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    Igreja de Santo António dos Capuchos Marco Duarte
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    Samuel Silva Marco Duarte
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dos Mártires de Marrocos
    Retábulo dos Mártires de Marrocos Marco Duarte

A cidade onde nasceu Portugal tem segredos (bem) contados

Por Abel Coentrão

Guimarães guarda muitos ângulos inesperados à espera de uma nova visita. Que o diga Samuel Silva, que acaba de lançar um livro recheado de muitas pistas. Foi ele quem nos guiou neste regresso à cidade.

Podia-se esperar que, de Guimarães, já não houvesse muito de surpreendente a contar. Como se espera numa cidade mitificada como berço de um país, o normal seria que estivesse tudo dito, escrito e reescrito, mas Samuel Silva, que por acaso é jornalista do PÚBLICO mas, não por acaso, é vimaranense, decidiu procurar algo mais. Algo mais que, na verdade, sempre, ou quase sempre, esteve aqui, mas no qual nós simplesmente teimamos em não reparar, ou que, às vezes, não nos é dado a ver, a menos que saibamos que existe. Agora já não temos desculpa.

Talvez uma estátua de Dom Afonso Henriques seja a imagem perfeita para tudo o que acima se escreveu. Se bem nos lembramos, nem é preciso termos passado por lá para ter na cabeça — construída pelos antigos livros de escola, pela propaganda salazarista ou por milhares de fotografias da entrada do Paço dos Duques — a ideia do homem que nos foi estilizada por Soares dos Reis, num magnífico trabalho em bronze do final do século XIX, que, segredo para turistas, já esteve no Toural, até ser transferida, em 1940, para o Monte Latito. Mas Samuel Silva, neste seu Guimarães Top Secret, propõe-nos outra versão do rosto do primeiro rei, guardada, à vista de todos, no Palácio Vila Flor.

O solar do século XVIII, situado na Avenida...Dom Afonso Henriques, e tornado Centro Cultural da Cidade, tem na fachada, ao nível do rés-do-chão, um conjunto de estátuas em pedra representando os monarcas da primeira dinastia. E o rosto do filho do Conde D. Henrique não podia ser mais diferente. Desde logo porque o ar militar que lhe reconhecemos no trabalho de Soares dos Reis (e mesmo na escultura estilizada, também ela muito famosa, e polémica, de João Cutileiro, junto à Casa dos Coutos), não se vislumbra no rosto encimado por algo que parece um chapéu de plumas, e que Samuel Silva interpreta como uma visão contaminada pelas influências tropicais do Portugal de Setecentos.

Olhando para o roteiro destes 50 segredos podemos dividi-los em categorias estranhas ao seu conteúdo, e que se prendem mais à nossa atitude perante a cidade. Nalguns casos, é preciso andar de cabeça literalmente no ar, para, a caminho do Palácio Vila Flor, na mesma avenida do primeiro rei repararmos em algo como, por exemplo, um busto encimando um interessante edifício moderno, a afastar-se muito da construção tradicional que faz de Guimarães um exemplo de preservação do património, e um postal. No topo do actual Café 141 — para nós outro segredo que não vem no livro, pelo bom ar e, diz-nos Samuel Silva, pela boa cerveja artesanal que ali se produz — o busto é de Joseph Nicéphore Niépce, um dos fundadores (com Daguerre), da fotografia, cuja colocação se percebe facilmente se soubermos que, antes de um bar, a casa de 1910 já foi a Foto Eléctrica Moderna, um dos primeiros estúdios da cidade.

Samuel Silva pede-nos para repararmos no busto, meio escondido entre a copa das árvores da rua, mas na verdade ele quer contar-nos uma outra história. A do acervo de negativos daquela casa de fotografia de Domingos Alves Machado que a associação de defesa do património Muralha comprou, salvando-a, e que foi alvo de um cuidado processo de digitalização, durante Guimarães Capital da Cultura 2012. Nela se descobriram muitos outros segredos, imagens de acontecimentos, públicos e particulares, quase perdidas nas memórias de quem nelas participou ou de quem delas ouviu contar. Ele já escreveu sobre algumas destas preciosidades, na revista 2, e vale a pena revisitar esse trabalho. 

Mais do que objectos ou lugares, contem com histórias como esta, neste Guimarães Top Secret. Ainda de cabeça no ar — com cuidado para não tropeçar no empedrado medieval de algumas ruas — somos convidados a olhar para uma cantarinha dos namorados que encima o telhado da estranha — porque rara — casa cor-de-rosa do Largo da Misericórdia, onde funciona o Tribunal da Relação. A peça em barro exprime uma tradição de outra relação, mas amorosa, pois era-lhes oferecida, a elas, por eles, no momento do namoro ou noivado, para ser enchido com peças de ouro, até ao casamento. Presume-se que aquele está vazio, mas o seu significado, esse, é pleno, ou não fosse esta cantarinha uma memória exposta de uma actividade tradicional, a olaria, que quase se perdeu, e de um tipo de objecto cuja tradição remontará ao século XVI.

Claro que, enquanto olhamos para o ar, ficamos a saber pelo nosso guia que a Casa dos Coutos, este palacete que agora é tribunal esteve para ser casa de Bispo — de Braga, porque Guimarães nunca foi diocese — quando, em meados do século XVIII, D José de Bragança aqui se refugiou da má recepção com que lhe brindaram os cónegos da Sé da cidade vizinha, habituados, havia anos, a governar sozinhos a diocese. Comprada e reabilitada a mando do irmão do Rei D. João V, a casa nunca chegou a ser habitada pelo prelado, por certo bem instalado na moradia solarenga do mesmo largo, pertencente ao fidalgo Luís António Lopes de Carvalho Fonseca e Camões, onde hoje funciona o interessante restaurante Histórico. 

À frente dos olhos

Para não provocar dores de pescoço aos leitores, Samuel Silva propõe-nos outros segredos que, basicamente estão mesmo à frente dos nossos olhos. E já que estamos no largo da Misericórdia, o melhor é seguimos as suas indicações e olharmos para uma fonte, com uma inscrição que faz referência ao Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Antes que os adeptos do futebol comecem a contabilizar como nossos títulos ganhos pela canarinha, é preciso que se saiba que este reino unido foi sol de pouca dura — sete anos, entre 1815 e a independência do Brasil, em 1822 — o que torna ainda mais rara, e interessante, o que vemos escrito nesta parede.

À frente dos nossos olhos estão também umas caixas verdes, na fachada das igrejas, que mais não são que um antigo sistema de alarme público instalado em 1988, e que atribuía a cada templo/paróquia um número, que correspondia aos toques de sino necessários para encaminhar o socorro, assim avisado, para aquela zona da cidade. Reparamos nela, sem saber que era um segredo, quando saíamos da visita à Igreja de Santo António dos Capuchos (junto ao Paço dos Duques), onde nos foi dada a ver uma sacristia profusamente decorada com frescos, elementos barrocos e outras pinturas, e que terá, num certo período, funcionado como morgue, bastante colorida, do antigo hospital da cidade que esteve instalado neste convento.

Guimarães é uma espécie de cantarinha recheada de monumentos e histórias da idade da nossa própria história colectiva, mas o jornalista recusou-se a ficar preso nesta leitura e propõe-nos um olhar sobre estranhos monumentos na paisagem vimaranense. No mesmo convento dos Capuchos, pedimos para subir à torre sineira, e a estreita escadaria alarga-nos, no topo, a vista, deixando vislumbrar, fora do burgo, um monte e uma árvore que tem também, uma história. E ao descermos, Monte Latito abaixo, em direcção ao coração da cidade, já depois de visitarmos o coro alto da Igreja do convento do Carmo, somos chamados a dar um pouco de atenção a uma casa, verde destoando do branco em redor — de traço modernista, assinado por Delfim Amorim, que deixou a sua marca na arquitectura portuguesa mas, sobretudo, no Recife, Brasil, para onde emigrou na década de 1950. Nada parece mais exótico, nesta zona da cidade modelada cuidadosamente pelo Estado Novo.

Guimarães Top Secret pede-nos essa capacidade de descatalogar, de desconstruir ideias feitas — e percebermos, por exemplo, que uma velha capela em ruínas, em Corvite, a quilómetros da cidade, num sítio onde se chega apenas a pé, e com dificuldade, é certamente um segredo que merece o esforço, apesar dos mil e um pontos de interesse do centro histórico. Corvite, onde não fomos, tem em comum com outros espaços — o Museu Alberto Sampaio, a Igreja de São Francisco, etc — um conjunto de frescos que Samuel Silva agrupou, numa espécie de roteiro autónomo. Mas o que tudo isto, que é pouco, nos diz, é que por muito que nos pareça — pelo menos a visitantes frequentes — dèjá vu, a cidade onde nasceu Portugal tem ângulos inesperados à espera de uma nova visita. Que no caso deste pequeno percurso, de um dia apenas, acabou com uma torta de Santa Clara, a adoçar a boca para o regresso a casa.

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