem uma bactéria nem um fungo, é uma coisa no meio”, explica Alfredo Sendim que, com a ajuda de Rianne, nos guia neste processo. A levedura é a responsável por libertar carbono e transformá-lo e é o gás resultante que, ao criar bolhas na massa do pão, vai provocar o aumento do seu volume.
Antes, o pão era usado como matéria-prima de cozinhados (açordas, migas) e não como bem directo. “Não o alambazávamos com manteiga como hoje”, continua o proprietário, recordando a “mantieira” da herdade que, por volta de 1974, lhe dava reprimendas por querer um pedaço de pão quente. A responsável por manter o monte, uma senhora de idade que já não podia andar no campo a cavar e a ceifar, fazia o pão mas “não deixava ninguém tocar-lhe”. O pão tinha de durar.
Rianne, enquanto padeira, tem a ajuda de uma máquina que simula bem o movimento que era feito apenas com os braços e mãos da mantieira mas nós, iniciantes, vamos experimentar sovar à maneira antiga. Basicamente, para fazer pão, precisamos de um sítio onde se concentre calor, água, diferentes tipos de farinha e uma pitada de sal.
A receita standard para um pãozinho está presa num placard (250 gramas de farinha, 140 de água, uma colher de chá de fermento, cinco gramas de sal e 50 gramas de fermento vivo) mas já está decorada pelas pontas dos dedos de Rianne. Imitamos. Sovamos, uma e outra vez. Só mais um bocadinho, ainda não está bom, dizem-nos. Mais água. Mais uma pitada de farinha. Amassar outra vez. Pronto, já está. Até foi fácil e rápido… Mas afinal passou mais de uma hora e os braços estão meio doridos. Damos forma e deixamos a levedar. Também o pusemos no forno, a par dos outros 51 da fornada normal, feita por Rianne, esses com uma folha de couve por baixo, para a côdea ficar mais fina, dourada. O nosso está bonito e muito digno para uma primeira vez mas não foi amassado nem levedado o suficiente – fico duro como uma pedra. Dá para um prato de açorda ou migas, quiçá.
Vinhos e petiscos
Descansamos à sombra de um sobreiro para, de seguida, partirmos em direcção a Évora, por entre auto-estradas recortadas no meio de terrenos que parecem não ter fim à vista. À chegada, ouvimos diferentes idiomas – espanhol, inglês ou até mandarim – e os cliques de máquinas fotográficas, há smartphones em punho. “Os turistas são cada vez mais e não respeitam o que é nosso. Às vezes é muito difícil controlar”, diz-nos uma das senhoras responsáveis pela preservação da Igreja de Santo Antão. Fotografam as pinturas murais da igreja, da autoria de José de Escovar, “sem noção” que esta é uma pintura que se presta à imitação de outras técnicas, para mostrar que com poucos recursos se podem simular outras técnicas mais ricas, explica-nos Patrícia Monteiro, uma das nossas guias neste roteiro pelo Alentejo.
“A ideia do turista é meter o nariz em todo o lado”, acrescenta o pároco Manuel Maria Madureira. Para fugir aos turistas, leva-nos para outra igreja, a de Santiago, que não está incluída nos habituais roteiros turísticos. Faz parte dos “tesouros escondidos” do Alentejo. Por norma está, aliás, fechada – abre apenas para funerais ou com marcação. “É melhor fecharmos a porta”, apressa-se. O tecto impressiona-nos, com a sua abóbada revista de pinturas a fresco enquanto as paredes laterais estão revestidas a painéis de azulejos do ceramista Gabriel del Barco.
Entre uma e outra estória, um e outro desabafo frustrado sobre pinturas murais a fresco roubadas e dificuldades de preservação e mostra ao público por falta de recursos, seguimos para uma degustação de vinhos alentejanos. Não somos especialistas nem queremos ser – mas queremos aprender. “O vinho não se bebe só por beber. É preciso sentar e beber, com calma. Há, até, uma parte criativa. Temos de apreciar o vinho como obra de arte”, alerta-nos Mafalda Silva, a acompanhar-nos na prova de vinhos de vinhedos de Vidigueira e Reguengos.
Mafalda também foi aprendendo a apreciar o vinho desta maneira. É de Cascais mas vive em Reguengos há oito anos. Sempre trabalhou na área de vendas e produção de espectáculos mas há dois meses embarcou numa nova aventura na Adega da Ervideira, em Évora, onde aprendeu a distinguir um vinho invisível – “óptimo para estes dias de Verão” – dos brancos mais doces, dos espumantes que não explodem na boca mas que se dissolvem lentamente, dos rosés frescos, dos tintos “puro Alentejo” ou mais suaves. Brinda connosco de cada vez, entre explicações e goles tímidos, confessando que às vezes é “difícil” acompanhar uma prova de vinhos do início ao fim.
Uma vindima tardia como aperitivo final, adocicado, “a cereja no topo do bolo”, descreve Mafalda, prepara-nos para os petiscos alentejanos com que deliciamos o estômago de seguida. Ovos mexidos com farinheira, tomatada com pão, ovo e chouriço e carne de alguidar são alguns dos que comemos. No dia seguinte repetiremos o prato cheio, com a tradição de Vila Viçosa e depois de descermos a 80 metros de profundidade na pedreira Plácido Simões.
Pedreira com efeito-espelho
Quando chegamos, o impacto visual não é dos mais bonitos “mas as montanhas de mármore, aqui e acolá criaram miradouros com vistas incríveis”, assegura Luís Martins, intérprete do património. Na sua totalidade, a pedreira tem mais de 90 metros de profundidade. Mas no dia em que a visitamos, há uma água de cor azul esverdeada com cerca de 17 metros de altura, o que cria um efeito espelho, que reflecte parte das paredes altas de mármore creme claro e rosa, uma das rochas ornamentais mais nobres, refere Luís. Descemos num dos elevadores laterais dos trabalhadores. “É seguro?”, perguntamos, meio a medo. “É, é, bastante”, garantem-nos. Pelo sim, pelo não, encolhemo-nos no fundo e confirmamos o número máximo de pessoas e quilos permitidos – o senhor Lobinho, responsável por esta pedreira e a trabalhar na empresa há 34 anos, acabava de nos contar um episódio caricato que aconteceu ao antigo Presidente da República Jorge Sampaio, quando, durante uma visita, ficou preso neste mesmo elevador por excesso de carga.
Um dia de trabalho aqui muda “quase de minuto a minuto”, conta, e há dias em que, em determinado piso, as temperaturas rondam os 50 graus centígrados. Há poeiras, vento. Voltam a repetir-nos que tivemos sorte com a temperatura. Numa fábrica é diferente, o serviço é mais mecânico – se bem que, daquilo que se retira da pedreira, só se consegue transformar entre 6 a 12%, diz Luís Sotto-Mayor, da fábrica Marmetal. Aqui na pedreira, o corte com fio de diamante depende da pedra. É preciso perceber até onde se pode furar, coordenar os serviços das máquinas. “É o que nos rouba mais tempo”, lamenta o senhor Lobinho.
A quantidade de água “anormal para um dia normal”, descreve, permite criar “cascatas de água”, através de bombas que levam a água até ao de cima e a atiram novamente para baixo. Entusiasmado, Lobinho diz-nos que vai mandá-las ligar. “Fica ainda mais bonito.” Ficamos naquele piso, sentados numas escadas estreitas e meio enferrujadas, à espera das tais cascatas que vão cair. Um “miminho” para os visitantes – que apenas podem ter esta perspectiva natural do mármore em grupos de, no mínimo, duas pessoas – mas nem sempre garantido.
“Tradições há muitas...”
Voltamos a subir, no mesmo elevador periclitante, e depressa deixamos as montanhas de mármores, alguns impossíveis de aproveitar, para trás. São 13h e não há ninguém nas ruas de Vila Viçosa. Ouvem-se os passarinhos a chilrear e o estômago pede algo para enganar a fome. Este ‘algo’ transforma-se numa refeição com história, contada por Manuel Camarinha, do restaurante Taverna dos Conjurados. “Hoje fala-se muito no que é a comida tradicional mas tradições há muitas e gastronomia há pouca. Já vi uma tradição aqui no Alentejo que é tripas à moda do Porto”, critica. Mas compreende – “às vezes é sem querer ou até por necessidade” -, porém vai provar que o Alentejo tem tradições próprias e só nos vai presentear com “o que se come realmente em Vila Viçosa”.
A gastronomia da região é “um bocadinho diferente” daquela que se come no resto do Alentejo, alerta, fruto de casamentos entre duques portugueses e estrangeiros, que traziam para o Paço Ducal, a meia dúzia de metros de nós, cozinheiros com algum conhecimento de especiarias que combinaram com as ervas aromáticas usadas em Vila Viçosa. Deste casamento de gastronomias resultaram vários pratos. Provamos um gaspacho fresco – “que nada tem a ver com o gaspacho do norte do Alentejo ou com o espanhol”, exemplifica Manuel –, ao qual acrescentamos chouriço, batatas fritas ou omelete de ovo; lombinhos com migas de espargos e para terminar um manjar real das Chagas de Cristo, um doce conventual com ovos, amêndoa, especiarias e um ingrediente pouco usual, coelho.
A “esquisitice” com a comida aqui ficou de parte. Há que provar tudo, ainda que o estômago esteja cheio de tantas e tão variadas iguarias, dos vinhos, dos cozidos e dos doces. Provamos e deliciamo-nos. No regresso, de barriga bem aconchegada, as imagens de postal típicas do Alentejo – com o dourado das searas e o verde dos sobreiros a serpentear-nos à frente dos olhos –e que tantos turistas compram como recordação, estão em segundo plano. Em primeiro está, sim, a vontade de partir, de mochila às costas, e desbravar essas searas, descobrir, sentir e experienciar o verdadeiro Alentejo.
A Fugas esteve no Alentejo a convite da plataforma Compadres
Compadres: roteiros alentejanos à medida
A plataforma Compadres – “uma nova forma de consumir o património cultural do Alentejo”, explica a Spira, a empresa responsável pela sua criação, em Fevereiro de 2015 – quer promover um turismo de proximidade, apresentando os turistas ao “guardião local” de cada espaço.
Os Compadres disponibilizam uma variedade de recursos endógenos, entre arte, natureza, gastronomia e património industrial, agregando as rotas do Fresco (que dá a conhecer pinturas a fresco em igrejas, capelas e ermidas), Tons de Mármore (visita a pedreiras, galerias de exploração subterrânea, fábricas), Montado (visita a herdades), Pica-chouriços (que revisita o tempo da Guarda Fiscal que existia na fronteira, na altura da ditadura) e o atelier mãos-na-massa (atelier de cante, pão, compotas, caiação, pintura mural, pesca, descortiçamento, vinho).
Através do site ou da aplicação (disponível gratuitamente para iOS e Android), o utilizador escolhe o que quer visitar através de um mapa interactivo – que até à data engloba mais de 70 recursos em 21 municípios mas pretende cobrir mais territórios e disponibilizar a totalidade dos conteúdos em inglês – e os Compadres tratam da marcação. Antes de pegar nas malas e partir à descoberta, a plataforma envia um caderno de viagem personalizado, com informações e as coordenadas de cada local seleccionado.
A oferta disponível pode ser consultada directamente na aplicação ou no site www.compadres.pt