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Ceuta das estátuas, das fronteiras e dos sonhos

Por Sousa Ribeiro

Há 600 anos, depois de sete séculos de domínio árabe, Ceuta era tomada pelos portugueses. Durante mais de 200 anos, a cidade onde Luís de Camões perdeu o olho direito falou, viveu e sentiu português e, ainda hoje, a sua presença se entranha na porta de África e da Europa, do Atlântico e do Mediterrâneo.

No Paseo da Marina Española há uma estátua de Gandhi, em homenagem ao líder do movimento nacionalista indiano contra o domínio britânico; não muito longe, no mesmo Paseo, ergue-se uma outra, do rabino Yosef Bem Yehuda Bem Acnin, um conceituado astrónomo, matemático e médico judeu que nasceu e viveu em Ceuta no período de esplendor almóada da cidade; na Plaza de Al Idrisi, outra, em bronze, presta tributo ao cartógrafo homónimo, apontado como o melhor geógrafo da Idade Média — manteve a teoria da esfericidade da Terra —, também ele nativo de Ceuta; na rotunda de Puente del Cristo, mais uma estátua, a do Infante D. Henrique, para os mais íntimos Henrique, O Navegador, a figura mais proeminente do início de uma época de glória, os Descobrimentos, como aprendemos nas cadeiras das escolas.

“Todos estavam impacientes por partir; mas o vento norte fresco, o vento de monção, assobiava contra as paredes do quarto onde jazia moribunda, com a peste, a Rainha D. Filipa. Ninguém pusera na empresa melhor amor do que ela: mandara fazer três espadas cravadas de pedraria para os filhos, que em Ceuta haviam de ser armados cavaleiros; mas o destino não lhe consentiu ver terminada a façanha. Morreu; e ainda não se tinham acabado de arrancar das paredes do convento de Odivelas os panos de dó do enterro, quando a armada partia”, leio, com renovado prazer, percorrendo páginas amarelecidas pelo tempo, em História de Portugal, de Oliveira Martins, da Guimarães Editores.

O Infante convencera o pai, D. João I, a apoderar-se da cidade e, a 21 de Agosto de 1415, há 600 anos, Ceuta passava para as mãos dos portugueses.

“Os moradores abandonaram-na depois de um combate em que obtiveram a prova da inutilidade da defesa; e os cristãos saquearam a cidade deserta, arrancando as colunas de alabastro, os mármores das portas e janelas, os tectos lavrados em painéis dourados, dos palácios da opulenta Ceuta. Enquanto a turba dos soldados se espalhava pelos meandros das ruas e pelas casas da cidade abandonada, os fugitivos, de longe, sobre as colinas, bradavam desesperados e miseráveis num triste clamor de perdidos.”

A chegada do Islão a Ceuta é posterior ao seu desembarque na península mas a cidade permanecerá durante sete séculos sob o domínio muçulmano, até ao entardecer desse dia de Agosto, quando João Vasques de Almada hasteou o estandarte real e a bandeira de Lisboa na Torre da Vela de Ceuta, quase 80 anos antes de os Reis Católicos darem por concluída a Reconquista, na cidade de Granada.

“Ceuta era portuguesa; e uns sinos, antigamente tomados em Lagos, serviam desde logo para solenizar a sagração da mesquita dos infiéis.”

Com a conquista portuguesa, cria-se, no mesmo ano, a diocese de Ceuta e a catedral de Nossa Senhora da Assunção, elegante nos dias de hoje, com a sua fachada constituída por um módulo central, flanqueado por duas torres gémeas e encimado por um frontão triangular, substitui a antiga mesquita. Muito deteriorada na segunda metade do século XVI, não passava de um conjunto em ruínas em 1665, quando foi decretado o seu encerramento. Mais tarde, durante o cerco de Muley Ismail, no final do século XVII, o edifício já dispunha de cobertura mas antes de ser consagrado, em 1726, ainda funcionou como quartel de infantaria.

Ao lado, o museu da catedral de arte sacra, com uma relevante mostra de obras pictóricas, escultóricas e de artes sumptuárias, com particular incidência da época do barroco, bem como uma significante colecção de ourivesaria e de ornamentos litúrgicos.

Para a minha direita, o mar, o sol varrendo as águas, prateando-as, mil espelhos cintilando quando a tarde avança cheia de pressa — e sobre as areias, um homem entregue à sua solidão, fitando o horizonte.

“Que se fazia porém de Ceuta? Muitos opinavam pelo abandono, recolhido, como estava, o saque: eram os que ignoravam os vastos desígnios do infante, ou os não aprovavam”, escreve ainda Oliveira Martins.

Desde esse dia longínquo da tomada de Ceuta e durante mais de dois séculos — até os ceutenses manifestarem a sua vontade de integrar a coroa de Castela, em 1640 —, a cidade “viverá, falará e sentirá em português”, como se pode ler num dos folhetos que promovem o turismo local. Ceuta conserva na sua bandeira o escudo e as armas portuguesas e as autoridades políticas não negam, em momento algum, a importância da presença de Portugal, definida como um ponto de viragem na história da cidade.

“É um dever de todos os cidadãos de Ceuta recordar esta data (21 de Agosto de 1415). Um povo sem história e sem memória é um povo sem identidade e sem futuro. A chegada dos portugueses marcou um antes e um depois na história da cidade. Marcou o futuro e a estabilidade territorial que se manteve desde aí. Nada foi tão importante como a chegada dos portugueses a Ceuta”, admitiu, não há tanto tempo como isso, no Senado de Madrid, a senadora ceutense Luz Elena Sanín.

Ceuta torna-se, rapidamente, na principal base dos corsários portugueses e permite alargar os horizontes de uma ambição sem limites e sem fronteiras e que ia muito mais para lá do controlo do movimento das embarcações que rasgavam o Estreito de Gibraltar ou de sabotar o comércio entre o Reino de Granada e Marrocos.

Face à sua posição estratégica, Ceuta atraía caçadores de fortunas, outro tipo de sonhadores, degredados, uma população marginal que emprestava tudo à cidade menos uma verdadeira estrutura social baseada na tradição — todo um conjunto de actividades pouco (nada) nobres, como a pirataria e, mais tarde, o tráfico de escravos.

Em meados do século XVI, também Luís de Camões viajou para Ceuta, onde combateu e perdeu o olho direito, um facto que haveria de marcar o poeta, autor de Os Lusíadas, até ao fim dos seus dias.

“Eis mil nadantes aves
pelo argento
Da furiosa Tethys inquieta
Abrindo as pandas asas
vão ao vento,
Para onde Alcides
pôs a extrema meta.
O monte Abila
e o nobre fundamento
De Ceita toma,
e o torpe Mahometa
Deita fora,
e segura toda Espanha
Da Juliana, má,
e desleal manha.”

Todas as religiões

Em Ceuta há mais estátuas. Na Avenida de España, há uma que representa a convivência, um prémio criado em 1998 pelas autoridades locais que apoia e promove o respeito entre diferentes culturas. Viajar por Ceuta é como percorrer os caminhos do passado; ao fundo, avista-se a fronteira com Marrocos que, observada e sentida do outro lado, expressa mais uma ideia de futuro, feita de desejos e de viagens sonhadas e tantas outras vezes adiadas. Ceuta, a Europa em África ou África na Europa, é uma cidade onde parecem caber todas as culturas e, a despeito da sua reduzida área, todos os povos e todas as religiões.

Em Ceuta, encontram-se cristãos, muçulmanos, judeus e hindus. Tanto se pode prestar culto no Santuário de Nossa Senhora de África, cuja história remonta a 1421, altura em que o Infante D. Henrique decidiu enviar a imagem da santa a Ceuta, ordenando que a venerassem e construíssem um templo para a acolher — ou mesmo ir em peregrinação, a 13 de Junho, até à Ermida de Santo António —, como na Mesquita de Sidi Embarek, com o seu marabuto do século XVII, como, ainda, na Sinagoga de Bet El, construída nos anos 1970 e com os seus vitrais de tonalidades garridas, ou, finalmente, no bonito templo hindu, símbolo religioso de uma comunidade que vive em Ceuta desde o início da segunda metade do século passado.

As sombras dançantes das palmeiras insinuam-se ao longo do interior das muralhas da cidade; estas representam a evolução histórica de Ceuta, as múltiplas transformações sofridas na sua estrutura defensiva, mais notórias com a chegada dos portugueses e após a reconstrução levada a cabo na sequência do devastador temporal que, no século XVII, arrasou os muros, a despeito de algumas partes, muito próximas do Bastião dos Maiorquinos (perto do posto de turismo), procederem do traçado primitivo que remonta ao século X, do tempo de Abd al-Rahman III.

Quando o crepúsculo envolve a cidade, Ceuta parece ainda mais indolente mas não tarda, daí a instantes, a ser percorrida por um pulsar pleno de vida, homens e mulheres caminhando para cá e para lá, enquanto retiram prazer da brisa suave e dos cheiros que chegam do mar e se mostram indiferentes à beleza de alguns dos prédios mais magnificentes do centro urbano.

Na Calle Camoens com a Millán Astray, ergo os olhos para os plantar nas réplicas dos dragões originais que foram retirados durante a II República e que coroam a Casa dos Dragões, um edifício historicista de três andares, de finais do século XIX; numa esquina do Paseo del Revellín, projecta-se contra o céu cada vez mais alaranjado o Edifício Trujillo, em homenagem à família que o mandou erguer, um exemplo de arquitectura neobarroca de estilo historicista, tão comum em muitas das grandes avenidas de cidades espanholas.

Não muito longe, na Plaza de África, destaca-se o Palácio da Assemblea, uma construção que teve o seu início há pouco mais de cem anos e que foi inaugurada em 1927 pelos reis de Espanha, D. Afonso XIII e D. Vitória Eugénia, com um interior magnificente, a sua escadaria imperial, com cerâmicas de Talavera às quais não faltam um toque de inspiração português e com assinatura de Ruiz de Luna, bem como o Salão do Trono, de estilo francês.

Quando os céus se começam a tingir de vermelho, passo pela Casa dos Púlpitos, levantado em 1934/35 e com os seus elementos neoclássicos e barrocos, as suas varandas, elegantes e responsáveis pela designação. O mar está próximo, sente-se-lhe o cheiro, não muito distante recorta-se a silhueta do edifício da Autoridade Portuária, como um barco em terra firme, restaurado recentemente e tão singular com os seus beirais em relevo, a estrutura subindo nos céus como se de chaminés se tratasse.

A meio da tarde do dia seguinte, deixo o centro urbano para trás, o asfalto é como uma serpente, sempre de olho no mar agora com as suas vagas calmas, estendendo-se até perder de vista. Ao longe, desfeita uma curva, perscruto casas de múltiplas cores subindo pelo dorso da colina pouco pronunciada e, ao fundo, também à minha direita, uma praia que emana serenidade, recolhida numa enseada, com as suas águas ainda mais serenas, um ou outro pescador com todo o tempo para o tempo.

É a enseada do Desnarigado e, olhando para cima, enquanto piso a areia e o cascalho da praia, avisto os contornos do forte homónimo, hoje transformado em Museu Militar e, ainda mais para cima, a Fortaleza do Hacho, erguida no início do século X por decisão de Al -Mansur, com os seus muros e torres semicirculares, provavelmente do século XVI, unindo diferentes bastiões construídos dois séculos mais tarde e, no seu interior, alguns edifícios, o principal deles utilizado durante mais de um século como prisão.

Entro no barco que irá fazer a ligação entre Ceuta e Algeciras e vejo um elemento da tripulação correndo atrás de um menino árabe que procurava passar despercebido. Descoberto e agarrado com mãos firmes, não lhe resta alternativa — as ruas de Ceuta esperam-no com a mesma paciência com que ele espera materializar um dia um sonho eternamente adiado. Um sonho que não é só dele mas de muitos.

GUIA PRÁTICO

Como ir

Ceuta não está servida de aeroporto (ocupa uma área que não ultrapassa os 18 km2 e tem uma orografia complexa) e, desde há uns anos a esta parte, também as ligações aéreas de helicóptero (com Algeciras e Málaga) foram suspensas devido à escassa procura. Assim, a única forma de chegar àquela cidade situada no continente africano é por via marítima (em alternativa pode recorrer a um aeroporto africano), utilizando uma das três companhias que fazem o trajecto, várias vezes ao dia, entre Algeciras e Ceuta em cerca de 45 minutos. Preços (por pessoa e viatura) e horários podem ser consultados nos sites da Transmediterranea, da Acciona e da FRS. A distância entre Lisboa e Algeciras é de aproximadamente 700 quilómetros e o custo das portagens ronda os 35 euros, um valor que pode ser poupado se, com um pouco mais de tempo, utilizar algumas estradas nacionais, pelo menos até Sevilha.

Quando ir

Ceuta pode ser visitada em qualquer altura do ano por beneficiar de um clima suave, com características mediterrânicas. Na verdade, trata-se de um microclima muito particular, dada a sua situação geográfica, em pleno Estreito de Gibraltar, com forte influência do oceano Atlântico e do mar Mediterrâneo, bem como da protecção, no interior, da cadeia montanhosa do Jebel Musa. Os termómetros raramente ultrapassam os 32 graus, a média anual anda à volta dos 17, a precipitação é irregular e a humidade, muito alta, é uma constante ao longo do ano. Agosto é, por norma, o mês mais quente e Janeiro o mais frio — as chuvas são mais frequentes entre Outubro e Março.

Onde comer

Berço de distintas culturas, Ceuta recebeu uma importante herança culinária que a proximidade do mar exacerba — vale a pena uma visita ao Mercado Central de Abastos para ver o grande número de peixarias vendendo diferentes tipos de peixe fresco. A oferta é multifacetada mas o restaurante Bugao, na Calle Independencia, 15, é um dos melhores espaços gastronómicos em toda a cidade. Aberto de terça a sábado, entre as 13h e as 16h e das 21h às 00h — à segunda apenas para almoço —, o Bugao tem uma extensa oferta de peixes e carnes (a ementa muda de três em três meses) e um ambiente familiar. Situado fora do centro mas com um miradouro que oferece uma vista soberba sobre o mar, o restaurante Oasis, na Carretera San Antonio Monte Hacho, é especializado em comida típica marroquina, com uma qualidade difícil de igualar em toda a cidade e uma decoração que não deixa ninguém indiferente. Finalmente, pode provar os sabores de um dos restaurantes na moda neste Verão, o El Muelle, na Avda. Juan Pablo II, Edifício Poniente, Piso 1, com um ambiente descontraído, boa música, panorâmica sobre o porto desportivo e comida deliciosa (o peixe grelhado permanece como uma das melhores opções) a um preço em conta.

Onde dormir

A opção mais luxuosa (um quarto duplo desde 95 euros por noite) passa pelo Parador Hotel la Muralla, na Plaza Ntra. Sra. De África, 15, situado junto ao mar, a dois passos das antigas Muralhas Reais, com uma atmosfera andaluza e panorâmicas sobre o centro histórico. Menos luxuoso, mas localizado num espaço rodeado de vegetação, no sopé dos Montes de Garcia Aldave, uma das encostas de Ceuta, está o Complexo Rural Miguel de Luque, na Carretera del Pantano, com modernas e confortáveis cabanas de madeira, acrescidas de dois albergues e de um outro com quartos individuais — a tarifa por noite, ao fim-de-semana, é de pouco mais do que 40 euros por noite. Ceuta dispõe de um grande número de pensões — e hostales — a preços acessíveis mas é importante verificar o tipo de condições que lhe são proporcionadas — alguns têm quartos demasiados pequenos, outros um péssimo serviço de atendimento e outros ainda apresentam como desvantagem o ruído que se prolonga pela noite dentro.

A visitar

Além do já referido museu de arte sacra, na catedral, a cidade tem outros que justificam uma visita, como o Museu de Ceuta, abrigado num dos pavilhões do antigo revelim — construído em 1900 e reabilitado em 1989, ano em que foi declarado Bem de Interesse Cultural —, com uma exposição arqueológica permanente que abarca as Idades Antiga, Medieval e Moderna e outras duas salas que acolhem mostras temporárias. No Muelle de España pode também visitar a Fundação Museu do Mar, um testemunho da evolução registada pelo porto ceutense até aos nossos dias e, na Plaza de la Paz, os Banhos Árabes, alegadamente erguidos entre os séculos XII e XIII e formando uma série de divisões de planta rectangular com admiráveis tectos em abóbada e clarabóias.

Para quem busca um pouco de lazer, aconselha-se um dia no Parque Marítimo do Mediterrâneo, uma área com mais de 50.000 m2, com lagos azuis de água salgada inseridos num jardim botânico com espécies de todo o mundo, cascatas e saltos de água, solário e palmeiras — na verdade, a obra póstuma do artista César Manrique é uma das principais atracções de cidade.

Ceuta oferece também a possibilidade de desfrutar de algumas boas praias, entre elas a do El Chorrillo, a maior de todas, com bandeira azul, areia fina, águas mornas e dóceis, em contraste com outras, na parte norte da baía, na costa atlântica, com águas mais frias — como a de Benzú (bonito pôr do sol), a de San Amaro (pouco concorrida), a de Benítez (numa zona urbana) e a de Calamocarro (no sopé de um monte de pinheiros e com águas cristalinas).

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