Siegen: o improvável berço de Rubens é feito de ferro
Parece ser universalmente aceite, mas em Siegen ainda se fala com precauções sobre o nascimento de Rubens, como se se temesse que a qualquer momento alguma prova venha retirar-lhes o seu natural mais famoso. Afinal, foi quase um acaso o seu nascimento aqui, nesta cidade do sul do actual estado da Renânia do Norte Vestefália, e até ao século XX Antuérpia, Colónia e Siegen disputavam a honra de ser o berço do mais famoso pintor do século XVII.
Foi uma carta escrita pela mãe do pintor, descoberta por um arquivista holandês, que pôs um fim à contenda: nela, menciona o nascimento de Peter Paul Rubens a 28 de Junho de 1577 em Siegen. A casa onde terá nascido foi destruída durante os bombardeamentos da cidade na II Guerra Mundial e agora o local é uma escola, bem perto do castelo, o “superior”, onde um dos pisos alberga uma sala dedicada ao pintor, com oito obras. “Não são muitas, mas representativas”, afirma Birgitte, a nossa guia por estas paragens. Nos jardins, a chamada “Fonte de Rubens”, de 1935, faz alusão às três cidades que reivindicaram durante séculos Rubens como “seu”: as cidades são representadas por mulheres em torno de uma criança, Rubens.
E há uma certa ironia no facto de Siegen ter saído “vencedora” desta contenda diplomática, uma vez que é a cidade que teve um papel menos importante na sua vida. Diríamos mesmo irrelevante não fosse, como referimos, o acaso de aqui ter nascido: viveu mais tempo em Colónia; cresceu, fez-se homem e artista em Antuérpia. Porém, Siegen colhe alguns frutos deste acaso e até instituiu o Prémio Rubens, que já distinguiu artistas tão relevantes como Francis Bacon, Antoni Tàpies ou Lucien Freud. É atribuído a cada cinco anos desde 1957 (o último, em 2012, pertence a Bridget Riley) a artistas que se destaquem na arte europeia — forma de também homenagear Rubens como um percursor da união das nações europeias, ele que sempre o defendeu, e cuja vida reflecte bem uma Europa sem fronteiras, se atendermos ao facto de ter desenvolvido a técnica em Itália, ganho fama em França e ter sido diplomata em Inglaterra e Espanha (o que mostra como soube ganhar os favores das grandes potências, muitas vezes antagónicas, da Europa do seu tempo — não surpreende, portanto, que tenha feito fortuna em vida, algo de que poucos artistas da época, e não só, se podiam gabar).
Siegen obcecada, portanto, por ser o berço de Rubens, que grafitters homenagearam não sem ironia, nas paredes de um bunker da II Guerra Mundial, não muito longe de onde terá nascido, na rua que desemboca no castelo: “Rubens nu”, figuras femininas despidas, seios destacados, mãos erguidas como que a parar um assédio, querubim agarrado a uma das pernas, tentativa de colocar um halo. A sensualidade dos retratos Rubens transformada em erotismo tosco na estrutura de betão em abandono total — ferida aberta no coração da zona mais antiga de Siegen, memória de uma destruição quase total que curiosamente deixou de pé o símbolo da cidade: a “pequena coroa”, no topo da torre da Nikolaikirche, igreja românica invulgarmente hexagonal (única na Alemanha), que vale a Siegen o epíteto de, precisamente, “cidade do diadema”. Construída no século XIII no centro cívico da cidade, a praça do mercado, recebeu a coroa (agora uma réplica de aço e cobre douradas por folhas de ouro) no século XVII, quando a família condal Nassau-Siegen foi elevada ao estatuto de príncipes imperiais, que ainda hoje se destaca na paisagem da cidade.
A história de Siegen é indissociável desta dinastia, que daqui estendeu a sua influência e hoje reina na Holanda e Luxemburgo. A reforma religiosa dividiu-a em ramo católico e ramo protestante, cada qual com o seu castelo na cidade: o “superior” (pela localização), o “original”, permaneceu no ramo católico, o “inferior” foi construído para o protestante. Deixou marcas, este conflito religioso, numa cidade onde o calvinismo rigoroso, dominante, a manteve à margem de certos “prazeres terrenos”, como o teatro, por exemplo — conta Birgitte que apenas no final do século XX apareceram salas de teatro aqui. Ao mesmo tempo, exaltam-se histórias como a do guarda da igreja e dos seus sete filhos que, vivendo na torre, carregavam água até ao cimo, várias vezes ao dia, em pleno século XX. A austeridade ainda é, portanto, ainda uma virtude numa cidade que, apesar do protestantismo que lhe moldou o carácter, alberga no seu seio várias confissões religiosas. E onde se proclama orgulhosamente que se preparam para receber 400 refugiados.
O ferro como ouro
Regressamos ao castelo superior, passando a entrada onde a grossura das muralhas é bem visível. Entramos para nos depararmos com o cartaz de uma konzert matiné, Bonjour a France que revela uma das vocações deste espaço — a cultural: entre Abril e Setembro, por exemplo, os domingos são dias de concertos gratuitos numa tenda montada no jardim. O edifício principal é o típico castelo residencial (com portadas pintadas de azul e laranja, as cores da Casa de Nassau) e hoje, além da galeria de Rubens, alberga uma galeria com retratos dos condes de Nassau, outra dedicada ao trabalho do ferro pelos celtas (incluindo uma fornalha) e uma cozinha típica destas terras. Os jardins formais estendem-se nas traseiras e dos lados, sendo cenário predilecto para sessões fotográficas de casamentos, como aquela a que assistimos, noiva vestida de azul. Há árvores exóticas e há sobretudo flores (incluindo as seis mil tulipas que todas as primaveras chegam da Holanda) — mas não em Outubro, quando tudo se prepara para a hibernação e até o canteiro das aromáticas se apresenta renitente. Duas torres sobreviventes da antiga muralha da cidade apresentam-se como miradouros privilegiados (e uma delas é testemunho do período da caça às bruxas, com um buraco profundo onde eram aprisionadas as suspeitas de práticas satânicas, em escuridão total). Contudo, todo o jardim é um terraço sobre a cidade “nova”, o subúrbio Kaan-Marienborn, e as montanhas em redor que confluem no chamado “vale da siderurgia”: daqui vem a riqueza e aqui está o motivo por que o fogo chegou pelos céus. Pela linha ferroviária, construída em 1869 para escoar o ferro, passava a matéria-prima, o ferro, que ajudava a alimentar a máquina de guerra do III Reich.
A mineração de ferro foi actividade constante ao longo de mais de dois mil anos e muitos nomes da região registam essa história. Também as minas são testemunho dessa fonte de rendimento e tiveram utilizações menos ortodoxas: serviram de abrigos anti-aéreos durante a II Guerra Mundial e foram esconderijo das obras de Rubens. O fecho das minas no rescaldo da guerra e da grande mudança estrutural do país não impediu que florescesse a indústria metalúrgica com tentáculos em todo o mundo, nota Birgitte: “Por onde viajamos, caminhamos sobre tubos que vêm de Siegerland. No mar Cáspio, por exemplo, o material do pipeline é daqui.”
Se as minas não são perceptíveis do nosso ponto de observação, são-no as florestas que também estiveram associadas à actividade de mineração. Nos tempos mais antigos, conta Birgitte, a produção do carvão era essencial para derreter o ferro e então a floresta era um bem imprescindível. “Era cortada a cada 18 anos e os troncos tinham a medida exacta necessária para a produção do carvão. Os ramos eram poupados para as padarias”, explica. Por isso, foi criada uma cooperativa, a autoridade máxima para manter a sustentabilidade da floresta, decidindo o que se podia cortar de modo a assegurar a sua manutenção para as gerações futuras, continua. “Actualmente, viraram as costas e estamos a viver à custa das gerações futuras”, conclui — e onde já ouvimos isto?
Gerações futuras
Não distinguimos as minas na paisagem, porém distinguimos o complexo da universidade. Em Siegen formam-se gerações futuras: 20 mil estudantes fazem dela uma cidade universitária, com pendor para a formação técnica e económica. É difícil percebê-lo numa passagem rápida. Nem no centro, e voltamos à praça do mercado quando o dia está a dar os últimos suspiros de luz, vimos movimento que nos fizesse remotamente imaginar que estamos em cidade povoada de estudantes. Ou, sequer, com cem mil habitantes. Este é o centro da cidade desde a sua fundação, numa altura em que a governação estava dividida entre os condes de Nassau e o arcebispado de Colónia. Aqui ergue-se a igreja de São Nicolau, com a sua torre debruada a laranja, e o Altstadtisches Rathaus, o edifício da câmara municipal, também ele de origem medieval mas com fachada oitocentista em estilo Tudor-gótico (reconstruída após a última guerra mundial). Em finais de Outubro já se começam a erguer as barracas para o mercado de Natal (que, entretanto, já veio e foi), à sombra do carvalho oferecido por Bismarck, o obreiro da unificação alemã, em torno da estátua Germania, monumento dedicado aos cidadãos de Siegen que morreram em diversas guerras no século XIX. Uma longa escadaria leva-nos à parte inferior da praça, onde uma obra de arte abstracta com várias traves pintadas dispostas em círculo é, afinal, um simulacro da coroa-símbolo da cidade (que a tutela no alto da torre) e em tempo de calor também é fonte. É um cenário pitoresco, próprio de uma cidade pequena, mas “é demasiado doloroso vir aqui, não há estacionamento”, afirma Birgitte. E tão-pouco há motivos. “Temos um problema aqui no centro da cidade, as lojas estão a fechar porque abriu um centro comercial à beira da estação de comboios.” Antes havia um grande armazém, à maneira francesa (as department stores inglesas), contudo o primeiro andar transformou-se numa biblioteca e o rés-do-chão num supermercado e mais umas poucas lojas avulsas.
Talvez este cenário mude quando o “castelo inferior”, também conhecido como “castelo holandês”, receber um pólo da universidade, o que está previsto para este ano. Não chegamos a visitar o complexo com três alas construído entre 1695 e 1720 e que tem espaço reservado à cripta real da linhagem protestante dos Nassau. No mesmo conjunto, construiu-se em 1959 um memorial às vítimas da guerra e da tirania, a dicker turm, “torre gorda”. De fora ficou também o Museu de Arte Contemporânea, que, além de exposições temporais, tem como mostra permanente a colecção Lambrecht-Schadeberg, que reúne diversas obras dos vencedores do Prémio Rubens, entre pintura, desenho, escultura e fotografia.
Gostaríamos de ter caminhado pela zona da “cidade velha”, aquela cujos quarteirões sobreviveram à II Guerra Mundial. É, claro, a que melhor mantém o espírito de Siegen, sobretudo na arquitectura de enxaimel — de pedra ou tijolo mas com as paredes cruzadas de traves de madeira na horizontal, vertical ou inclinadas que lhes dão um rosto inconfundível — com telhados de xisto que acompanham ruas de empedrados desequilibrados. Aqui respira-se a velha Siegen, dizem-nos, e aqui queremos regressar. Por agora, saímos da principal cidade do distrito de Siegen-Wittgenstein, o centro administrativo e de serviços do sul da Vestefália, para avistar bisontes e subir a torres de castelos rodeados de floresta por todos os lados.
Wisent Wildnis
Bisontes europeus no mais populoso estado alemão
Nas pinturas rupestres por toda a Europa são dos animais mais representados, o que dá ideia da abundância dos bisontes nas florestas europeias. Mas muitos milénios passaram e o bisonte tornou-se por este continente algo de quase mítico, ainda que na verdade só se tenha extinguido no seu estado livre em 1927, na zona do Cáucaso. Foi, aliás, no leste europeu que o bisonte europeu mais tempo perdurou, uma vez que a sua caça era privilégio real na Rússia, Polónia e Lituânia. Os jardins zoológicos foram o porto seguro do bisonte europeu até aos anos 1950, quando foram reintroduzidos 12 exemplares num bosque polaco. Desses, descendem os quatro a cinco mil exemplares que agora povoam vários parques e florestas, não só na Polónia como na Bielorrússia, Rússia, Ucrânia, Roménia, Lituânia e, desde, 2013, na Alemanha, no seu estado mais populoso, Renânia do Norte-Vestefália.
Chegamos ao sul da Vestefália vindos de sul e, deixando as auto-estradas para trás, percorremos estradas estreitas de montanha. Estamos rodeados de florestas que parecem saídas de contos de infantis e esconder tanto duendes como ogres, pintadas do amarelo de pinheiros mal-amados para os jardins (são os únicos que perdem agulhas) mas perfeitos na paleta de cores outonais, aqui e ali surgem ribeiros ansiosos, campos de verde vivo onde pastam vacas e cavalos (parecem da raça Aegidienberger, baixos, entroncados, pêlo abundante e selvagem na crina e na cauda) ou campos amarelos onde o feno está enrolado, linhas-férreas com comboios turísticos, pontes de pedra; atravessamos pequenas aldeias brancas e a névoa cobre a paisagem eminentemente rural, ainda que aqui e ali surjam pólos industriais. Aqui, muitos são agricultores em part-time, explicam-nos, os solos não são muito bons: trabalham em Siegen ou nas indústrias e nos tempos livres dedicam-se à terra. Custa a crer — e voltamos a isso — que estejamos no estado mais populoso da Alemanha, onde se erguem cidades como Colónia, Düsseldorf e Dortmund, por exemplo; onde a maior área metropolitana da Europa (o Rhiner-Ruhr, 11 milhões de habitantes) convive com tantos espaços naturais, vazios ou rurais.
O nosso quartel-general neste distrito de Siegen-Wittgenstein é em Feudingen (Bad Laasphe), aldeia pitoresca com dois mil habitantes e dois hotéis, pelo menos — o nosso também é spa —, que correspondem também aos únicos pubs daqui e onde as noites são, portanto, entregues aos locais. Estamos numa das maiores áreas de floresta da região, berço de muitos rios, que constitui um parque natural, muito procurado para caminhadas e ciclismo, com rotas definidas para diversos níveis de dificuldade. É daqui que partimos para Wisent Wildnis (Bad Berleburg), meia hora de caminho até ao parque que se tornou no primeiro refúgio do bisonte-europeu na Europa ocidental.
Seguimos em visita guiada, mas há quem parta sozinho pelos trilhos dos 20 hectares que constituem a parte turística de um projecto mais vasto. Na verdade, os primeiros bisontes aqui reintroduzidos, oito, ficaram em liberdade total num território de 10 mil hectares. Um regresso à vida selvagem na Europa Central que não foi bem acolhido pela população local: os agricultores temiam ataques ao gado, doenças, cruzamentos indesejáveis, hotéis e restaurantes temeram pelos turistas. Houve resistências, mas predominou a vontade do mentor do projecto e proprietário dos terrenos, o príncipe Richard de Sayn-Wittgenstein-Berleburg, licenciado em Estudos Florestais, e acabou por ter apoio financeiro do governo estatal e federal. Esses oito pioneiros na vida selvagem (que vieram de diferentes zoos para garantir a mistura de espécies) passaram, entretanto, aos actuais 17, mas as hipóteses de os ver são escassas, uma vez que são muito esquivos (três têm sistema de geolocalização, parte de investigações universitárias: esses, sim, têm a sua vida escrutinada). Por isso, os que vemos são de outro grupo, de sete, que vivem em 20 hectares cercados. São bisontes para turistas ver, é certo, mas em espaço suficientemente grande para que estejam no seu habitat natural.
Fazemos o trilho principal com alguns desvios e paragens frequentes quando algum exemplar é observado e cruzamo-nos com grupos pequenos e viajantes solitários, cruzamo-nos até com um homem de andarilho de rodas, o que dá ideia da acessibilidade desta parte da reserva. Estamos entre carvalhos, nogueiras, áceres, freixos, faias, plátanos, a humidade faz crescer várias espécies de cogumelos entre eles — e passamos área devastada por uma tempestade em 2007, um cemitério de árvores. Subimos e descemos caminhos de terra batida, no maior silêncio possível para não perturbar os bisontes (não vêm bem, mas o olfacto e a audição são excelente) — há mesmo uma tabuleta a pedir para não fazer ruído e caminhar como os índios, o que se torna irónico quando ouvimos tiros a rasgar o ar: é época de caça e aqui tudo o que mexe não está a salvo, de veados a coelhos, passando por javalis, por exemplo —, trepamos rochas se necessário para avistar algum dos sete habitantes, um macho, três fêmeas e três crias (ele é o líder, mas são elas que mandam). Não os vemos todos, embora vivam em grupo, mas há três que teimam em deixar-se avistar junto a um dos abrigos de madeira. “Movem-se muito devagar”, explica o guia, “para poupar energia, porque precisam de comer muito para repô-la” – a saber: 50 quilos de comida por dia, para manter um porte que vai dos 800 aos mil quilos nos machos, metade nas fêmeas, que lhes garante o estatuto de maior mamífero europeu. Durante o Inverno, recebem ração extra, porque a natureza não lhes fornece alimentação suficiente — e ver as suas longas línguas a lamber o chão é uma visão comum: é espalhado sal para eles terem acesso aos minerais de que necessitam.
Atravessamos um ribeiro saltitante, passamos um prado e estamos numa “escola” (uma pequena cabana de madeira com mesas e bancos corridos fora) onde se recebem os grupos de crianças para “aprender natureza”: não só sobre os bisontes e seu habitat como, por exemplo, sobre a água que corre aqui tão perto. Não passaram duas horas quando voltamos ao ponto de partida, desta feita com direito a almoço típico — e nesta zona típico inclui sempre algo de, com, batata (as convulsões do século XIX transformaram esta região num melting pot e é difícil definir um prato típico) — no restaurante na recepção do parque. Rústico como o que nos rodeia, com esplanada de mesas e bancos corridos de madeira e vista para a floresta, a brilhar agora sob o sol que teimou em brincar às escondidas toda a manhã. Bom cenário para desfrutar o primeiro vinho quente da temporada. Há nova caminhada, à tarde.
Ginsberger Heide
Florestas encantadas e castelos que forjaram dinastias
Parece ser o centro nevrálgico deste planalto de Ginsberger Heide, no sul do novíssimo Parque Natural de Sauerland-Rothaargebirge que em 2015 foi criado unindo três parques, incluindo o Parque Natural Rothaargebirge a que esta região pertencia, para constituir-se como o segundo maior da Alemanha. Um hotel-restaurante que leva o nome da zona, Ginsberger Heide, perto de Hilchenbach, e ponto de partida para nada senão densas florestas que, graças à humidade e chuva, apresentam-se com uma variedade imensa de fauna e flora — há, por exemplo, mais de 20 espécies de fetos, “que na Nova Zelândia são árvores”, sublinha Birgitte, a guia, e borboletas, insectos e aves muito particulares. Entre carvalhos e abetos, com os arbustos, os musgos, a luz que mal consegue penetrar a folhagem ainda a vestir as árvores mas também já a forrar os caminhos — e voltamos à infância, tentando fazer estalar as folhas secas (missão impossível, devido à humidade) — parece que estamos em territórios mágicos, onde elfos e duendes podem materializar-se perante nós a qualquer momento. Não é por acaso que o hotel, entre os muitos pacotes que oferece para explorar a área, tenha um que se chama “Seguindo os passos de bruxas, ervas e donzelas da Idade Média”: é fácil imaginar mulheres sábias a escolherem criteriosamente as ervas para fazer as suas “poções” ou a fazerem rituais e conjuração das forças naturais; também não é difícil imaginar caças às bruxas e punições às hereges.
Mas antes da caminhada, que nos levará a um castelo quase em ruínas donde houve Holanda independente de Espanha (já lá iremos), onde, por coincidência de calendário (é 31 de Outubro), encontramos um grupo de crianças a celebrar o dia das bruxas, embarcamos noutra sugestão do hotel. Recuamos no tempo e, ao mesmo tempo, entramos no estereótipo rural alemão: numa carroça coberta puxada por dois pachorrentos cavalos (de sangue-frio, mais fortes que os outros), sentados ao longo de uma mesa onde se servem licores e cervejas, percorremos a área de Ginsberger Heide e da floresta adjacente. A nossa guia ainda torna tudo mais típico quando ensaia algumas das canções tradicionais que costumam acompanhar os trabalhos no campo. Pelo meio, vai-nos contando como, depois da queda do muro de Berlim, se tentou construir aqui um caminho-de-ferro para Leste (ia diminuir bastante o tempo de ligação até Siegen, por exemplo, que leva uma hora por estrada, “mas a que preço?”, interroga-se), “contudo, os ambientalistas venceram e manteve-se o parque”. Aqui, nas montanhas de Rothaargebirge nascem três rios, incluindo o Sieg (que dá nome à cidade de Siegen) que corre até ao Reno, e os lagos são incontáveis, por isso a pesca é muito popular e o peixe parte das tradições gastronómicas de Natal e Ano Novo: truta fresca é indispensável. Mas as actividades mais procuradas são mesmo as caminhadas (há 3500 trilhos) e a BTT (ou não, as ciclovias são muitas). No Inverno, se o clima é generoso — ou seja, se neva —, os esquis saem do armário. Já estamos novamente na órbita do hotel e o que miramos como apenas uma colina não muito alta (ainda que com inclinação razoável) coberta de erva, quando neva torna-se pista de esqui que desemboca num grande prado. Também se pratica esqui cross country e os trenós são uma constante.
Ou não fosse esta uma zona muito procurada pelas famílias. Os cascos dos cavalos pisam o alcatrão por alguns minutos enquanto contornamos o enorme prado que anualmente, seis semanas após a Páscoa, recebe o festival KulturPur. E onde no 1.º de Maio as famílias se reúnem, numa tradição que é uma espécie de regresso às raízes.
Pomos os pés a caminho até ao castelo de Ginsburg embrenhando-nos irremediavelmente na floresta escura, húmida e fria mesmo num dia soalheiro. O cenário é primevo e encantatório, difícil de conceber que já foi zona bélica, fronteira entre os territórios dos condes de Nassau, de Wittgenstein e do Eleitorado de Colónia. Foi por este acidente geopolítico e para proteger a rota do ferro que os Nassau construíram o castelo. E foi daqui que aquele que viria a ser Guilherme I, nascido conde de Nassau, tornado príncipe de Orange e fundador da dinastia Orange-Nassau, planeou a libertação da Holanda do domínio espanhol (a família real holandesa descende deste nobre que nasceu na Alemanha para se tornar um herói holandês — o hino do país chama-se, precisamente, Wilhelmus van Nassouwe): a história destes tempos turbulentos é revista, superficialmente, na única sala aberta da torre. A visão do castelo é desanimadora: as ruínas estão “afundadas” e o que se vê, uma torre, é uma construção de 1968 despojada de qualquer estética. Na verdade, os edifícios a seus pés, sob o controlo da Associação para a Preservação de Ginsburg, são muito mais pitorescos — e hoje essa área está povoada de crianças mascaradas a celebrar o Halloween. O que vale no castelo é a vista do cimo da torre, chamada de Guilherme: o cenário parece multiplicar-se, como num jogo de espelhos, em mil montanhas cobertas de floresta até onde o horizonte termina. A paisagem pareceria parada no tempo não fossem as eólicas que se alinham nas cristas das montanhas, onde há milénios passava a “estrada do ferro”. É um autêntico ninho de águias e os celtas foram os primeiros a descobri-lo. Daqui de cima, as palavras de Goethe, recordadas por Birgitte noutro contexto, ecoam apropriadas — parafraseando: o homem precisa de duas coisas na vida, raízes e asas.
GUIA PRÁTICO
Como ir
Os aeroportos mais perto da região de Siegen-Wittgenstein são os de Colónia e de Frankfurt, este último o mais acessível a partir de Portugal, o único que tem voos directos. A partir daí, a viagem demora 1h30 minutos por carro.
A TAP voa para Frankfurt a partir de Lisboa com preços desde 160€; do Porto é necessário escala na capital (desde 182€).
A Fugas viajou na Lufthansa, que também voa apenas directamente para Frankfurt: a partir de Lisboa os preços começam nos 200€; do Porto, 300€.
Onde ficar
Uma boa base para explorar a região é Bad Laasphe. A Fugas ficou no Landhotel Doerr, em Feudingen.
Landhotel Doerr
Sieg-Lahn-Strasse 8-10
57334 Bad Laasphe – Feudingen
www.landhotel-doerr.de
Lahntal-Hotel
Sieg-Lahn-Strassee 23
57334 Bad Laasphe-Feudingen
www.lahntalhotel.de
Hotel Relais Chateaux Jagdhof Glashütte
Glashütter Strasse 20
57334 Bad Laasphe-Glashütte
www.jagdhof-glashuette.de
Onde comer
Rôtisserie Jagdhofstuben
Glashütter Strasse 20
57334 Bad Laasphe-Glashütte
www.jagdhof-glashuette.de
Bison Hut
Weidiger forma 100
57319 Bad Berleburg
www.wisenthuette.de
A Fugas viajou a convite do Turismo Alemão