Fugas - Viagens

  • Humberto Lopes
  • Humberto Lopes
  • Humberto Lopes
  • Humberto Lopes
  • Humberto Lopes
  • Humberto Lopes
  • Humberto Lopes

Carcassonne: Se numa noite sem lua um viajante

Por Humberto Lopes

Com um admirável património monumental classificado pela UNESCO, Carcassonne é uma das mais impressivas cidadelas medievais da Europa. E é também cenário de animadas reconstituições da vida quotidiana da Idade Média, tradição que se estreou no final do século XIX e continua a mobilizar milhares de figurantes e forasteiros ao longo de todo o Verão.

Uma pausa no tempo, na Rue Saint Louis, anacronismo que Carcassonne ensaia quase sem interrupção desde finais do século XIX. Três personagens medievos, pele curtida pelo sol, barbas e cabeleiras desgrenhadas, sandálias de couro grosseiro, túnicas coloridas e gorros de pele, caminham a par, empunhando archotes, em direcção à Porta de Narbonne e ao terreiro onde dois cavaleiros terçam armas, rodeados por uma pequena turba de curiosos. O torneio é apenas um dos acontecimentos que preenche o extenso programa de animação estival — que começa, em boa verdade, no início de Maio e se mantém até Outubro.

A origem deste festival cultural está num grande espectáculo equestre realizado há mais de cem anos, em 1898. A cavalgada reuniu muitas centenas de figurantes em trajes medievais, com o propósito da reconstituição de cenários do século XIII. Nos anos subsequentes o acontecimento repetiu-se, ainda sem carácter regular, acabando por se transformar, no espaço de uma década, num festival anual que tem actualmente o seu zénite em Agosto, com espectáculos históricos, encenação de cenas da vida medieval, feiras e torneios.

Este imenso festival medieval, um dos mais antigos do género realizado em território europeu e que mobiliza um largo número de actores e participantes em variadíssimas actividades, não é a única, nem porventura a mais apelativa, atracção de Carcassonne. Muitos viajantes arribam à região seduzidos pela impressionante cidadela fortificada e pelo Canal do Midi, uma via de comunicação que liga o Atlântico ao Mediterrâneo e faz parte, também, da lista da UNESCO.

A cidadela

Das muralhas, firmadas sobre as bandas de um cabeço rochoso, as vistas são de antologia: vinhedos dispersos por colinas e planuras, a ponte sobre a serpente de água do Aude, com o seu cordão escuro de ciprestes, os plátanos a sombrear o Canal do Midi, do outro lado da cidade nova, as florestas do Languedoc e, lá para uns afastados horizontes, o maciço azulino dos Pirenéus a preencher quase todo o panorama a sul. O viajante não demora a ler no livro aberto da paisagem a valia estratégica da colina, reconhecida há já mais de dois mil anos pelos imperadores romanos, que ali mandaram compor uma urbe.

A época medieval viria a ser a era dourada de Carcassonne, quando o sistema de fortificações se ampliou e se desenvolveu a cidadela. Foi por essa altura que a grande heresia cátara fez de Carcassonne um alvo da Cruzada Albigense. O desfecho do desentendimento com a ortodoxia católica de Roma levou à fogueira muitos cátaros e culminou na integração da cidade no reino de França.

O visconde rebelde Raimond-Bernard Trencavel, senhor feudal do Languedoc que mandou edificar o castelo de Carcassonne, foi então substituído por Simon de Monfort, homem de confiança dos poderes papais, personagem que lançou, a seguir, um importante programa de construção de fortificações. Nos séculos XIII e XIV a estrutura de cidade medieval fortificada, tal como hoje a conhecemos, estava concluída, apta a dar prova inequívoca da sua inexpugnabilidade: durante a Guerra dos Cem Anos, não houve exército que a conquistasse.

Carcassonne tornar-se-ia depois, durante algum tempo, cidade fronteiriça entre França e o Reino de Aragão, acabando por perder pouco a pouco a importância militar que chegou a deter. No início do século XIX, após um sono de séculos, a fortaleza achava-se a caminho da ruína e parecia condenada ao desmantelamento e ao destino de pedreira, mas a intervenção do historiador e arqueólogo Jean-Pierre Cros-Mayrevieille e o patrocínio de Prosper Merimée, então Inspector dos Monumentos Históricos, salvaram-na de um fim inglório.

Muito do que vemos hoje — o castelo, as muralhas, o casario mediterrânico e o urbanismo de raiz medieval — renasceu do declínio pela mão do arquitecto Eugène Viollet-le-Duc, conhecido também por outras reconstruções de espaços urbanos e edifícios religiosos medievais, como o Mont Saint-Michel e as igrejas de Notre-Dame de Paris e de Amiens, e pela referência e inspiração que foi para a nascente arte-nova e para alguns dos seus expoentes, como Victor Horta e Gaudi.

O trabalho de restauro de Carcassonne começou pelas cinturas de muralhas e decorreu desde meados do século até à morte de Viollet-le-Duc, em 1879. Posteriormente, o arquitecto Paul Boeswillwald continuou a tarefa de reabilitação das muralhas e do castelo, removendo também o casario espúrio adossado aos muramentos. A aparência final, a que figura nas vistas de postal, é a que o sistema defensivo tinha por volta do século XIII. É, justamente, essa configuração de cidadela medieval fortificada que legitima a classificação da UNESCO como Património da Humanidade e a sua valorização como baluarte patrimonial do Languedoc-Roussillon.

Um anti-itinerário

Deambular sem rumo pelas ruas estreitas da cidadela é um programa idóneo, mas não se deve tomá-lo como receita, sobretudo nunca como receita. Viajar ou “turistar” — por mais que teime o discurso de quem busca um lugar ao sol ou sentido, tão-só, para o que faz — não é profissão, nem actividade que tenha de fazer oficial prova de produtividade. Se o viajante se identifica com desgovernos, e quer escapar, tanto quanto possível, à turba turística, vale a prioridade à petit matin dos relógios madrugadores ou aos itinerários noctâmbulos, quando as ruas se abandonam ao silêncio e à bruma, e com um pouco de fortuna diante dele se podem atravessar fantasmas cátaros de archotes nas mãos e pele curtida pela luz do sul, em vielas a que nem a lua chega.

Suba-se a uma das torres circulares do castelo, para magicar sobre a dureza da vida de sitiados ou atarantar memória com a cena final de Vertigo, a história em que Hitchcock fez a bela Kim Novak morrer e viver duas vezes. Passemos uma hora no Museu da Inquisição, uma colectânea de recordações tenebrosas, e outro tanto tempo na maravilha românico-gótica de Saint-Nazaire, admirando os vitrais — como a sublime “Àrvore da Vida” —, alguns deles sobreviventes do século XIII. Permaneçamos, ainda, uns instantes à sombra das casas de timbre medieval da Rue Saint-Louis, ou de outra qualquer da cidadela, a recordar o canto da Sibila provençal, na excelsa voz da soprano Monserrat Figueras e na espantosa gravação que Jordi Savall dedicou à tragédia e ao reino cátaro.

Às vezes, tantas vezes, é preciso abandonar a viagem no meio da viagem, para que o estranho possa sobreviver como estranho, como mistério a preservar. Depois, em movimento fortuito, cirandar pelas muralhas eternamente indiferentes à passagem das gerações e recolher às austeras salas góticas da Porta de Narbonne. E, antes de partir, dizer, enfim, expirado o (anti-)itinerário: “C’est assez”. Se à cidadela de Carcassonne se quer proteger os seus enigmas, os seus abismos, que não se meta, pois, o nariz em tudo. Partiremos mais ricos: de dúvidas, de perplexidades e de cogitações. E nos olhos levaremos a saudável cegueira das imagens por ver.

Uma última subida à muralha sudeste, a que se debruça sobre o velho cemitério de Carcassonne, para um exercício de gratidão à memória das coisas transicionais da infância, aquelas que Hubert-Félix Thiéfaine cantou numa evocação da sua meninez num recanto desta França rural: “Que ne demeurent les automnes / Quand sonne l’heure de nos folies / J’ai comme un bourdon qui résonne / Au clocher de ma nostalgie / Les enfants cueillent des immortelles, / Des chrysanthèmes, des boutons d’or / Les deuils se ramassent à la pelle / En bas, dans la ruelle des morts / Dans la ruelle des morts / Dans la ruelle des morts…”.

A rota das abadias e castelos cátaros

Poderia a história da Europa ter sido (muito) diferente sem a heresia cátara? Se há uma resposta para a pergunta, ela só pode ser formulada no âmbito das especulações da chamada história alternativa. Fosse a resposta positiva e irrecusável a sua verosimilhança, haveria a considerar, ainda, que a experiência cátara tentou afirmar-se como um oásis de tolerância na Europa medieval, dominada então pelo dogmatismo e pela tentação absolutista de Roma, e que na velha Occitânia judeus, muçulmanos, cristãos bizantinos e outras gentes puderam beneficiar de liberdade religiosa, interrompida pela chegada da Inquisição.

Na origem da Inquisição Medieval esteve a necessidade de o poder católico responder ao desafio que as heresias representavam — e o Catarismo, que se desenvolveu durante os séculos XII e XIII nos territórios feudais da região do Languedoc, no sul de França, revelou-se a mais expressiva heresia desse tempo e a que mais directamente desencadeou a iniciativa papal da Inquisição. Formalmente criado em 1184, no Concílio de Verona, o tribunal foi reinstituído pelo Papa Gregório IX justamente como reacção às crenças cátaras que grassavam em Albi e noutras cidades do sul, como Narbonne e Carcassonne. A dissidência religiosa cátara manifestava-se em vários aspectos, interpretando de forma diferente as Escrituras e censurando a hierarquia católica romana pelo afastamento da simplicidade do Cristianismo primitivo.

Face à resistência dos Cátaros (oriunda da Bulgária, foi no Sul de França que a heresia congregou mais adeptos e mais tempo perdurou), o Papa Inocêncio III decidiu lançar a chamada Cruzada Albigense, com o apoio dos soberanos gauleses de então, a monarquia dos Capetos, que tinham interesse, também, em alargar os seus domínios para sul. Os senhores feudais do Languedoc, que eram vassalos do condado de Toulouse e da Coroa de Aragão, eram aliados das dioceses cátaras — Carcassonne, Albi, Narbonne, Toulouse, Agen e Cahors — e a sua derrota na cruzada representou o declínio da heresia, assistindo-se à condenação de muitos dos seus membros à fogueira.

Carcassonne caiu em 1209, ano que ficaria marcado, também, por um grande massacre de população cátara em Béziers, quando vinte mil habitantes foram chacinados. “Os nossos, sem olhar a estado, idade ou sexo, passaram a fio de espada quase vinte mil pessoas. Após esta grande matança do inimigo, toda a cidade foi pilhada e incendiada e a vingança divina milagrosamente desencadeada sobre ela”, escreveu nessa altura, numa carta, o Papa Inocêncio III. A queda de Montségur, em 1244, significou o desaparecimento do último refúgio da hierarquia religiosa cátara.

Os castelos e abadias ligados à heresia cátara, na região do Languedoc, estão integrados numa rota histórica de carácter turístico (e de rigor por vezes contestável). Alguns desses espaços, assim como um punhado de museus, podem ser visitados a partir de Carcassonne.

www.payscathare.org

www.audetourisme.com

A Idade Média em cena

O programa de animação cultural tem exactamente esse nome e decorre até ao fim de Outubro, a par de outras iniciativas dirigidas a públicos diversificados, incluindo o público infantil. A animação é variada, ainda que organizada sistematicamente sob o signo da recriação de aspectos da vida quotidiana medieval. A maior parte das actividades decorre num espaço intra-muros designado oficialmente por “aldeia medieval reconstituída”.

Para além dos torneios de cavalaria, realizados num recinto apropriado e com duas sessões diárias, há inúmeros espectáculos de dança e música, exibições de aves de rapina, feiras medievais com produtos regionais e artesãos executando o seu trabalho ao vivo, ateliers interactivos e jogos infantis. Durante o mês de Agosto o programa é reforçado com a realização de “barbecues medievais” (informação prática disponível em www.tourisme-carcassonne.fr).

Em muitos castelos e abadias de povoações da região há, igualmente, programas de animação que incluem concertos de música medieval, reconstituição de ambientes quotidianos da civilização da antiga Occitânia, torneios e jogos medievais, jogos com arco e flecha, espectáculos de malabarismo, ateliers de pintura e de produção de instrumentos musicais com materiais reciclados (dedicados ao público infantil), ateliers de caligrafia, culinária e tecelagem, oficinas de profissões da Idade Média, etc. Pode-se encontrar informação detalhada sobre estes programas em www.payscathare.org/aout.

Até 31 de Agosto, o Atelier du Livre, na Rue Trivalle (na cidade nova), propõe sessões de iniciação em tipografia, gravura, composição e impressão de textos breves e fabrico artesanal de papel, duas vezes por semana. Também na cidade nova (capela dos Jesuítas, na Bastide), até ao final de Agosto, está disponível a exposição Carcassonne, ville(s) médievale(s), um interessante ensaio sobre a identidade urbana da cidade e os percursos históricos que circunstanciaram e conduziram à actual fisionomia de Carcassonne.

 

Guia prático

Como ir

Há voos low cost directos a partir do Porto. Para Toulouse, que fica a cerca de hora e meia de automóvel, há também voos regulares de Portugal. As cidades de Toulouse e Carcassonne estão conectadas por via ferroviária e a ligação é feita em menos de uma hora.

Quando ir

Carcassonne tem um clima temperado húmido, o que significa que o regime de pluviosidade se distribui por todo o ano. Os meses de Verão são os mais secos, com temperaturas frequentemente acima dos 30 graus, e o início do Outono é, ainda, uma época bastante razoável para viajar na região do Languedoc-Roussillon. A animação de inspiração histórica medieval decorre entre Maio e Outubro, com um pico de actividades durante o mês de Agosto.

Onde ficar

Durante o Verão, especialmente em Agosto, é indispensável reservar alojamento com antecedência. A primeira sugestão da lista que se segue, um hotel quatro estrelas, é uma das poucas unidades hoteleiras situadas dentro da cidadela. Os outros dois alojamentos estão localizados na cidade nova, à distância de uma breve caminhada até à cidadela.

Hotel Donjon
Rue du Comte Roger
Tel.: 33 468 112300; fax 33 468 25 06 60
www.hotel-donjon.fr

Hotel Les Trois Couronnes
Rue des Trois Couronnes, 2
Tel.: 33 468 253610
www.hotel-destroiscouronnes.com

Hotel Astoria
Rue Tourtel, 18
Tel.: 33 4 68 25 31 38, fax 33 4 68 71 34 14
Email: hotel-astoria@wanadoo.fr
www.astoriacarcassonne.com

--%>