Não há espumante para brindar. O plano desta passagem de ano é de purificação: eliminar ruídos, toxicidades e distracções. No lugar de luzes negras e bolas de espelhos está o último céu estrelado do ano; e a substituir a música alta, o entoar de preces e a chegada da meditação. No Templo Kadampa Deuachen, em Várzea de Sintra, o maior do género da Europa, entra-se no novo ciclo em retiro. “Ano Novo, Vida Nova”, assim se chama.
Desde 26 de Dezembro, são dez dias de meditações guiadas, convívio, palestras, contemplação e refeições saudáveis, porque “o ano novo começa dentro de nós”, defendem os seguidores da filosofia kadampa, um budismo moderno que não implica a exigência do isolamento monástico e da disciplina tradicional budista. “Ka” são os 84 mil ensinamentos de Buda; “dam” é o método de organização de um mestre indiano em 21 temas; “pa” são os praticantes.
O templo é um edifício imponente que emerge na ruralidade, entre limoeiros e arbustos. Não lhe imaginaríamos, aliás, tantos recortes dourados, sendo esta a casa da simplicidade que Buda invoca. Mas talvez o dourado seja apenas uma cor ou o raciocínio venha da ignorância. No dia em que Várzea de Sintra recebeu uma nova casa budista (em Outubro de 2013), vieram 7500 pessoas de todo o mundo para celebrar. A passar o ano, pouco ultrapassam a dezena. A meia-noite é certa mas foge de raspão, porque é no acordar do sol que 2015 realmente começa, pelas sete da manhã, quando meio mundo ainda festeja os últimos cartuchos ou dorme sob os vapores da bebedeira da véspera.
No passeio para ver o sol, encontramos Luciana Almirall, a coordenadora de educação do centro. Foi em São Paulo que obteve os primeiros ensinamentos práticos sobre como lidar com a raiva, a frustração, a depressão. Queria ferramentas. “Não era para ficar estudando a vida do Buda”, explica. O principal foi aprender a meditar, porque “pode ter-se tudo na vida, mas se a mente não sabe desfrutar…”, nada feito.
Luciana assegura que a maioria das pessoas procura lugares como este para “resolver problemas de ansiedade, stress e relacionamentos, os problemas da vida moderna”. E a vida moderna é quando ligamos o piloto automático, sem ver a estrada nem respeitar os semáforos, onde muito se buzina e pouco se escuta. Por tudo isto é que os templos kadampa se instalam sempre perto de grandes cidades (existem quatro no mundo, junto a Londres, Nova Iorque, São Paulo e Lisboa).
Fora da maioria, quem aqui vem busca um tempo que corra mais lento ou quer compreender melhor o mundo. David Martins, o director administrativo do centro — que antes de ser budista tinha uma empresa de estofos automóveis e era baterista — analisa o contexto deste modo: “As pessoas vêm aqui porque sentem falta de alguma coisa na vida delas, precisam de paz e estão perturbadas pela instabilidade económica. Às vezes, vão à procura de refúgios caros, mas não é esse o nosso caso [os 10 dias de ano novo, por exemplo, custam 120 euros].”
São as conversas no Café do Templo, enquanto uma mulher, lá fora, sobre a relva, escuta um monge e abana a cabeça. Susana Marques tem 38 anos, está desempregada e vive no Cacém. Chegou a frequentar um colégio de freiras e tem educação católica, mas quando conheceu o budismo (três meses antes desta conversa), encontrou mais respostas nele do que em anos de dogma, explica. “Tenho voltado, porque gosto de meditar em colectivo, pela energia e concentração” que a prática confere. Quer perceber o que anda a fazer no mundo, de onde vem, para onde vai. Desta vez, “a passagem de ano foi totalmente diferente”, porque ela própria está “diferente”, dizem os amigos. Foi um dia a ver o ano chegar, sem que isso passasse longe da mente.
A “new age”
Regressemos a 2008. “A oferta [de retiros] explodiu de então para cá”, analisa João Cruz, editor do blogue Escapadinhas Espirituais, uma agenda online de retiros organizados no território nacional. Para que não haja equívocos, “estamos a falar sobretudo de retiros no âmbito das novas espiritualidades, da chamada new age”. São círculos ligados ao auto-conhecimento e ao desenvolvimento humano, em que a meditação, o ioga, o reiki ou o tantra assumem papéis centrais. “Os retiros tântricos, como os do Osho, são quase um mundo à parte”, relata João.
A explosão justifica-se pela necessidade de “experimentar vivências diferentes” e de fugir das luzes que ofuscam mais do que deixam ver. “Não é por acaso que esta tendência cresceu a par com a do turismo rural. Muitas vezes os dois conceitos confundem-se e os promotores de turismo já perceberam que há nos retiros um nicho de negócio muito interessante”, analisa o ex-jornalista. Embora este tipo de eventos não faça parte de uma actividade controlada, a gestão do blogue Escapadinhas Espirituais dá uma ideia da dimensão do fenómeno: “Todos os dias me chega informação sobre novos retiros de Norte a Sul do país.”
Mas há quem defenda que o conceito de retiro não deve ter lugar nem hora marcada. “As pessoas têm de saber o que é, para elas, um refúgio. Não é algo baseado no tempo e no espaço. É algo onde encontro a verdade, um lugar seguro, precioso, onde nos podemos apoiar”, conta-nos o monge Ajahn Vajiro, natural da Malásia, economista de formação e a viver em Portugal desde 2012. Encontrámo-lo depois de cruzarmos uma localidade chamada Paz, entre Mafra e a Ericeira, no Mosteiro Theravada da Floresta. Pronunciado o nome, pensámos nisso: uma floresta imensa com monges que caminham descalços entre o expectável pinhal — o de Frades. Mas o lugar que encontramos é um terreno com duas vivendas normalíssimas à face da estrada nacional que ruma à praia. Quem passa não vê um mosteiro, mas as pessoas vão sabendo que ele existe. “Vestidos desta maneira [com as vestes budistas, cor de açafrão], fazemos virar mais cabeças do que uma mulher bonita”, brinca o eremita.
Aqui não se organizam retiros. Os monges teravada (tradição budista tailandesa) têm sempre a casa aberta a quem chega. “Há pessoas que vêm cá por umas horas, dias, semanas, meses, até anos”, refere Ajahn Vajiro. “Temos essa porosidade”, porque o lugar depende da generosidade das pessoas (os monges teravada são mendicantes), que aqui funciona como “uma energia alternativa”.
“Se quiser trazer alguma fruta e salada, agradecemos.” Foi esta a única “condição”, comunicada por Dhammiko Bhikkhu, para nos refugiarmos na filosofia teravada por um fim-de-semana. Mas há regras a cumprir e erros a cometer. O primeiro é querermos cumprimentar o monge com um aperto de mão, quando o toque é evitável. O segundo é oferecermos companhia para a caminhada de domingo. “Normalmente vamos sozinhos”, explica-nos amigavelmente.
Fora isso, o pequeno-almoço é as 7h, o almoço às 10h30, a hora de recolhimento às 21h30 e o silêncio absoluto. Os pujas (meditações) são às 5h e às 19h30, todos os dias. Não há jantar. De um lado fica a casa dos monges, do outro a dos visitantes, que lhes preparam as refeições e cumprem tarefas de jardinagem e manutenção do espaço. Não se trata de uma troca, mas da generosidade a percorrer o espaço.
A luz
No quarto frio de Pinhal de Frades, a respiração sai em forma de nuvem e a luz vai persistentemente abaixo. Um dia também se terá refugiado nesta casa (não por motivos espirituais, certamente) Álvaro Cunhal, conta-nos um dos monges. “Esteve cá dois ou três anos depois de ter sido preso. As pessoas vinham e davam-lhe comida.” Período mendicante.
O cobertor eléctrico é, neste momento, o nosso melhor amigo. À passagem de camiões na nacional, a janela estremece, e às 21h30 não há sono que pegue. Mas tenta-se com muita força, porque meditar às 5h implica levantar uma hora antes.
Na madrugada, a meditação é um estado de dormência que se apodera das pernas. No silêncio há silêncio, nos cânticos há transe. Lá fora, o dia vai crescendo. O sol nasce devagar, as moscas voam devagar, os galos acordam devagar. Concluído o exercício, Caroline tira ervas daninhas do jardim, Miguel diz-nos que os monges não gostam de muita manteiga nas torradas. Fazemos uma pilha delas e jogamos às perguntas e respostas, sobre o antes e o depois do budismo. “Antes agarrava em algo e ficava a segurar. Agora agarro mas não com demasiada força”, responde o budista de 53 anos, em retiro prolongado em Pinhal de Frades.
Dhammiko Bhikkhu concordará. Vem ao longe, na sua veste alaranjada e uma figura que faz acreditar que nasceu monge. Afinal estudou Engenharia Agrícola, teve uma vida académica como muitos outros, entre festas e copos, fumou até 2002. Mas começou a achar-se “preso aos hábitos, naquele ‘rame-rame’”, e foi à procura de respostas numa viagem pela Europa — sem álcool, sem cigarros, sem carne. “O que me interessava não era bem ser monge, mas fazer uma limpeza espiritual”, conta, sobre quando passou a concentrar os interesses no budismo, no ioga e no gnosticismo. Começou a sentir leveza. “Nos jejuns é como se apurássemos as antenas todas”, descreve. Virou-se então para dentro, deixou de “procurar o bem-estar fora” de si.
Para Miguel, o “momento do clique” deu-se em 2007, quando conheceu uma mexicana em Marrocos. “Foi ela que me falou dos cursos de vipassana do goenka [técnica de meditação numa tradição não sectária do budismo], e rapidamente fiquei apaixonado pela meditação.” Frequentou seis cursos, o que significa 60 dias de silêncio. Sobre a meditação, diz que não há regras nem receitas. “O importante é observar é a anitcha”, ou seja, a impermanência”, porque se tudo é temporário, o sofrimento deixa de fazer sentido.
O grande espírito
No mundo dos retiros, há mestres vindos da América Latina para organizar eventos em Portugal e portugueses que aprenderam as técnicas do xamanismo (prática espiritual, médica e filosófica ancestral dos incas) para partilhá-las. Helena Pereira introduziu em Portugal o movimento munay ki (uma vertente do xamanismo que invoca o poder do amor) com a holandesa Terri van Ommen, em 2011. É professora de matemática — “mais céptica do que isso não podia ser” — e “inicia pessoas nos rituais da tradição q’ero”, uma tribo refugiada nos Andes, acima dos 4200 metros de altitude. Consta que usam um sol ao peito e que carregam no espírito a profecia do fim do modo de pensar e de viver actual. Referem-se ao colapso do paradigma ocidental e ao retorno à natureza. Para esse regresso às raízes, estão a trabalhar os novos guardiões da Terra, formados em cada retiro munay ki.
Aguardamos os nove ritos de iniciação à transformação da consciência. No Espaço Ganesha, em Lisboa, há almofadas em círculo sobre uma manta inca. Dez mulheres e um homem trazem flores, pedras e cristais e dispõem-nos em forma de mandalas. Helena acende o pau-santo (que ficou em repouso na terra durante dez anos) para pôr o ar a fumar. “Não foi por acaso que nos reunimos hoje. Estes encontros já foram marcados na nossa alma”, afirma. E é à volta da roda xamânica que nos juntamos para descobrir um mundo novo ou, como diz a guia, “sentirmo-nos imortais”.
Aberto o espaço sagrado, “vamos convidar as forças a juntarem-se a nós”, com a concentração nos quatro elementos — água, fogo, terra e ar. “Ayaya!”, repete-se na sala. É a saudação. Jonas chora, Anabela parece estar a sentir algo bom dentro do corpo. Um a um, no centro da sala, de mãos ao peito, recebem a visita do “grande espírito”. Na mesa xamânica, há 13 pedras trabalhadas energeticamente. “Vamos primeiro ao condor, que nos dá uma visão ampla e nos permite voar”, inicia Helena Pereira.
Não vimos chegar o primeiro espírito, nem o segundo. Mas vemos — com os olhos, mesmo — que quem se deita no tapete à nossa frente tem dificuldade em acordar. Assim que regressam “à superfície”, é como se tivessem saído de uma sessão dupla de canabinóides, de sorriso estrelado no rosto. São cinco da tarde, há oito rituais cumpridos — o último foi o das estrelas — e um bocejo generalizado. Todos pedem para dormir, exaustos. Tornaram-se “pessoas prontas a curar a terra”, concretiza Helena.
O jejum e as antenas
“Por favor, trazer:
. Roupa confortável e quente;
. Objetos de higiene pessoal;
. Chinelos de quarto ou meias grossas (o calçado de exterior não é permitido dentro de casa);
. Calçado confortável de exterior;
. Temos bastantes tapetes de ioga, mas pode trazer o seu se assim o desejar;
. Bloco de notas e caneta.
Não trazer:
. Comida; substâncias intoxicantes de qualquer natureza.”
As recomendações partem da Quinta do Anjo, o lugar que nos acolhe em Porto Mendo para um retiro de jejum, acreditamos nós; detox, corrigem eles. São dois dias e meio de introdução à limpeza do corpo e da mente pela boca. Uma semana antes, há um trabalho de preparação, com a transição para uma alimentação vegetariana, orgânica, com muitos vegetais crus e fruta, e com 1,5 a dois litros de água por dia. Substâncias intoxicantes e estimulantes, como café, álcool, açúcar, alimentos processados e refinados, sal e tabaco não entram na lista.
Ana Gema, a organizadora do retiro, explica que, para uma maior eficácia, são precisos períodos de desintoxicação mais longos. Este é uma introdução. “Para limpar as toxinas de uma cidade, se calhar é preciso um detox uma vez por mês. Quem vive no campo, se comer biológico, talvez uma vez por ano.” Serão dois dias de sumos, chás e shots de erva de trigo, dieta crudívera e alcalina, ioga e meditação, workshops de nutrição e de leites vegan. O global é remover causas de doença, reequilibrar o organismo, aumentar a vitalidade, uma vez que a energia gasta no processo de digestão direcciona-se, no jejum, para a cura e a auto-regeneração do organismo.
Em Porto Mendo não acontece muito, “só” a vida. O terreno faz-se de pinheiros, há uma rede para dormitar entre as árvores, uma cabana de massagens e o compasso musical das cigarras. Do jantar fazem parte a sopa de manga e abacate com sésamo, a pasta de beterraba e o húmus, um desidratado com coentros, tomate, noz, curgete e linhaça, queijo vegan de caju, ganache de chocolate com espirulina, sorbet de manjericão e manga e gelado com caju e morango para sobremesa. “Então isto não era para não comer?”, pergunta um dos participantes. Calma. Estamos a desintoxicar. Ao terceiro dia, o jejum chegará. “Temos de beber devagar, fazer render a refeição e lembrar que ela começa na boca”, orienta Ana Gema, ensinando que o sumo de maçã, limão e lima é altamente alcalinizante (o meio ácido é o preferido das bactérias). Por isso, amanhã, ao acordar, o pH da urina deverá ser neutro.
“Cerca de 80% do público que procura estes retiros é feminino e tem mais de 30 anos”, caracteriza Paulo Hayes, também responsável da Quinta do Anjo. É certo que “quem fuma e bebe café tem alguma dificuldade”, outros “têm saudades do pão”. Mas, progressivamente, “sentem-se mais leves”, com a ajuda das sessões de ioga e as caminhadas pela natureza.
Leonor e Marta vieram experimentar. Perguntam tudo: sobre a comida, os exercícios, a permacultura, a vida no campo. “Há uma curiosidade generalizada em torno da comida”, admite Paulo, sobretudo porque a alimentação é unanimemente considerada fonte de grande parte das doenças contemporâneas. Mas não é todos os dias que se pensa em fazer queijo de caju ou comer iogurte de avelã com carambolas. A comida é uma aprendizagem, sobre o que misturar, como e quando. Aliás, é esse o grande motor de um retiro deste tipo: aprender. Porque “vivemos num planeta poluído”, mas, mesmo assim, o corpo precisa de comer.
A Fugas participou nos quatro retiros a convite das organizações
Onde passar o ano em retiro
Mosteiro Theravada da Floresta
Quinta do Pinhal, Pinhal de Frades
Datas: por marcação
Preço: gratuito
Contactos: mosteirotheravada@gmail.com, 969458367; sumedharama.pt
Ano Novo, Vida Nova
Templo Para a Paz Mundial (kadampa), Várzea de Sintra
Datas: de 26 de Dezembro a 3 de Janeiro
Preço: 120 euros
Contactos: info@kadampa.pt; www.kadampa.pt
Novo Ano - Retiro de Meditação, Mindfulness e Não Dualidade
Avidanja, Montemor-o-Velho
Datas: de 27 de Dezembro a 3 de Janeiro
Preço: 420 euros
Contactos: info@awakenedlifeproject.org
Retiro de Ano Novo, ioga e Meditação – “A pequena ilha verde”
Academia Prana, Paúl, Covilhã
Datas: de 30 de Dezembro a 3 de Janeiro
Preço: entre 165 e 220 euros
Contactos: info@prama-academy.org; prama-academy.org
Alma da Enxara – Viver em Comunidade
Quinta da Enxara, Enxara do Bispo, Mafra
Datas: a partir de 27 de Dezembro
Preço: entre 42 e 56 euros por dia (no dia 31, os preços ascendem até aos 96 euros)
Contactos: reservas@ColectivoEnxara.org; 926 310 093