Fugas - Viagens

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  • Malta e comboio Maltanka
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  • Ponte sobre rio Cybina
    Ponte sobre rio Cybina
  • Praça Adam Mickiewicz com monumento da revolução de 1956
    Praça Adam Mickiewicz com monumento da revolução de 1956
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    Stary Rynek
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  • Universidade Adam Mickiewicz
    Universidade Adam Mickiewicz

O berço romântico da Grande Polónia

Por Irineu Teixeira (texto e fotos)

Poznan congrega atributos que justificam mais do que uma fugaz pausa. Um oásis natural a transbordar de histórias de paixão e sangue, remetendo-nos para Cracóvia ou Praga mas livre de chusmas de turistas.

“Já alguma vez se apaixonou por uma cidade?” A pergunta não figura no brasão de armas da cidade, ao invés, consta, como frase-chamariz, na carta de candidatura a Capital Europeia da Cultura de 2016 (entretanto perdida para a vizinha Wroclaw). Enquanto me debato com a oportunidade da pergunta, guindo o olhar para a torre sineira da Ratusz, excelso edifício de três pisos sustentado em arcadas. Sinto-me varado por uma sensação de déjà vu, enquanto aguardo o badalar das 12 horas. A memória remete-me para Cracóvia, 450km a sul, e ao trompetista que, em 1240, do alto do campanário da igreja de Santa Maria, advertiu a população para o ataque iminente dos tártaros. Compassada, a melodia continua a fazer-se ouvir a cada hora, direccionada para os quatro pontos cardeais, e cessando precisamente na nota em que, há 775 anos, a garganta do músico foi fatalmente trespassada por uma seta invasora.

Aqui a música e os intérpretes são outros. Com os cortinados do céu escancarados, torrentes de uma luz estranhamente abrasadora despencam sobre os olhares que se cravam na câmara municipal, a Ratusz. Miro o ponto onde duas cabras montesas se aprestam a marrar uma na outra, corporizando uma das muitas lendas de uma cidade fabulosa. É assim à hora certa. E tem uma explicação, segundo Markusz, guia de um grupo de canadianos.

“Quando a Câmara foi reconstruída, após um grande incêndio (1536), decidiu-se instalar um grande relógio na torre. O acontecimento seria celebrado com um sumptuoso banquete, com a presença de figuras eminentes da região. O prato principal, pernil de veado, ficou a cargo do jovem Pietrek. Lá em baixo, na praça do mercado, a azáfama era de tal forma apelativa que o cozinheiro se abstraiu com as distracções, enquanto o assado era reduzido a cinzas após ser consumido pelas labaredas. Aterrorizado, acorreu a um prado nas imediações onde comprou dois machos caprinos, arrastando-os pelos chifres até à cozinha da câmara municipal. Pressentindo a fatalidade, os animais escapuliram ao jovem trepando torre acima, onde, chegados, começaram às marradas, para espanto, primeiro, e gáudio, depois, da multidão que, do piso inferior, os observava com estupefacção. O espectáculo divertiu o alcaide e demais comensais. Perdoado Pietrek, construiu-se um mecanismo em que os bodes seriam os responsáveis por anunciar o meio-dia. Até hoje.”

Não somos muitos instalados na plateia. No meu banco de madeira tosca, tendo por horizonte próximo um colorido friso de casinhas de bonecas, acomodam-se três pessoas, eu e duas jovens enfiadas em abrasantes fatos de cabrinhas quando, a pique, os braços do sol nos abraçam com severidade. Elas estão ali como símbolos vivos da cidade para se deixarem fotografar a troco de um punhado de zlotys. Meio-dia: algumas cornadas bem dadas e cai o pano sobre o duo de intérpretes. Fim de festa.

Estudar e protestar

No trajecto para a emblemática Stary Rynek, ou praça do antigo mercado, cruzei-me com uma turba estudantil, uma espécie de corvos negros à escala humana, numa azáfama própria de novel ano lectivo. A Universidade Adam Mickiewicz (que perpetua o “pai” do romantismo polaco, 1798-1855) é uma das quatro universidades oficiais, a que se juntam outras tantas faculdades e dezassete escolas particulares de ensino superior. No total, estes estabelecimentos de ensino albergam cerca de 142 mil alunos, perfazendo 221 alunos por cada 1000 habitantes, tornando Poznan na cidade com maior percentagem per capita de estudantes universitários. O imponente edifício, de estilo neo-renascentista alemão, franqueou portas a 7 de Maio de 1919, precisamente quatro séculos após a fundação da vetusta Academia Lubrañski de Poznan, e por ali passaram estudantes como Józef Pilsudski (primeiro chefe de estado da Segunda República da Polónia), Ferdinand Foch (chefe dos exércitos aliados da I Grande Guerra) Maria Sklodowska-Curie (duas vezes prémio Nobel) ou Ignacy Paderewski (notável pianista e político).

Encontro-me com Ivan em frente ao Collegium Minus, edifício que alberga a administração de um pólo que tem 50 edifícios disseminados pelo centro da cidade. Amigo de longa data e de outras paragens, o sempre atarefado sérvio encontrou uma brecha na sua exígua agenda para desvendar por que razão se enraizou numa nação que não a sua. “A cidade é isto que vês”, apontando com o rosto em direcção aos jovens formiguinhas que galgam as escadarias, de alma renovada, como na obra Fédon, de Platão — “A alma não se limita a ser entendida como o princípio da vida, mas é também vista como o princípio de conhecimento”. “Todos se querem formar em Poznan, possuidora de uma qualidade de vida sem paralelo.” Facultou-me um dado esclarecedor. “Ainda recentemente, a taxa de desemprego, dentro da cidade, rondava os 2%.” Mas não há bela sem senão: “Aqui vais sentir-te em casa, ainda que os locais sejam um pouco nacionalistas, talvez por a História lhes recordar um rol de invasões.”

Prosseguimos escassos metros pela Šwiëty Marcin para, sobre a esquerda, desembocarmos na praça homónima à Universidade. Aqui, no âmago cultural e educacional da cidade — sede da Universidade Adam Mickiewicz, da Academia Musical, da Academia de Economia, do Grande Teatro, em reconhecimento a Stanislaw Moniuszko, do Centro de Cultura ou do Palácio do Keiser — sobressai um dos monumentos mais representativos (e sentimental) de Poznan: duas imponentes cruzes em betão armado em homenagem às vítimas de Junho de 1956. Austera, a obra é flanqueada por edifícios de uma beleza poética. Pouco adiante, e descendo pelo eixo principal, temperamos os corpos numa sombra defronte do Zamek Cesarski, o Castelo Imperial. O indicador da mão direita de Ivan conduz-me à parte inferior do robusto edifício de pedra granítica.

“Vês ali a data?” Como se fosse plausível não atentar nos descomunais números em latão negro: 1956. “Esta data está por toda a parte.” Em terra de estudantes, o meu professor da história local é forasteiro, tal como largos milhares de alunos integrantes do programa Erasmus.

“Foi nessa praça que espoletaram os acontecimentos de Junho de 1956, coincidindo com a primeira grande manifestação que teve lugar sob o domínio do regime comunista, no período da opressão estalinista. O lema ‘verdade, liberdade e pão’ reuniu aqui mais de 100 mil pessoas, que ocuparam todos os edifícios públicos. Mas o Comité Central do Partido Comunista, em Varsóvia, decidiu reprimir, terrivelmente, as manifestações, e, pela força de tanques e soldados, assassinou 70 manifestantes e prendeu cerca de mil.” Esta parte acrescento eu, após ler numa placa: “No dia 28 de Junho de 1981, nos 25 anos do aniversário do Levante (assim se chamava o movimento), ergueram-se duas cruzes, idealizadas por Graczyk e Wojciechowski, em memória das vítimas de 1956.”

O turno da tarde entra ao serviço. Alva e cálida, a luz fere o olhar quando este se ergue para contemplar as fachadas neo-renascentistas decoradas a motivos em estuque. Presenciámos a última das reivindicações, na devida distância, contra a presença de migrantes (sírios e não só) em solo polaco cristão. Não eram muitos, mas intimidavam pelo porte físico e, sobretudo, pelos ideais xenófobos. Paradoxalmente, esta tem sido a história de Poznan, amada e disputada por todos os impérios: prússio, alemão e soviético.

Santo e pecador

A ideia de um palácio real em Posen (nome alemão que a cidade tinha na época e que foi capital da província do estado da Prússia, o maior e mais importante do Império Alemão) nasceu em 1905 com a demolição das antigas muralhas da cidade. A recente realização do Europeu de futebol de 2012, em parceria com a Ucrânia (a selecção de Portugal montou o seu quartel-general num luxuoso hotel precisamente nos arredores de Poznan) levou a um restauro e reconstrução da parte oriental deste centro cultural fortificado. Depois da ocupação da Polónia, em 1939, Hitler transformou-o numa residência oficial, tornando a antiga capela privada num luxuoso escritório de 130 m2 revestido em mármore. O tempo não cessa e com ele foi-se Ivan. O reencontro fica para o serão.

Estou, então, na casa de partida, os cabritos já se chifraram, a plateia debandou para glamorosas esplanadas, enquanto, agora a solo, erro pelo lado poente das ruas Wozna e Mostowa. Procuro embalagem para alcançar Ostrów Tumski, onde tudo começou. A origem da cidade remonta ao século X, quando o duque Mieszko a nomeou como uma das capitais do seu ducado, e, no ano de 968, criou o primeiro bispado com a construção da mais antiga catedral da Polónia. A Ilha da Catedral é um oásis de tranquilidade que se alcança numa jornada prazenteira, sendo visíveis, ao longo do percurso, vários elementos de simbologia cristã. O ingresso no berço da nação faz-se pela ponte Boleslawa Chrobrego, mas, antes de a calcorrear, desprendo-me de fadigas nas margens do rio Warta, onde duas jovens perscrutam o marulhar das águas azuis-petróleo que vigiam a ilha verde como um pai que protege a filha de investidas forasteiras. E tantas foram... Na linha que une o céu à terra, duas torres gémeas barrocas ambicionam tocar uma abóbada celeste agora revestida de azul-cobalto, divorciada de farrapos leitosos que cavalgam num Norte longínquo. O recorte da basílica de São Pedro e São Paulo, popularmente chamada de “A Catedral”, domina o horizonte pela majestade e simbolismo. Pouco antes de a alcançar, detenho-me na igreja gótica da Virgem Maria (Kosciol Najswietzszej Marii Panny), do século XV, cujo subsolo preserva os vestígios daquela que terá sido a primeira sede do estado polaco, e num par de noivos em respeito da solenidade das vestes, decalcando as passeatas dos primeiros membros da dinastia de Piast. A excessiva e espartana catedral, de tijoleira de um fogo desvanecido pela acção do tempo, alberga, além de inúmeras capelas menores com vestígios do românico e barroco, a demandada Capela Dourada, guardiã do mausoléu dos primeiros governantes da Polónia — Mieszko I e Boleslaw I, o Bravo. Já a afundada e claustrofóbica cripta conserva os maciços caixões dos arcebispos que presidiram à catedral ao longo de séculos.

“Venha o Teu espírito descer

e mudar a imagem da terra ... esta terra.” 

Omnipresente, Karol Józef Wojtyla, ou Papa João Paulo II, canonizado pela Santa Sé em 2014, está aqui perpetuado em estátua, em frases ou imagens incrustadas nas severas paredes da Catedral. “João Paulo II foi o único Papa eslavo e o primeiro não-italiano desde o holandês Papa Adriano VI, em 1522”, comunica-nos a não menos austera cuidadora do espaço sagrado, de um banco de onde nunca parece ter saído. A figura mais amada da Polónia é creditada por ter desempenhado um papel significativo na queda do comunismo, não só no seu berço como um pouco por toda a Europa Central e de Leste. Milenar, a catedral transformou-se numa espécie de santuário da memória nacional polaca, envolta numa aura santificada, com Karol Wojtyla a dar as boas-vindas.

É um descanso, Malta

Cada recanto é um encanto, cada pedra puída dos edifícios eclesiásticos que cinturam a catedral preserva histórias de bravura e barbárie, de conquistas e perseguições a que esta porção de terra, onde nasceu a Polónia, entre os rios Warta e Cybina, foi acometida durante séculos. A atmosfera do lugar adquire contornos melancólicos à medida que deambulo, aleatoriamente, por charmosas e tranquilas ruas e vielas, por entre figurinos humanos de gestos lentos e mudos, ao abrigo da solenidade do lugar. Nem uma brisa a soprar por entre descuradas paredes de tons mais funestos dos cintilantes da Stary Rynek. De costas para a nave da catedral e já sobre a língua azul do Cybina, atravesso a ponte dos suspiros de Poznan, aqui Biskupa Jordana, que, ao invés da parisiense, continua a ostentar pinhas de cadeados com juras eternas de amor, alguns dos quais excelsas peças de artesanato.

As aulas de História sucedem-se ao ritmo a que nos deslocamos pela cidade, com sessões contínuas de episódios marcantes de Poznan. Do outro lado da ponte de calçada parente da portuguesa, encimada por vigas cor de um sangue aqui derramado, cruzo a avenida João Paulo II, alcançando o desmedido manto líquido de cambiantes verdes que ondulam ao ritmo soturno das águas cristalinas. Situo-me na zona Oriental da cidade, no lago Malta, um éden de paz e retiro espiritual. Jovens e menos jovens dividem-se entre a leitura e a contemplação do reservatório artificial, criado em 1952 por forma a reter as águas do rio Cybina, a cirandar nas cercanias. Paradoxalmente, a placidez paradisíaca do cenário contrasta com a azáfama aqui gerada por alturas da criação do Reino de Portugal. Nos tempos idos do século XII, os antigos proprietários destas terras — os Joannitom — estabeleceram, a convite do príncipe Mieszko, o Velho, a sede principal da Ordem, célebre em toda a Europa pelos cuidados médicos prestados aos pacientes. A acção dos nobres cavaleiros, mais tarde designados por Cavaleiros Hospitalários de Malta, transformou este espaço numa mini-ilha, replicando o célebre arquipélago mediterrânico. O sol esvai-se no horizonte, dourando as águas mortiças, evocando a tonalidade das medalhas mais arrebatadas pelos canoístas que aqui se preparam para os eventos da modalidade — o lago alberga, na margem sul, uma das pistas de regatas mais modernas do velho Continente. O sibilo da locomotiva a vapor sarapanta os patos e fisga a minha atenção para uma linha férrea que antecipei como desactivada. Embuste. A cada hora e ao longo de 3,8 kms, o Maltanka — comboio azul-infantil montado em apenas quatro carruagens desvidraçadas — sulca o carril solitário, serpenteando pela margem norte, rumo à estação terminal, no Novo Jardim Zoológico (existe o antigo). Esta preciosidade, pode ler-se numa placa carcomida pela ferrugem, ostenta, com garbo, o título de “o mais antigo vagão a motor em actividade na Europa”.

Os Descobrimentos

O regresso à faixa monumental do burgo faz-se por um dédalo de artérias ofuscadas pelo ocaso, que bombeia gente para o coração da cidade. Stary Rynek, ou Praça do Mercado Velho, provoca um amor ao quadrado, em respeito da sua geometria, agora alumiada pelos néons das fachadas e candeeiros de luz parda, como soldadinhos de chumbo que protegem este museu livre de paredes. Como enormes telas a óleo do notável pintor da casa Juliusz Kossak, as ornamentadas casinhas de estilo gótico e renascentista, de cores provençais, assistem, impávidas, ao desfile de noctívagos que ali se concentram pontualmente, como os cabritos que, lá do alto da Ratusz, andam à turra às horas certas. Lá está ele, discreto e sorridente. Os passos vagarosos de Ivan acompanham o acentuar do lusco-fusco que transforma num teatro de sombras vivas esta praça encantada. Enquanto degustamos uma dose de pierogi, parentes próximos dos ravioli, Ivan continua, décadas volvidas, a surpreender-me pelo conhecimento da História e estórias que povoam os lugares. A que se segue expôs a minha ignorância.

“Sabias que o Gaspar da Gama é daqui?”, perguntou, prosseguindo, de uma penada, perante o meu silêncio esclarecedor. “Ele foi fundamental no sucesso dos Descobrimentos portugueses, porque sabia falar várias línguas e isso ajudou muito os navegadores do teu país.” De facto, acrescento-lhe, no intuito de derrotar um sérvio no duelo sobre a História de Portugal. “E merecia outra atenção por parte dos meus governantes, porque foi, sem dúvida, o língua, ou tradutor, que mais e maior serviço prestou aos portugueses, mormente a Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.” Breve parêntesis histórico: Gaspar da Gama é uma figura imprescindível nos tratos marítimos de Portugal. Vivia já há muitos anos na Índia quando se aproximou de Vasco da Gama, passando-se por cristão. Apareceu bem vestido, simpático e insinuante, tanto que, mesmo confessando depois ser judeu, caiu nas boas graças do navegador: baptizado, dele ganhou o seu sobrenome. Gaspar da Gama, ou Gaspar da Índia, desembarcou no Brasil, como conselheiro e intérprete, sendo dos primeiros, ou o primeiro mesmo, a pisar Terras de Vera Cruz.

Mais um prato de pierogi e uma cerveja lech premium de meio litro, medida costumeira numa cidade de superlativos. Distraio-me com as cabeças de fantasia de cabrinhas, amparadas nos lívidos braços das duas jovens louras, que passaram o dia a deixarem-se fotografar em frente à Ratusz. A capital da Grande Polónia combina a expressão cultural da Europa centro-oriental com o racionalismo e a ordem da Europa ocidental. Aqui, história e tradição entrelaçam-se com a modernidade, de atracções turísticas a refúgios idílicos. É uma cidade perfeita para escapadelas românticas, inclusive para um viandante solitário que errou sem destino pelos paralelepípedos de Poznan. No final do primeiro dia, sinto-me pronto a responder à pergunta de abertura.

Parque dos horrores nazis

A manhã do dia seguinte foi inteiramente imersa a norte da Cidade Velha, no Parque Cidadela, medula de uma vasta mancha verde com 100 hectares. A envolvência bucólica não patenteia o que de monstruoso aqui se passou no século passado. A data mais sinistra do lugar remonta a 1939, quando os nazis instalaram um dos primeiros campos de concentração em solo polaco. Hitler, que foi nomeado chanceler pelo alemão Paul von Hindenburg nascido em... Poznan, transformou o Forte Winiary, parte de uma série de dezoito fortalezas defensivas construídas, no século XIX, pelos prussianos, e destruídas em 1945, numa casa de horrores. Os nazis deram aqui início ao uso de gás (sobretudo monóxido de carbono) experimentado em cerca de 400 doentes com perturbações mentais. A baixa e afunilada ala de paredes de tijolo é opressiva para os sentidos, e a luz no fundo do túnel surge como libertadora de um dos mais funestos capítulos da História da Humanidade. No total, estima-se que entre cinco a 20 mil pessoas tenham aqui morrido às mãos criminosas dos nazis. No exterior, o crocitar dos corvos, que esvoaçam por cima da copa das frondosas árvores, e as esculturas originais de Magdalena Abakanowicz completam o cenário sombrio polvilhado de sepulturas. No lado sudoeste da colina, o cemitério dedicado aos militares caídos durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais; enquanto na ala do cemitério da Commonwealth se encontram os restos mortais de dezenas dos famosos aviadores aliados que fugiram do campo de prisioneiros em Zagan, imortalizado no filme The Great Escape (traduzido em português para A Grande Evasão), com Steve McQueen no papel principal, baseado no livro homónimo de Paul Brickhill. E daquele espaço descomunal, de memórias fratricidas, evado-me para o centro da cidade onde irei travar uma batalha de faca e garfo.

GUIA PRÁTICO

Como ir

A forma mais prática de viajar entre Lisboa e Poznan é pela Lufthansa, com escala em Frankfurt. Do Porto, e também com partida da capital, necessita de apanhar dois voos low cost, primeiro com a Ryanair até Paris-Beauvais e, daí, com a Wizzair directamente para Poznan. A redução de preço pode não compensar o incremento da logística. A localização privilegiada do berço polaco permite-lhe ser apeadeiro dos comboios vindos de Moscovo e com estação terminal nas capitais (Berlim fica a apenas três horas de distância) da Europa Central.

Quando ir

A situação geográfica confere um clima moderado a Poznan, sendo os meses de Verão os mais quentes, com temperaturas a rondar os 30 graus. A precipitação anual na capital de Wielkopolska é menor do que a média polaca, criando condições perfeitas para aproveitar os espaços naturais. Junho e Setembro podem ser os meses mais aconselháveis de modo a evitar as vagas de turistas que, por aqui, não se fazem sentir como noutros locais de romaria estival. Nos meses mais frios, de Dezembro a meados de Março, pode deparar-se com um manto branco a cobrir a cidade.

Onde comer

A praça do mercado velho concentra vários restaurantes com cozinha de assinatura, quase todos com esplanadas no exterior. O evidente glamour dos espaços não implica, porém, preços proibitivos, tornando-os um luxo acessível ao bolso da classe média lusitana. Como é de senso comum, quanto mais distante das zonas turísticas menor são os preços praticados, mormente nas microcervejarias, onde não falta cerveja nem vodka. Os pratos típicos são o pyry z gzikiem, batatas cozidas com casca, envoltas em manteiga e queijo, e temperadas com sal, pimenta e cebola; o pyzy drozdzowe, flácidos pãezinhos servidos para acompanhar carnes e molhos, substituindo o arroz ou batatas, ou o szagówki, também chamado de kulanki, uma massa feita com batatas cruas e farinha, cortadas aos pedaços. A sopa de beterraba e os pierogi também são muito comuns. Na doçaria local, destaca-se o impronunciável rogal swietomarcinski, um bolo dedicado a São Martinho, e com título de denominação de origem protegida, em respeito das normas da União Europeia. Consiste, basicamente, num parente próximo do croissant revestido por uma camada de açúcar e polvilhado com frutos secos. A massa e o recheio apresentam tonalidades amarelo-acastanhadas, por via do uso de sementes de papoila. Aprovado!

Onde dormir

Por se tratar de um centro académico, empresarial, comercial e turístico, a cidade oferece um vastíssimo leque de alojamentos, para (quase) todos os gostos e mealheiros. De entre os económicos, o Jaro Hostel fica à mão de semear para quem chega de comboio à cidade — até porque em meia hora alcança o centro da cidade, repleto de hostels, apartamentos, hotéis boutique e de luxo. O Hotel Brovaria, o Hotel Staro Miasto, o Hotel Wloski Business Centrum ou a Residência Solei são excelentes opções com preços até 50 euros/casal/noite. Atenção às datas das grandes feiras internacionais, que lotam grande grande parte das unidades hoteleiras disponíveis.

Compras 

Este não é um item que costume arrebatar a atenção do viandante, no entanto, abro uma justa excepção para aludir ao principal centro comercial de Poznan, considerado uma das maravilhas polacas pela National Geographic Traveller. O Stary Browar 50 50 (de 1844) situa-se no interior de uma antiga cervejaria e o grupo proprietário, visionário, decretou que grande parte do espaço fosse entregue a actividades culturais, metamorfoseando-o numa área, sempre em expansão, de consumo e, sobretudo, de expressão artística. Foi, ainda, considerado o melhor centro comercial médio do Mundo pelo International Council of Shopping Centers Award.

INFORMAÇÕES

Basta-lhe o passaporte em dia ou cartão de cidadão para visitar a capital da voivodia (região) “Grande Polónia”. É a segunda em área e terceira em população dentre as dezasseis voivodias do país, com cerca de 3,5 milhões de habitantes. Poznan ou, em português, Posnânia (em alemão Posen) localiza-se nas margens do rio Warta e alberga feiras, reuniões ou conferências internacionais que atraem meio milhão de visitantes/ano, garantindo à cidade o segundo lugar entre as mais importantes para o turismo de negócios em toda a Europa Central e Oriental. Ponha na agenda as duas datas mais festivas da cidade: o 11 de Novembro, dia de São Martinho — altura em que se consomem 250 toneladas do croissant rogal swietomarcinski, cerca de 1,25 milhões de unidades! , e nome da avenida principal de Poznan (Sw. Marcin) — e a festa de São João (Jarmark Swietojanski), também no dia 23, como no Porto ou em Braga.

O que fazer

A dificuldade reside em elencar o que fazer no tempo disponível. O ideal seria um fim-de-semana completo para não se limitar a uma “vista japonesa” (leia-se, fotográfica). As crianças vão adorar a região do lago Malta, que contempla um jardim zoológico bastante interessante onde os animais vivem em condições próximas às naturais. Já as termas, inauguradas em 2011, também no lago Malta, foram pensadas para os amantes da diversão aquática. Aqui pode nadar na piscina olímpica, praticar bodyboard na piscina de ondas duplas ou, para os miúdos, divertir-se com jogos na água e nos inúmeros escorregas. Uma jornada museológica vale bem o tempo, se, por exemplo, adentrar no museu dos instrumentos musicais, em plena Stary Rek, com um interessante acervo de instrumentos tradicionais da Polónia e de diferentes partes do mundo.

Ainda na praça do mercado velho, no edifício da Câmara Municipal, não deixe de visitar o Museu da Cidade, ou da História de Poznan, cujo património vai desde o século X até ao final da II Guerra Mundial. Aqui, destaque para a Grande Sala (Wielka Sien) com o impressionante tecto renascentista construído no século XVI e decorado com escudos de armas e ornamentos esculpidos e pintados em pedra.

Ainda sem sair da praça, mude-se para o número 84, reduto do Museu Henryk Sienkiewicz, prémio Nobel da literatura em 1905 e mundialmente conhecido pela obra, também adaptada ao cinema, Quo Vadis. Fora do quadrado mágico, e se dispuser de tempo, o Museu Arqueológico redunda numa espécie de máquina do tempo que o transporta à pré-história da Polónia, para além de conter uma exposição dedicada ao Antigo Egipto (sábado é grátis), ou, ainda, a Galeria do Museu Nacional de Escultura e Pintura, que alberga uma exposição de obras românicas, góticas, pinturas italianas dos séculos XV e XVII e colecção de autores espanhóis como Zurbarán, ou, como ex-líbris, La plage à Pourville, soleil couchant por Claude Monet.

Numa cidade franjada de verde, o Jardim Botânico, fundado em 1925, e propriedade da Universidade Adam Mickiewicz, oferece, em 22 hectares, uma variedade mundial de espécies vegetais e de ecossistemas. Ali perto, caminhando um pouco para sul, na praça onde decorrem as manifestações actuais, a biblioteca Raczynski, fundada por Edward Raczynski, é uma das mais conhecidas atrações turísticas da cidade. O edifício levantou-se entre 1822 e 1828 em estilo classicista de grandes colunas e influenciado pela fachada Norte do Louvre. Já a igreja São Estanislau (Kosciol Farny Sw. Stalislawa) de estilo barroco, século XVI, oferece, gratuitamente, concertos de órgão de Junho a Setembro. Já o Palácio Dzialynski — dos poucos a escapar aos danos causados pela II Guerra Mundial — hoje é usado como biblioteca ou centro de exposições temporárias.

 

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