Fugas - Viagens

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Birmânia e Tailândia inesquecíveis

Por Maria Calado e Guilherme d’Oliveira Martins

A viagem do Centro Nacional de Cultura levou os participantes ao Sião e Sirião, que atraíram os lusitanos ao longo de vários séculos.

Falamos de Sião e de Sirião, da Tailândia e da Birmânia, que atraíram os portugueses ao longo dos séculos. Fernão Mendes Pinto, sobre Sião, disse haver neste reino “muita pimenta, gengibre, canela, canfora, pedra-ume, canisfistula, tamarinho e cardamomo em muita grande quantidade de maneira que se pode dizer e afirmar com verdade (…) que é este um dos melhores reinos que há em todo o mundo”… No ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História” do Centro Nacional de Cultura, fomos ao encontro dessas paragens.

Rangum foi o início. É a maior urbe da Birmânia, a ancestral “cidade sem inimigos” (yan, inimigo; e koub, fugir de). Foi fundada provavelmente no século VI, sendo uma aldeia de pescadores em torno do pagode de Schwedagon. Lembramos António Correia, que chegou a Pegu em 1519 e Filipe de Brito e Nicote (c. 1566-1613), que chegou a ser proclamado rei do Pegu ou de Sirião (Thanlyin). Filipe de Brito foi comerciante de sal na ilha de Sundiva e depois ao serviço do rei de Arracão (hoje Rackine, cuja capital é Mrauk-u). No complexo xadrez político de Sirião, aconselhou o rei a construir uma casa de alfândega para aumentar as rendas do comércio no Pegu. Não foi fácil ao português obter a influência que desejava, tendo conseguido chegar ao seu intento, depois de muitas vicissitudes e combates, que lhe permitiram tomar Pegu, com forte apoio dos naturais, que lhe chamaram Changá ou “Homem Bom”, proclamando-o Rei… No entanto, em 1613, os birmaneses tomariam a praça e Brito seria morto ingloriamente.

A primeira impressão de Rangum é dada pelo Strand Hotel, um dos míticos hotéis do Império Britânico, onde se encontra a nostalgia vitoriana. A construção foi recuperada, as madeiras antigas, as vergas requintadas, os móveis foram fielmente respeitados… Como afirmou Somerset Maugham em The Gentlemen in the Parlour (1930), o que é mais impressionante, “o mais inspirador monumento da antiguidade, não é aqui um templo, nem uma cidadela, nem um muro, mas o homem”. No centro de Rangum ainda se faz sentir a herança britânica. O tema da protecção do património imperial tem sido muito controverso. Há um confronto entre os que desejam esquecer o domínio colonial e os que salientam o valor patrimonial.

Em Thanlyin (Sirião) estabeleceu-se a antiga feitoria portuguesa por iniciativa de Brito e Nicote. Pelas bem-humoradas explicações de Luís Filipe Thomaz, compreendemos as três faces da presença portuguesa na Ásia — o império, os mercadores e os mercenários. Afonso de Albuquerque desejou aliar-se aos gentios budistas, em nome do intenso comércio que se estabelece a partir de Malaca… O Forte e a Igreja de Santiago marcam a presença portuguesa. O que resta da igreja ainda pode ser visto, sendo de construção italiana em tijolo, e data de meados do século XVIII. Corresponde não a uma iniciativa portuguesa do padroado, mas à acção romana da Propaganda Fide e dos missionários barbanitas. A Igreja de Santiago serviu os luso-descendentes de Sirião — e o que resta corresponde a parte da abside e das paredes laterais, estrutura que abriga antigas pedras tumulares alusivas a luso-descendentes. A placa no que resta do templo diz: “Antiga Igreja portuguesa / Era cristã (1749-1750)”.

O mais espectacular de Rangum é o célebre pagode, em torno do qual os pescadores criaram a cidade, segundo a lenda dos dois irmãos mercadores que trouxeram até aqui os oito cabelos que tinham pedido ao Buda Siddartha Gantama, num cofre de esmeraldas. No pagode recolhem-se as relíquias do Buda, as cinzas de outros três veneráveis Budas e os monumentos funerários de Supayalat, última Rainha da Birmânia (1859-1925), de Daw Khin Kyi, mulher do herói da independência Aung San e mãe da Aung San Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz, bem como de U Thant, antigo Secretário-Geral das Nações Unidas. O zedi ou stupa, imponente cone dourado, atinge 98 metros de altura e a base é feita de tijolos cobertos com placas de ouro, sendo rodeado de 64 pagodes pequenos. Na flecha principal estão penduradas 1500 sinetas de ouro e prata… É o budismo theravada que domina em Birmânia, cujos monges têm tido um papel muito importante da defesa da cultura e da abertura.

Foi sempre difícil chegar a Mrauk-U, no antigo reino de Arracão (Rackine) e continua a sê-lo. Apesar dos efeitos da monção deste ano, foi feita a subida marítima desde o golfo de Bengala até Mrauk-U. Mas, depois da chuvada, veio a bonança, e à chegada os viajantes foram presenteados com um esplendoroso pôr do sol — e com um belo e retemperador acolhimento. E relemos Camões: “Olha o reino Arracão; olha o assento / De Pegu, que já monstros povoaram” (Canto X). Arracão é o exemplo do lugar que atraiu os mercenários. António Bocarro diz que os portugueses “vendiam por grandes preços recebendo tudo em ouro de que muitos ficaram ricos e se vendia de sorte que se pesava de uma parte arroz e da outra ouro”. A importante comunidade de luso-descendentes estabeleceu-se no bairro de Daingrih-pet e a grande referência portuguesa é Sebastião Manrique (1590-1669), autor do célebre Itinerário das Missões da Índia Oriental (1649), monge agostinho português que partiu para Goa e Cochim, donde saiu para Ugulim (Bengala) e para este mítico reino. Aqui pediu ao rei Sirisudhammaraja terreno para construir um templo cristão para estabelecer uma comunidade portuguesa.

Desenvolvendo a sua actividade em Bengala, apenas voltaria a Mrauk-U em 1633, onde ajudou as autoridades portuguesas do Estado da Índia na tentativa de celebração, não conseguida, de uma aliança com o rei de Arracão. Em Daingrih-pet habitavam portugueses e indianos católicos e as edificações eram de pedra; só depois, como faziam os autóctones, as casas se tornaram de bambu. Na margem esquerda do rio, o bairro situava-se numa posição privilegiada, como se vê nas gravuras que chegaram até nós.

À comunidade portuguesa era permitido o culto religioso católico e o chefe era designado como capitão, ainda que não dependesse de Goa. No bairro integraram-se em 1616 os cativos de Sundiva, após a derrota do mercenário Sebastião Gonçalves Tibau. Este assenhoreara-se da ilha de Sundiva no estreito de Bengala, numa vida aventurosa de corsário. Natural de Loures, foi feitor das embarcações do sal, o grande negócio da região. Estabeleceu-se em Djanga, em Arracão, mas foi apanhado pelo massacre que atingiu a povoação, depois da tentativa gorada de conquista por Brito e Nicote. Tibau escapou com vida e procurou reconquistar Sundiva, o que conseguiu por pouco tempo, graças ao apoio de forças de Goa. Com a retirada destas, foi vencido, vendo chegar ao fim o seu sonho de ser rei de uma ilha fértil. Na cidade, hoje, o Museu Arqueológico de Mrauk-U alberga artefactos, armas e canhões catalogados como portugueses. Nos subúrbios há uma ruína do que se diz ser a feitoria dos portugueses.

Depois de Arracão, que tanto diz aos portugueses, o grupo seguiu até Bagan, a sudoeste de Mandalay, antiga capital de um importante império. A maioria dos edifícios são muito marcados pela arquitectura religiosa, e correspondem ao período entre os séculos XI e XIII (d.C.). Em 1287, o reino cairia sob o domínio dos mongóis de Kublai Khan. Bagan tem cerca de três mil pagodes, dos treze mil que existiram nos tempos de glória. A urbe é de uma beleza estonteante, e pode-se adivinhar o que foi a magnífica cidade, de ouro, de pedras preciosas e de uma decoração plena de fulgor, saída de cornucópias cheias de preciosidades. A célebre Porta Tharabar é a única construção que resta do século IX e, segundo a lenda, é guardada pelo “Senhor da Grande Montanha” e pela sua irmã “Face Dourada”.

A viagem para Mandalay tem paragem em Amarapura (“Cidade da Imortalidade”) e no lago Taungthaman, onde se encontra a maior ponte de teca do mundo, a celebérrima U Bein — com 1,2 quilómetros, construída cerca de 1850, que hoje dá preocupações pelo estado de alguns dos 1086 pilares, que tiveram de ser reforçados. Recorde-se que a teca é nativa das florestas tropicais de monção. Amarapura teve o seu auge entre os anos de 1783 e 1857, momento em que Mandalay se tornou a capital da Birmânia. Ainda há reminiscências da actividade artesanal em algodão e seda. O Mosteiro Mahagandhayon atrai a curiosidade, quando os monges vêm, a meio da manhã, buscar os seus alimentos, formando uma impressionante fila de hábitos amarelo-alaranjados…

A despedida de Birmânia faz-se na antiga capital do último reino independente birmanês (1860-1885). Mandalay fica nas margens do rio Irrawaiddy e com a conquista britânica de Burma tornou-se, no essencial, centro da espiritualidade budista. Em 1942, a cidade foi invadida e arrasada pelos japoneses e só em 1990 se reconstruiu o imponente palácio, que voltou a ser uma das referências da cidade. A imponente Catedral do Sagrado Coração (de 1898) é sede do arcebispado, de que é titular Monsenhor Nicholas Mang Thang, defensor do diálogo inter-religioso de cristãos, budistas e muçulmanos. O padre João Baptista não esconde a emoção ao lembrar que descende de portugueses.

Na Tailândia

Na Tailândia a peregrinação inicia-se em Aiútia (Ayuthia). O antiquíssimo reino de Sião é um dos marcos das relações de Portugal com o Oriente. Depois da conquista de Malaca em 1511, Afonso de Albuquerque cedo estabeleceu relações com o prestigioso reino, através de Duarte Fernandes, enviando depois um embaixador a Aiútia, António Miranda de Azevedo, que foi recebido pelo próprio rei de Sião. Sabemos, segundo Martim Afonso de Melo e Castro, que havia dois mil portugueses a viverem no Oriente, na China, Pegu, Bengala, Orissa e Sião. Um século depois, encontramos uma comunidade portuguesa estabilizada no “bandel” (Bang Portuguet) de Aiútia de cerca de duas mil almas, que desenvolveu um processo de miscigenação com siameses, chineses, peguanos e japoneses.

A presença religiosa católica iniciou-se em 1565, com a chegada de dois frades dominicanos, seguindo-se em 1584 os franciscanos e em 1606 os jesuítas. No final do século XX, houve importantes pesquisas arqueológicas, apoiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, sobre os vestígios da igreja de São Domingos — de estilo europeu, com tijolos e argamassa de cal, possuindo três naves. A entrada principal abria-se em direcção ao átrio, enquanto as entradas laterais possuíam escadas flanqueadas por balaustradas, de cada lado. Nas traseiras havia um claustro, onde estavam os aposentos dos missionários, a cozinha e o refeitório.

 A actual Banguecoque nasceu sob a influência de Aiútia, reunindo duas cidades que foram crescendo em importância — Thonburi e Rattanakosin. Para os portugueses, o bairro e a Igreja do Rosário lembram a vinda de Aiútia. Tratou-se de uma concessão do rei Rama I, como preito de “gratidão à rainha D. Maria I, pela sua amável generosidade, símbolo de boa vontade que não poderá ser esquecido até ao fim do mundo” (1787). Os primeiros edifícios religiosos eram frágeis, só mais tarde foi usado o tijolo, a pedra e a cal. Através de Macau, houve apoio decisivo para a sustentabilidade da comunidade luso-siamesa, o que permitiu que os mercadores portugueses mantivessem influência económica e política em Sião. A feitoria portuguesa e as igrejas do Rosário, da Conceição e de Santa Cruz (Thoburi) são reminiscências da velha amizade.

Na capital tailandesa, a hospitalidade dos embaixadores Luís e Maria da Conceição Barreira de Sousa foi inexcedível, com um pôr do sol muito especial nas margens do rio Chao Phraya, depois do magnífico jantar. O edifício da embaixada é neoclássico, tendo o terreno sido atribuído a Portugal, pelo Tratado de 1820, durante o reinado de Rama II, para a “Feitoria” e residência do cônsul, Carlos Manuel da Silveira. Tratou-se de “um chão que lhe pareceu próprio e conveniente com 72 braças de Sião ao longo do Rio, 50 de fundo com dois gudes para fazer navios com privilégio que todos os Portugueses poderão vir aqui negociar como antigamente, por quanto S. Majestade é Inclinado à Nação Portuguesa que a nenhuma outra». Foi a verdadeira hospitalidade portuguesa capaz de deixar profundas saudades.

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