Fugas - Viagens

  • João Cortesão/Clube Escape Livre
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  • Paulo Ricca

Uma peregrinação sobre rodas pelos trilhos de Santiago

Por João Palma

Armámo-nos em peregrinos, mas trocámos as sandálias por veículos com aptidões todo-o-terreno. E, com Santiago de Compostela como destino, deixámo-nos conquistar por paisagens e sítios de difícil acesso.

Caminho de Santiago é uma designação lata que abrange muitos percursos com partidas em locais distintos e um ponto comum de chegada: a Catedral de Santiago de Compostela e o túmulo do apóstolo Tiago. É com este ponto definido que aceitamos o desafio de integrar o passeio todo-o-terreno Mercedes-Benz 4Matic Experience que, anualmente, o Clube Escape Livre organiza para a Mercedes e que tem como destinatários os proprietários de veículos da marca dotados de tracção integral.

Mas, como em quase todas as peregrinações, o destino é apenas uma consequência da viagem que, entre 9 e 13 de Outubro, nos levaria de Trancoso, na Guarda, a Santiago. Com um pequeno e interessante condimento: levar carros mais habituados a subir passeios a viverem aventuras para as quais estão preparados, mas que poucos ousam experimentar.

No entanto, haja coragem para sair da fita preta de alcatrão e enveredar por caminhos de terra. Não é preciso muito mais para se descobrirem paisagens espantosas. Sobretudo em passeios como este, cuja organização permite que haja poucas surpresas pelo caminho, levando-nos por trilhos devidamente reconhecidos e estudados. Por isso, desde que se sigam as instruções, os riscos são praticamente nulos. Até porque esta nossa incursão fora de estrada não é o rali Dakar. Passa, antes, por uma condução cuidadosa em ritmo lento, em que o principal objectivo é descobrir novos cenários. Claro que, tendo em conta que temos nas mãos veículos com tracção integral, também se arriscam alguns trilhos e corta-fogos mais exigentes. Mas nada que não seja facilmente superado.

Trancoso, a desconhecida

Não é um lugarejo perdido e inacessível, estando, por auto-estrada, a 350km de Lisboa e a 200km do Porto. Mas também não entra nas listagens dos sítios em Portugal a não perder. Isto apesar de integrar a lista das 12 aldeias históricas. No entanto, Trancoso, cidade desde 2004, permanece numa espécie de anonimato face a, por exemplo, Monsanto ou Piódão. Uma injustiça.

Confesse-se: para o escriba, assim como para a maior parte do grupo deste passeio, que tinha como ponto de partida este local, Trancoso revelou-se uma boa surpresa. Com cerca de três mil habitantes, a pequena cidade esconde muitos pontos históricos e de interesse. Foi aqui que D. Dinis se casou com D. Isabel de Aragão, uma forma de o monarca reconhecer a importância estratégica da localidade. Trancoso está ainda associada a outros nomes, mas talvez nenhum tão controverso quanto o de Gonçalo Annes Bandarra (1500-1556), o sapateiro/profeta, autor das Trovas messiânicas.

Do passado mantêm-se várias traças e a própria estrutura da cidade, com a parte mais antiga a permanecer protegida pelas bem preservadas muralhas dos séculos XII/XIII. Passear pelas suas ruas estreitas não é difícil. A cidade localiza-se engenhosamente num planalto. Entre o casario antigo e bem conservado, despontam aqui e ali algumas estruturas mais recentes. Ainda assim, nada choca a vista, denotando-se uma preocupação em manter a traça original do centro histórico.

Depressa se percebe que há por aqui muito para deleitar a vista. E o estômago também. Com a hora de almoço a aproximar-se, partimos à descoberta do que a gastronomia local tem para oferecer. Acabamos por entrar, sem recomendações, num pequeno restaurante no Largo do Pelourinho para confirmarmos que a cidade também se destaca pela boa comida, e a um preço acessível: um cozido de grão-de-bico e, de tomar nota, umas sardinhas doces, uma especialidade conventual.

Com a ajuda do Turismo de Trancoso, acabamos por complementar o passeio diurno com uma visita guiada nocturna. Começamos pelo bairro judeu, testemunho da importância destes na expansão comercial da cidade. A maioria oriunda dos reinos de Aragão e Castela, os judeus fixaram-se em Trancoso entre os séculos XIV e XVI. Como aconteceu por todo o país, acabariam por ser perseguidos, dando origem aos cristãos-novos. Notas desta perseguição podem ser testemunhadas no Centro de Interpretação Judaica Isaac Cardoso, médico judeu aqui nascido no século XVII, e que inclui a Sinagoga Beit Mayim Hayim. Daqui, é um saltinho até ao castelo, que, num ponto cimeiro, domina a cidade e a região circundante. Descemos depois para junto do moderno tribunal, onde encontramos, escavadas na rocha, sepulturas visigóticas do século VI, classificadas como Imóvel de Interesse Público desde 1978.

Pelos trilhos do Norte

Depois de uma repousante noite no Hotel Turismo em Trancoso, iniciamos a nossa aventura por parte do Caminho de Santiago. Cruzando montes e vales, em grande parte fora do asfalto, com passagens por capelas e santuários, fazemos uma paragem em Sernancelhe, uma bem preservada vila, com origem no período Neolítico, com vestígios de romanos, mouros e outras civilizações, exibindo edificações medievais muito bem conservadas.

Sernancelhe está no coração das “Terras do Demo”, expressão criada por Aquilino Ribeiro, e é considerada a capital mundial da castanha, cuja festa anual se celebra no último fim-de-semana de Outubro. Daqui seguimos para um dos pontos de passagem do Caminho de Santiago na Idade Média, o Santuário de Nossa Senhora da Lapa, construção do século XVII num local que já era de culto desde o século X. Conta uma das muitas lendas que uma menina pastora, muda, encontrou uma imagem da Virgem em 1498. A mãe terá lançado a estátua para a fogueira e, nesse instante, a menina falou pela primeira vez. A estória serve para justificar as marcas de queimaduras visíveis na imagem existente no santuário. Mas a igreja tem outras particularidades, como o facto de ter sido construída à volta de um enorme penedo de granito. Um dos pontos de passagem entre as rochas no interior da igreja é tão estreito que, diz-se, só se consegue esgueirar entre as rochas quem não tiver pecados graves na sua consciência.

Impõe-se uma visita a São João de Tarouca, o mais antigo mosteiro cisterciense português e local de acolhimento de peregrinos desde 1169. Ganha-se assim força moral para seguir a jornada rumo à ponte e à torre medieval de Ucanha, sobre o rio Varosa, onde devemos pagar portagem. Pelo menos era assim até 1507 — os abades tratavam da cobrança, só estando isentos os peregrinos para o Mosteiro de Salzedas e para Santiago de Compostela.

De Ucanha dirigimo-nos a Lalim, uma freguesia de Lamego atravessada pelo rio Barosela. Com origens pré-históricas e repovoada entre 1130 e 1140, tem uma igreja dessa época ainda preservada e que foi abadia dos monges de Cister, sendo local de acolhimento de peregrinos. Atravessando Lamego, por trilhos e veredas de paisagens deslumbrantes da serra do Marão, chegamos a Mesão Frio com os olhos cheios e a barriga vazia — a altura certa para almoçar na Quinta Vale de Locaia, com vista para o Douro.

Mas nada nos preparara para o que se seguiria. A tarde estava reservada para uma das vistas mais impressionantes de toda a viagem: as Fisgas de Ermelo, perto de Mondim de Basto. A impressionante cascata, com uma extensão de 200m no rio Olo, nasce no Parque Natural de Alvão, sendo talvez a maior queda de água de Portugal e uma das maiores da Europa. A somar à paisagem, o ruído da torrente ouve-se a quilómetros de distância e persegue-nos mesmo depois dos roncos dos motores já cantarem rumo a Mondim, onde nos espera um descanso já merecido.

Do mosteiro ao rali

O dia começa muito cedo, mas não há tempo a perder e muitos quilómetros a fazer por um percurso misto de asfalto e terra. E, já se sabe, nesta coisa de peregrinos pouco dados à peregrinação há sempre uma boa razão para parar e descobrir qualquer recanto que seja. Como o Castelo de Arnóia, em Celorico de Basto, já no distrito de Braga. Construído pelos mouros, provavelmente no século VII, foi reconstruído pelos cristãos em 1043, antes da fundação de Portugal. Presume-se que estaria ligado ao mosteiro beneditino de São Bento de Arnóia, outro dos pontos do Caminho de Santiago. Aliás, locais de acolhimento não faltam ao longo do percurso e, poucos quilómetros adiante, encontramos mais um: o Santuário de Nossa Senhora do Viso, que domina lá do alto a bacia do Tâmega.

Porém, nem só de religião se faz o nosso caminho, como comprova a próxima paragem. Agra, freguesia de Rossas, no concelho de Vieira do Minho, surge anichada no sopé da serra da Cabreira, num aglomerado de casinhas de granito, por onde ainda se respira um ambiente rural. Com a sua ponte românica sobre o rio Ave, Agra está classificada como Aldeia de Portugal desde 2005.

Seguimos os passos dos peregrinos até ao Santuário de São Bento de Porta Aberta, um local de acolhimento e descanso dos viandantes no Caminho de Santiago, para confirmar que para lá dos chamarizes religiosos há algo que é imperdível nesta região: os deleites gastronómicos – porco, vitela barrosã, frango caseiro, vinho verde… Mas, para abrir o apetite, nada como sucumbir a outro pecado: a luxúria de nos atrevermos pelo mítico troço do Rali de Portugal Fafe-Lameirinho.

Forças retemperadas, enveredamos por um íngreme trilho, habitualmente percorrido a pé pelos peregrinos na direcção do Santuário de Nossa Senhora da Abadia, com uma paisagem de cortar a respiração sobre a albufeira da Barragem da Caniçada. Não há vestígios do primitivo templo que ali existia. O edifício é do século XVIII, bem como as oito capelas alinhadas em forma de Via-Sacra a uma centena de metros da igreja.

Mais antigo é o Mosteiro de Tibães, nos arredores de Braga. Fundado no século XI, foi ocupado pelos beneditinos no século XVI, tornando-se a casa-mãe desta ordem monástica, sendo um dos pontos de início possíveis do Caminho de Santiago e que, noutros tempos, oferecia acomodações aos peregrinos, que aí podiam permanecer gratuitamente até três dias.

Com a extinção das ordens religiosas, em 1833-34, o mosteiro foi encerrado e vendido em hasta pública. A igreja manteve-se como sede da paróquia, mas o resto do complexo foi progressivamente votado ao abandono, entrando em ruína, tendo sido o seu espólio delapidado. Em 1986, foi adquirido pelo Estado e iniciou-se um processo de recuperação que ainda hoje decorre. Actualmente aloja um Centro de Estudos das Ordens Monásticas, um restaurante e um hotel de charme com nove quartos.

O Caminho de Santiago

Do alto do Monte de Santa Luzia, no distrito de Viana de Castelo, vê-se toda a cidade, a foz do rio Lima e, em dias de boa visibilidade, uma grande extensão da costa e a região interior, num arco que abarca Ponte de Lima, Póvoa de Varzim e o monte de Santa Tecla, Espanha.

Um trilho por terra leva-nos ao Mosteiro de São João de Arga, no topo da serra homónima, um santuário do século XIII. Para além da construção, a magnífica paisagem que daí se pode desfrutar engloba a serrania circundante, o monte de Santa Tecla, a foz do rio Minho e a ilha e forte de Ínsua. Ainda por estradões e trilhos, descemos até Vila Nova de Cerveira para um opíparo almoço antes de passarmos a fronteira.

Já em terras galegas, um presente aguarda-nos. Mas um presente que antes de ser vivido é preciso ser conquistado. Subimos por isso uma íngreme vereda, irregular e pedregosa, onde a tracção integral se revelou indispensável. No topo, a recompensa: uma paisagem de cortar a respiração sobre a foz do rio Minho e as suas margens portuguesa e espanhola, no miradouro de Niño do Corvo, uma elevação de 310m na serra de Arga, perto da localidade de O Rosal.

Ainda por terra, descemos até à costa para uma visita ao Mosteiro de Oia. Fundado em 1137, pertence à Ordem de Cister desde 1185 e foi um factor de desenvolvimento socioeconómico da região. Tem a particularidade de ser o único mosteiro cisterciense edificado junto ao mar e chegou a ser o principal ponto de acolhimento dos peregrinos que seguiam pelo caminho que nos leva até Baiona, num troço cuja paisagem compensa a demora. É, porém, de sublinhar que este Caminho Português não tem propriamente um percurso definido, embora convirja com os restantes no Monte Gozo, a cinco quilómetros da Catedral de Santiago. É quando chega a altura de trocar os rodados e seguir a direcção indicada pelas vieiras metálicas incrustadas nos passeios que nos levarão à catedral. No nosso caso, a pé e à noite — sempre serve para desmoer o jantar.

A concha da vieira, que temos por guia, é o símbolo do peregrino de Santiago, que, em tempos idos, a usava para beber água das fontes e a transportava como marca identificadora. Na vieira, por vezes, vem pintada uma estela, a representação da chuva de estrelas que teria indicado, entre 813 e 820, o local onde dois discípulos enterraram o corpo do apóstolo, depois de o terem trazido da Palestina para a Galiza. Este Campus Stellae, ou Campo de Estrelas, acabaria por dar origem ao nome Compostela.

Sobre o túmulo do apóstolo, onde hoje se ergue uma catedral monumental, foi construída uma capela que, a partir do século XI, começou a ser ponto de peregrinação.

Hoje, Santiago de Compostela é, a par de Roma e Jerusalém, uma das três cidades santas da religião católica. Nos anos jacobeus, quando o dia do santo, 25 de Julho, calha a um domingo, os peregrinos recebem bênçãos e privilégios especiais.

A peregrinação deve ser feita a pé, a cavalo ou de bicicleta, e os peregrinos têm de comprovar que fizeram pelo menos os últimos 100km do Caminho a pé ou a cavalo ou os últimos 200km em bicicleta, através de um documento, a Credencial do Peregrino, que vão carimbando ao longo do percurso em albergues, igrejas, polícia, postos de turismo, sedes de municípios ou até em alguns cafés e restaurantes. Esse documento é apresentado na Oficina do Peregrino e em troca é passado um diploma, a Compostela, que atesta o cumprimento da peregrinação (em 2014, foram passados mais de 270 mil destes diplomas).

Já nós, não tivemos direito nem a um papelinho. É que fazer a peregrinação no conforto de um veículo com todas as mordomias até pode ser muito aliciante. Mas não passa de batota.

A Fugas participou neste evento a convite da Mercedes-Benz e do Clube Escape Livre

 

Guia prático

Onde ficar

Trancoso

Hotel Turismo de Trancoso
Rua Prof. Irene Avillez
6420-227 Trancoso
http://hotel-trancoso.com

Mondim de Basto

Água Hotels
Monte da Paradela
4880-162 Mondim de Basto
Telf.: 255 389 040
E-mail: reservas@aguahotels.pt
www.mondim.aguahotels.pt

Viana do Castelo

Axis Ofir Hotel
Av. Raul Sousa Martins
4740-405 Fão - Esposende
Telf.: 253 989 800
E-mail: reservas@axisofir.com
www.axishoteisegolfe.com

Onde comer

Trancoso

Cantinho dos Arcos
Largo Do Pelourinho, 2A
6420 Trancoso

Quinta da Cerca
Hotel Turismo De Trancoso
Rua Prof. Irene Avillez
6420-227 Trancoso

Vila Nova de Cerveira

Braseirão do Minho
E.N. 13 - Vila Meã
4920-140 Vila Nova de Cerveira
Telf.: 251 700 240

Informações

Santiago de Compostela é, a par de Roma e Jerusalém, uma das três cidades santas da religião católica. Nos anos jacobeus, quando o dia do Santo, 25 de Julho, calha a um domingo, os peregrinos recebem bênçãos e privilégios especiais. As várias rotas ao dispor dos caminhantes podem ser encontradas no site reúne guias e instruções para quem quiser fazer a peregrinação.

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