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Curitiba, a cidade exemplar

Por Andreia Marques Pereira

Pode ter passado muito tempo na sombra de São Paulo, mas conseguiu emancipar-se e a reputação de Curitiba é global: paradigma do urbanismo, amante da cultura e militantemente verde — ou não fosse capital do Paraná, o estado que alberga uma das maravilhas da natureza, as Cataratas do Iguaçu. É também uma cidade onde cabe todo o mundo e daí nasce o seu charme e a sua força numa história que tem tido sempre os olhos no futuro.

Chega o frio e em Curitiba anseia-se por que ele traga a neve, “nem que seja por uns minutinhos”. Pelo menos a cidade ligada ao turismo, aquela que sabe que a sua mera sugestão pode ser garantia de hordas de visitantes vindos do Norte em busca de um sabor a Inverno-Inverno, não Inverno de chinelo no pé.

Nós chegamos com o Outono em velocidade cruzeiro, friozinho q.b. — o suficiente para as lareiras de restaurantes e bares estarem acesas e para o quentão, a versão local do vinho quente, saber a conforto. Ironias da geografia: agora que nos preparamos para o nosso Outono, Curitiba está prestes a receber a Primavera que se anuncia vestindo os ipês de flores amarelas e acabando com a geada que, essa sim, é presença constante nos cenários invernosos de uma cidade de um milhão e 800 mil habitantes, paradigma do urbanismo, amante da cultura e militantemente verde — sabemo-lo antes de chegarmos: a sua reputação precede-a.

Se calhar, às vezes, um nome marca o destino. No caso de Curitiba — “curi” é pinhão, “tiba” muito, na língua tupi-guarani, dos habitantes pré-Curitiba, portanto — não é literal, mas a intenção está lá. As araucárias, ou pinheiros-do-Paraná, continuam a ser símbolos destas paragens do Brasil sulista, agora como espécie protegida tal a devastação ao longo dos tempos. No entanto, há algo de herança dessa pré-história de Curitiba na Curitiba do presente e na que se projecta no futuro (e não é à toa que falamos do futuro, já que esta cidade sempre teve os seus olhos postos aí). Traduzindo, Curitiba tem 33 parques e bosques: são motivo de orgulho indisfarçável.

Praias verdes e autocarros-metro

Diz-se mesmo que os parques são a praia de Curitiba, situada num planalto a 934 metros metros de altitude. A manhã está cinzenta, mas o Jardim Botânico está pintalgado de vultos, de grupos. Há quem corra militantemente, há quem passeie descontraidamente, há quem chegue em excursões — e no meio de tudo isto, uma aula gigante de ioga num relvado, com vista para o pavilhão de ferro (pintado de branco), ao estilo do Palácio de Cristal de Londres, que no interior alberga uma estufa e é o topo de um jardim formal.

Estamos num oásis, os prédios são as nossas dunas de areia, mais ou menos distantes, dependendo de onde estamos: olhamos os imensos relvados, os bosquetes e, na distância, vemos o skyline coberto pela bruma matinal; ou podemos vê-lo a irromper por detrás da cintura arbórea (40% da área do parque é constituída por Mata Atlântica) tão perto mas noutra dimensão. As araucárias são, claro, incontornáveis entre a flora e a sua silhueta contra os arranha-céus, por vezes como um menorah quase perfeito, são imagens compulsivas para fotógrafos.

Um oásis entre as dezenas de parques de Curitiba: preservação e promoção do contacto com a natureza, convívio, chamariz turístico. É tudo isso, são tudo isso e são também uma notável opção de planeamento urbano, tendo sido criados como sistema de escoamento de águas — os lagos não são apenas estéticos, são uma forma de controlar possíveis enchentes. “Em vez de centrais de drenagem, fizeram grandes lagos com parques em redor. São mais baratos e temos, ao mesmo tempo, saneamento e área de verde de lazer, mais do dobro do recomendado pela OMS”, explica Cesar Rozalinski Kuczkowiski, o nosso guia.

Já não olhamos da mesma maneira para o espelho de água e patos que deambulam pelo lago do Jardim Botânico (não vemos nenhuma capívara, mas asseguram-nos que são habitantes), e muito menos o faremos no Parque de Tanguá. Em Tanguá, um antigo complexo de pedreiras perto da nascente do rio Barigui que se transformou em dois lagos unidos por túnel, cascata sobre a pedra viva, cercado por espaços verdes tutelado por um mirante — a fórmula repete-se noutros parques e no das Pedreiras, associa-se à cultura e a ousadias arquitectónicas, plasmadas na Ópera do Arame: o nome indicia a aparente delicadeza do edifício transparente seguro por tubos de aço, assente no fundo das escarpas ao lado de um lago.

Estes parques são a face mais óbvia de algo que intuímos rapidamente: em Curitiba nada se perde, tudo se transforma. Pelas ruas indicam-nos vários centros comerciais que tiveram outras vidas — desde uma fundição a uma estação ferroviária, por exemplo; o “camelódromo”, antes um conjunto desordenado de barracas, está agora concentrado num pavilhão. Uma espécie de versão local de “ordem e progresso”, a mesma que faz com que se construa uma universidade bem no centro de uma zona marginal para tentar promover a qualidade de vida local e que naturalmente cria uma “rua temática de sapatos” para onde há transportes organizados (no bairro do Bom Retiro).

Não hajam dúvidas: os curitibanos sabem que são privilegiados e usam os seus privilégios. Logo depois dos parques — e “curitibano gosta muito de rua, sentar na praça, na grama”, sublinha César —, o que mais anda na boca deles para estrangeiro ver são os “ligeirinhos” e os “ligeirão”, que de ligeiros, tanto um como outro, têm pouco: são autocarros articulados ou biarticulados que fazem as vezes de um metro de superfície, percorrendo faixas dedicadas nas principais artérias da cidade e parando diante de cápsulas de vidro, que parecem ter saído do futuro. É por elas que se faz o acesso aos autocarros, já com bilhete na mão, no mínimo de tempo possível.

Esta foi a resposta de Curitiba à necessidade de melhorar o seu sistema de transportes públicos na década de 1970, quando a sua população quase havia triplicado nos últimos 20 anos. Por essa altura tinha cerca de 361 mil habitantes, agora vai em um milhão e 800 mil, e o sistema pensado para melhorar o transporte colectivo sem arruinar os cofres (como aconteceria com a primeira ideia, o metropolitano) continua a ser um marco da cidade (entretanto exportado para outras de maior dimensão, como Bogotá com o seu Transmilénio) — e os autocarros “ligeirão”, azuis, são também os maiores do mundo, transportando 250 passageiros.

Ainda bem que há este investimento nos transportes públicos, porque o “curitibano é considerado o pior condutor do Brasil”, revela, divertido, César, o nosso guia, para logo nos tranquilizar, “o Jairo [nosso motorista] é de Londrina”. Mas talvez essa “lendária” falta de jeito ao volante também seja resultado da preferência dos curitibanos pelas motos. Apesar de chover muito, os motoqueiros são uma legião por aqui e até se diz que para um casar tem de gostar tanto da mulher como da mota.

Marco zero e calçadão

Está claro que Curitiba sabe o que quer. E quer o progresso sem abrir mão da qualidade de vida. Por isso, pouco antes de o inovador sistema de autocarros entrar em funcionamento, abriu a maior rua pedonal do Brasil, em 1972. É na Rua XV de Novembro, que fica o “calçadão das Flores” (designação herdada do nome da rua entre 1850 e 1880, Rua das Flores), a parte que foi então fechada ao trânsito transformando-se numa passarela para curitibanos: calçada portuguesa, grandes floreiras, esplanadas, artistas de rua, entre edifícios centenários e muito comércio.

Pela sua antiguidade, a Rua XV de Novembro está incrustada na história da cidade e é marca de um certo brio cívico, casa, por exemplo, do Teatro Guaíra, um dos muitos da cidade cuja exigência cultural e a paixão pelo teatro (o seu festival é uma referência) a coloca na rota das grandes companhias, que aqui “testam” muitas vezes os seus espectáculos antes de saírem em digressão pelo país. E quando o “calçadão das Flores” se une à avenida Luiz Xavier (aqui garantem que é a mais pequena do mundo e num sábado à tarde enche-se de insufláveis para crianças), forma-se a “Boca Maldita”, local incontornável para manifestações ocasionais, debates diários nos cafés e quiosques, ponto tradicional de encontro de intelectuais — com o célebre “bonde” vermelho e branco, que veio de Santos para se tornar atracção turística de Curitiba, estacionado perto.

Não estamos longe do centro histórico da cidade, o chamado “marco zero”, a Praça Tiradentes onde se ergue a catedral. Não foi daqui que houve Curitiba — a povoação original fica nos actuais subúrbios, mas foi aqui que assentou, depois de, diz a lenda, a Nossa Senhora da Luz (levada de Portugal pelos primeiros colonos) indicar o local, e daqui irradiou, crescendo ao longo dos séculos e dos ciclos económicos que lhe moldaram o destino.

Da cidade colonial, fundada em 1693 (e promovida a capital do recém-criado estado do Paraná em 1853), não restam muitos vestígios — sobram a Igreja da Ordem, a mais antiga de Curitiba, e uma casa, ambas do século XVIII, ambas no Largo da Ordem. É um ponto incontornável, para turistas e curitibanos, mais que não seja ao domingo, quando se transforma na Feira do Largo, mais de 1500 bancas com artesanato, antiguidades, produtos regionais, objectos de decoração, livros, roupas — e até uma “praça de alimentação”, onde o pastel de bacalhau marca presença. Também há quem a chame de “praia de domingo do curitibano” e quem torça o nariz, “só se for para mulheres”.

O mundo cabe aqui

Percorremo-la na versão feira e na versão diária, a melhor forma de descobrir bares, restaurantes, galerias que se abrigam nos edifícios oitocentistas. Aos arranha-céus vemo-los quase como uma casca deste centro histórico quando seguimos a música que se insinua na rua para dar de caras com um workshop de tango — hoje é sorte, ao domingo o tango faz parte da programação da Casa Hoffmann, ali na órbita do Memorial Curitiba. O centro cultural com nome germânico (dos proprietários austríacos originais), o restaurante quase ao lado com especialidades polacas (como os nossos pieroggis), o Palácio Garibaldi, o bar do Alemão (fama e proveito), a mesquita Iman Ali e tudo o que nos terá passado despercebido são uma amostra da diversidade étnica de Curitiba, um caldeirão onde, além da mistura original de indígenas e portugueses, cabem ucranianos, polacos, alemães, italianos, chegados durante o século XIX, e também japoneses, sírios, libaneses, que aportaram já no século XX.

O resultado é uma diversidade cultural (e religiosa: a cidade tem igrejas, sinagogas, mesquita e templo budista e a convivência é tão normal que vemos uma igreja metodista mesmo ao lado de um templo da IURD) natural e acarinhada — a gastronomia curitibana tanto inclui gnocchi e apfelstrudel como o muito paranaense barreado, as tradições locais são um mosaico de heranças dos países de origem e parques, praças e portais homenageiam as “pátrias” de Curitiba. Homenagens que não ficam pelos nomes, constroem memórias dos velhos países — veja-se o caso do Bosque Alemão, com o seu trilho Hansel e Gretel, ou da Praça do Japão, que alberga um jardim japonês com lago de carpas e cerejeiras vindas do Japão.

E, em Vila Felicidade, apesar do nome insuspeito, concentrou-se a antiga colónia italiana, cuja herança está preservada na arquitectura e na restauração. O bairro é uma meca gastronómica que encerra uma curiosidade, o maior (cinco mil lugares) restaurante da América do Sul, o Madolosso, cuja especialidade é, curiosamente, frango frito, e um Natal que dura o ano inteiro na Adega Durigan, edifício quase alpino, debruado de luzinhas coloridas: no interior é loja gourmet (vinhos, queijos, presuntos, compotas...); no exterior é cenário de fotos de noivos que chegam em limusines.

Não importa a origem de cada um neste tecido humano que enformou o estado do Paraná: cada um se vê ao espelho no Museu Paranaense, resumo do território desde a pré-história à chegada de imigrantes. E na Praça de 19 de Dezembro (que assinala a emancipação do Paraná em 1853), onde é prestada homenagem a todos os emigrantes e se passa em revista os ciclos económicos que ao longo dos séculos foram fazendo a riqueza deste território em painéis e baixos relevos. Também é conhecida por “praça da estátua do Homem Nu” (e também há uma mulher nua), devido à escultura do Homem Nu que representa o Paraná emancipado e sem medo do futuro.

De olhos no futuro

Há uma fixação no futuro aqui em Curitiba que se descobre até nos seus monumentos. O Paço da Liberdade, a antiga prefeitura (câmara municipal) e actual museu de artes plásticas, é o único edifício da cidade três vezes classificado — é monumento municipal, estadual e federal — e foi um suspiro arquitectónico pelo devir. Foi construído no que em 1916 era o limite da cidade, voltado para fora, para onde não havia nada — a olhar o futuro, resume César. Tem um estilo ecléctico, onde sobressai a Arte Nova, que se desenha de forma distinta em cada andar, cada qual também com funções diferentes. Foi o primeiro edifício com elevador de Curitba, “símbolo da nova era na história da cidade, de encantamento com o progresso e a racionalidade técnica”, descreve César, e inspiração para outras obras públicas que acompanharam todo o século XX.

E nada mais adequado para uma cidade de olhos postos no que ainda não chegou do que um Museu Oscar Niemeyer. Já estamos no chamado Centro Cívico, que alberga edifícios governamentais e judiciais, estaduais e locais — “nos anos 50 era cartão de visita, agora é zona de protestos”, ironiza César, quando vemos uma tenda branca, com cartazes de professores em luta desde Abril —, e o próprio museu foi inicialmente construído como sede de secretarias de Estados, em 1976, em estilo modernista. Foi também Oscar Niemeyer que concebeu a sua conversão em museu, tendo-lhe acrescentado um novo edifício, que tem a forma de um olho em betão e vidro, assente numa base de azulejos amarelos onde a negro se desenham figuras sinuosas, como que acompanharem as linhas curvas do próprio “olho” — tão icónico se tornou este novo anexo que o museu é mais conhecido como “do olho”. A exposição de Sebastião Salgado, Génesis, é a cabeça de cartaz neste Maio, mas a dedicada ao arquitecto é permanente.

Cá fora, o “cachorródromo” à entrada do Bosque do Papa (em homenagem à visita de João Paulo II em 1980) está concorrido. Para lá do relvado, a floresta guarda o Memorial Polonês, casas de madeira como aquelas onde viviam os primeiros imigrantes polacos. É também de ascendência polaca César, o professor de biologia feito guia que nos conduz por esta cidade que não se desvia do futuro mas não esquece o passado. Iluminada, quem sabe, pelos seus Faróis do Saber, a rede de bibliotecas comunitárias que complementa a Biblioteca Pública do Paraná, uma das maiores do Brasil: são 45 espalhados por toda a cidade e edificados em forma de torre (com algumas excepções, como o Farol do Saber Gibran Khalil Gibran que se situa no Memorial Árabe, e tem arquitectura islâmica) — homenagens ao antigo farol e biblioteca de Alexandria.

De comboio pela história

Há um rio Ipiranga assinalado e Cesar alerta que não tem nada a ver com o riacho onde foi proclamado o famoso grito do Ipiranga, o momento simbólico da “independência ou morte”, génese do Brasil independente. Esse começa e acaba em São Paulo, nós estamos no troço da Serra do Mar paranaense, declarada  Reserva da Biosfera da Mata Atlântica pela UNESCO, que separa Curitiba do litoral — e que a linha ferroviária uniu em 1885 ligando a capital do estado a Paranaguá, na costa. A água do rio é vermelha, barrenta, em contraste com o verde absoluto que nos espera, de natureza quase intocada. Nós chegaremos ao mar, mas não nesta litorina (comboio) de luxo do Great Brazil Express — vai deixar-nos em Morretes e seguiremos até Antonina de “van” —, que nos transporta pela história de várias maneiras: pelo próprio vagão onde seguimos, pelo traçado que percorre e pelos destinos. Todos a bordo, o comboio vai partir.

E vai mesmo a apitar. Enquanto não saímos da zona urbana, o comboio segue lentamente apitando em todas as passagens de nível — o apito deixará de se ouvir, a velocidade, essa, vai manter-se. Afinal, a ideia é deixar a paisagem envolver-nos: o destino é importante, mas é um pretexto para quem vai nesta carruagem dos tempos em que comboios de luxo eram como salões, com painéis de madeira, poltronas e sofás de couro e de tecido, mesas redondas e rectangulares, candeeiros — e serviço à mesa. O cenário ideal para descobrir uma história que começou em 1880, quando se deu finalmente início aos trabalhos de construção da linha ferroviária, um projecto várias vezes adiado, tal a ousadia que representava. Vários engenheiros europeus recusaram-no, alegando a impossibilidade da obra, dois irmãos, baianos e negros, os Rebouças, aceitaram-no com o pedido especial ao imperador de não serem utilizados escravos na sua construção. D. Pedro II aceitou e em 1885 esteve presente na inauguração.

Um dos 14 túneis (a que se juntam 30 pontes e incontáveis viadutos que transformaram esta linha num prodígio da engenharia oitocentista), o da Roça Nova, encontrou nova vida, transformado em adega de espumantes aqui produzidos; e passado este trecho a exclamação do pequeno João, a viajar com os pais: “Mãe, estamos na selva!”. A “selva” é a Mata Atlântica virgem (a maior porção dela) que cobre montanhas e vales profundos e se deixa rasgar por rios, lagos, cascatas. Estes não vemos: vemos o mar de verdes que ondula com o terreno e se deixa matizar de várias luzes e às vezes encobrir de farrapos de névoa. Passamos ruínas melancólicas, paramos em santuários (do Cadeado) que são varandas na paisagem, (quase) flutuamos em trechos (como na Ponte São João, 55 metros de altura), vemos símbolos de heróis caídos e esquecidos (uma cruz a assinalar o local da execução do Barão do Serro Azul durante a Revolução Federalista), entramos no Parque Estadual do Marumbi e, passadas mais de três horas, chegamos ao destino, Morretes.

É hora do almoço e o sol explode sobre Morretes — saímos de Curitiba com um friozinho e aqui é calor que encontramos, no único município do litoral paranaense que não tem mar. A cidade parece adormecida, no tempo e no movimento, quando saímos da estação para uma praça ajardinada rodeada de edifícios baixos, antigos, cor desbotada. À medida que nos afastamos da estação, ganha mais vida a cidade colonial e é nas margens do rio Nhundiaquara que revela o seu charme antigo, agora povoado de loja de souvenirs. Ruas estreitas empedradas com buganvílias a cair de muros, casas impecavelmente pintadas e a tranquilidade da província. Morretes valeria bem mais tempo, mas a paragem aqui é, sobretudo, para provar o barreado, prato típico do Paraná, ao que se crê herança de emigrantes açorianos e que aqui tem estatuto de atracção turística. Temos carne bem temperada que nos surge bem cozida (cerca de 20 horas), desmanchada, quase como um caldo, de um lado, do outro farinha de mandioca: a nossa missão é misturá-las na medida da consistência certa; para acompanhar, arroz e banana em rodelas. Aprovado.

Do litoral sem praia para o litoral com ela, de Morretes a Antonina, outra cidade histórica. Tem o Carnaval de rua mais famoso do Paraná, mas o Carnaval já passou e as ruas estão calmas. Da igreja matriz, Nossa Senhora do Pilar, setecentista, branca e amarela de linhas simples, a vista é panorâmica sobre a baía. Estamos no ponto mais alto da cidade, a partir daqui é sempre a descer até à beira-mar. Ao jardim com coreto ao lado ainda chegam os cânticos da missa a meio da tarde — seis pessoas na audiência, lista de dízimo de aniversariantes do mês na porta — mas temos de caminhar muito até chegar a ruas animadas por caminhantes. A arquitectura colonial mais despojada nas ruas de paralelos tem companhia de construções eclécticas do início do século XX, com decoração apurada, e até de edifícios mais funcionais, linhas rectas a indiciar estruturas de meados do século XX. O edifício do Theatro Municipal destaca-se pela harmonia da composição e cores e é testemunho dos templos áureos da cidade, cuja decadência é visível. A enseada é caprichosa e a vista pode perder-se horas sem aborrecer-se caminhando à beira-mar, imaginamos.

Não temos esse tempo, o regresso a Curitiba impõe-se e mais uma vez é histórico. A Estrada da Graciosa rasga a Mata Atlântica ligando o litoral a Curitiba e muitas vezes parece que estamos num parque natural, não numa via pública. Refazemos os passos dos índios, que os colonos seguiram e o império pavimentou. A natureza envolve-nos e sete miradouros (com área de lazer) permitem-nos o mergulho — paramos num deles e a névoa de final de dia não nos deixa ver o mar além do verde, mas vemos um macaco mesmo ao lado. No cimo da serra, um portal surge na estrada, marcando o seu limite — o fim do bosque encantado para nós.

Cataratas do Iguaçu: a beleza será convulsa ou não será

Fora dia e veríamos selva até ao infinito e, dependendo da rota (ou cortesia do piloto), poderíamos ver também uma das sete maravilhas da natureza, património da humanidade. Isto se a névoa não cobrisse tudo e obrigasse até o avião a ir aterrar noutra cidade. É que a mistura explosiva dos milhões de metros cúbicos de água e uma das maiores porções conservadas de Mata Atlântica do Brasil, provoca uma humidade que faz deste canto do Paraná uma verdadeira ilha de brumas — que até se podem transformar em arco-íris, mas isso é outra história. Dentro desta história feita de água — é por ela que vimos, é por ela que vêm 1,5 milhões de turistas a este ponto quase impenetrável onde o Brasil se encontra com a Argentina e o Paraguai (e cenário do filme A Missão). Eleanor Roosevelt terá exclamado perante a visão “poor Niagara!”; nós chegamos para comprová-lo.

A humidade quase nos esmaga ao sairmos do avião e horas depois despertamos para um dia nublado, húmido até às entranhas. A chuva vai aparecer e há-de ficar; nessa altura já estaremos em modo “mais água menos água, dá igual”. Porque, sim, viemos pela água, não sabíamos que ia ser tão literal assim e que íamos passar um dia inteiro com a roupa molhada, colada ao corpo. Por isso, um conselho: quem quer fazer o Macuco Safari, e já estamos, claro, no Parque Nacional do Iguaçu, não se esqueça de muda de roupa.

Nós não fomos avisados e começamos por aí, pelo safari. Primeiro, em terra, num “comboio” eléctrico, aberto, que nos leva pela mata acompanhados de guia que debita informação sobre a fauna e a flora; segue-se uma caminhada também na floresta, passando pelo “Salto do Macuco”, pequena queda de água, e já estamos à beira do Iguaçu. É aqui que a aventura realmente começa, uma vez embarcados no barco: primeiro, navegação calma, depois uma montanha russa de rápidos e cascatas que caem dos penhascos — algumas vão ser chuveiros de pressão imbatível, porque fazem parte do programa do safari estes banhos calculados e não o imaginamos de outra forma: é como se estivéssemos no melhor parque aquático do mundo, porém, o abismo é real. Afinal, estamos em plenas Cataratas do Iguaçu, de um lado Brasil, do outro Argentina, e se não chegamos ao coração, a Garganta do Diabo, sentimos-lhe a força centrífuga e sonora.

Primeiro tivemos o mergulho, depois o cenário majestoso. Pelo meio, o almoço no restaurante com vista para as cataratas, a preparar-nos para a caminhada de menos de um quilómetros que nos leva a seguir o curso do rio vendo as cascatas desfazerem-se do lado argentino. Caminhamos entre floresta semitropical, em trilhos bem rasgados entre a vegetação, como que pendurados na encosta desta espécie de canyon. São 275 quedas de água as que compõem esta sinfonia da natureza, este espectáculo primordial, hipnotizante. Sobretudo quando o trilho dá lugar a passadiços de ferro e deixamos a margem para nos aventurarmos dentro do rio: a Garganta do Diabo está já ali, vemos as paredes maciças de água que caem e continuam a cair para além da nossa vista.

O que não vemos no Parque Nacional do Iguaçu, vemos no Parque Nacional Iguazú, o gémeo argentino. Um pequeno comboio turístico, com paragens em hotéis do parque, leva-nos da praça da recepção até ao início da caminhada novamente em plataformas de ferro. Estamos na parte superior do rio Iguaçu, antes de ele se precipitar pelas escarpas e seguir na garganta estreita: é largo e nós atravessamos vários braços até estarmos quase supensos na Garganta do Diabo. O dramatismo do cenário é indescritível — ficamo-nos pelo troar da água, pelas explosões de espuma que nascem (e morrem) da água a embater na água, pelo vapor que cobre tudo. De toda esta violência, é uma beleza terrível que nasce — a dar razão a Breton: a beleza será convulsa ou não será.

A Fugas viajou a convite da Serra Verde Express e da BWT Operadora com o apoio da TAP

 

Guia prático

Como ir

A Fugas viajou com a TAP para o Rio de Janeiro, tendo feito a ligação para Foz do Iguaçu, daí para Curitiba e de volta ao Rio de Janeiro com a GOL. A TAP opera voos para Curitiba com escalas em São Paulo ou Rio de Janeiro.

Onde dormir

Slaviero Conceptual Full Jazz  
R. Silveira Peixoto, 1297
Batel, Curitiba - PR
Tel.: +55 41 3312 7000
www.slavierohoteis.com.br

Wish Resort Golf Convention
Av. das Cataratas, 6845
Tamanduá, Foz do Iguaçu - PR
Tel.: +55 45 3521 3400
www.wishgolfresort.com.br

Gastronomia

A capital do Paraná é considerada uma espécie de “mini-São Paulo” no que à gastronomia diz respeito, com oferta de cozinhas de vários países, sobretudo dos de proveniência das suas diferentes vagas de emigração, e chefs conceituados — além de várias feiras de rua e food trucks. A cozinha tradicional do Paraná soube integrar as diversas influências na sua herança indígena, cujas marcas mais representativas são o pinhão (nós comemos cozido, mas pode ser “sapecado”), o milho e a mandioca. O consumo da erva mate (chimarrão) é comum e a paçoca de carne e o barreado dois dos pratos mais tradicionais — nos doces, a abóbora é o sabor mais paranaense.

Terrazza 40 – Restaurante Panorâmico
R. Padre Anchieta, 1287 Cobertura
Bigorrilho, Curitiba - PR
Tel.: +55 41 3014 0141
www.terrazza40.com

Forneria Copacabana  
Av. Iguaçu, 2820 Água Verde
Curitiba - PR
Tel.: +55 41 3243 5787
www.forneriacopacabana.com.br

Taj
R. Bispo Dom José, 2302
Batel, Curitiba - PR
Tel.: +55 41 3343-4467
www.tajbar.com.br

Farnel
R. Dr. Claudino dos Santos, 90
São Francisco, Curitiba - PR
Tel.: +55 41 3324 9755
http://farnelcuritiba.blogspot.pt

Madolosso
Av. Manoel Ribas, 5875
Santa Felicidade, Curitiba - PR
Tel.: +55 41 3372 2121
www.madalosso.com.br

Restaurante Serra Verde Express
R. General Carneiro, 31
Morretes – PR
Tel.: +55 41 3462 4333
http://serraverdeexpress.com.br/restaurante

Raffain Churrascaria Show
Av. das Cataratas, 1749
Foz do Iguaçu - PR
Tel.: +55 45 3523-1177
www.rafainchurrascaria.com.br

Tavolo
Av. das Cataratas, 1327
Foz do Iguaçu – PR
Tel.: +55 45 3572-9050
http://tavolo.com.br

El Quincho del Tio Querido
Av. Pres. Juan Domingo Perón 159
3370 Puerto Iguazú, Misiónes
Argentina
Tel.: +54 3757 42 0151
www.eltioquerido.com.ar

O que ver em Foz de Iguaçu

Parque das Aves

É o maior parque de aves da América Latina, começou como uma espécie de abrigo para animais resgatados do tráfico e agora é um labirinto desenhado na Mata Atlântica guardando mais de 150 espécies de aves (1020 exemplares) num habitat o mais natural possível. Isto significa que se estão todos em “gaiolas”, algumas destas ocupam grande porções do percurso: nós abrimos e fechamos portas duplas, seguimos entre árvores e vegetação selvagem e quase nem nos apercebemos de que há uma barreira física. É assim, por exemplo, com os tucanos, irresistíveis e vaidosos, com o seu perfil inconfundível e a sua plumagem colorida.

Hidroeléctrica de Itaipu

Não é de admirar que em Foz de Iguaçu se tenha “a mania das grandezas”: não só tem uma das sete maravilhas da natureza como uma das sete maravilhas do mundo moderno segundo lista da Sociedade Americana de Engenheiros Civis, a Hidroeléctrica de Itaipu. E mais uma vez partilhada com um vizinho, desta feita o Paraguai, do outro lado do rio Paraná – nas suas entranhas, duas linhas amarelas marcam a fronteira: um pé no Brasil outro no Paraguai. Pouco consensual, porque a construção da maior hidroeléctrica do mundo (e maior produtora de energia limpa e renovável) engoliu uma maravilha natural, as Sete Quedas (na verdade, 19 cascatas principais agrupadas em sete grupos), Itaipu é agora responsável pela produção de 75 por cento da energia consumida no Paraguai e 17 no Brasil. Aberto ao turismo, o complexo oferece, por exemplo, visitas à barragem, museus e reservas zoológicas tanto do lado brasileiro como do paraguaio.

Triplíce fronteira

Região trinacional, há marcos nos três países que aqui se encontram, formando um triângulo nas margens dos rios Iguaçu e Paraná. Nós vamos ao do lado argentino, em Puerto Iguazu, mas a noite não permite ver mais do que escuridão polvilhada de luzes e banda sonora distante vinda dos lados do Uruguai. A fronteira faz parte da vida aqui: em Foz do Iguaçu, uma espécie de faroeste moderno, Evandro, o nosso guia, recebe-nos em “portunhol”, pelas estradas vemos anúncios repetidos ao Monalisa, armazém de luxo à laia de El Corte Inglés, na Ciudad del Este (Paraguai) e à Argentina vai-se aos casinos.

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