Fugas - Viagens

De mão dada com os amantes

Por Sousa Ribeiro (texto e fotos)

Rainha da arte mudéjar e reconhecida pela UNESCO, Teruel, capital de província menos povoada de Espanha, é uma cidade que inspira lendas e acolhe uma das mais belas histórias de amor, a de Diego e Isabel.

Um casal caminha de mãos dadas, subindo as escadas parcialmente banhadas pelos raios tímidos do sol matinal. Junto à fonte, carregada de sombra, detém-se e, indiferente a quem apressa o passo, prolonga abraços e beijos que prometem eternizar-se. Desvio o olhar da Escalinata de los Amantes, o resumo perfeito da imagem de Teruel, e dirijo-o para uma paragem onde está estacionado um autocarro cujo vidro traseiro publicita as novas instalações do “tanatório funerária Amantes”.

Em Teruel, cidade do amor, tudo está intimamente ligado à paixão, aos amantes, muitos são os espanhóis (mas nem só) que a procuram no dia de São Valentim ou num outro qualquer do ano, para uma escapada romântica — porque visitar Teruel, para quem namora, é algo que tem de se fazer pelo menos uma vez na vida.

Por isso, era uma vez, há muito tempo, num lugar remoto do interior de Espanha...

- Teruel? También existe!

Pronuncie o nome e verá como tem grandes hipóteses de ouvir esta resposta, na região de Aragão e em muitas mais, mesmo distantes desta acolhedora cidade que também é famosa por, segundo a lenda, ter inventado a sopa de alho para curar Jaime I, o conquistador, de uma doença estranha. Teruel, com pouco mais de 35 mil habitantes, é a capital da província menos povoada de Espanha (desde 1950 perdeu mais de 100 mil residentes) e carece das infra-estruturas que caracterizam todas as outras, alegadamente por via de um esquecimento institucional que se arrasta há décadas.

Mas también existe.

Era uma vez...

Isabel de Segura e Diego de Marcilla apaixonaram-se ainda jovens, quase sem darem por isso, porque, na sua puerilidade, ao jogo das brincadeiras permitiram que se sucedesse o jogo do amor. Estávamos no século XIII.

Diego de Marcilla era um dos três filhos de Constanza Pérez Tízón e de don Martin de Marcilla, descendente de don Blasco de Marcilla, um proeminente capitão que, em 1171, com a permissão do rei Alfonso II, conquistou a então vila de Teruel aos muçulmanos. A família, muito respeitada (Martin de Marcilla foi juiz da comarca durante dois anos), era proprietária de uma grande fazenda — mas no espaço de pouco tempo viu-se arruinada por via de uma praga que assolou a região.

Os Marcilla viviam a meio da rua que é hoje a Calle de los Amantes e, apenas a uma dúzia de passos, num edifício conhecido como Sindicatos, abrigava-se a família de don Pedro de Segura, de menos linhagem e nobreza mas colocando no comércio tanta energia e tanta dedicação que não tardou a prosperar ao ponto de se tornar numa das mais ricas de Teruel.

Quando, após muitos anos de amizade, Diego de Marcilla, apaixonado e correspondido no amor por Isabel de Segura, decidiu pedir a sua mão ao pai, don Pedro de Segura, depois de reflectir um pouco, dando prioridade aos materialismos e ignorando os sentimentos, recusou a proposta do jovem.

O regresso do soldado

Consta que era a Primavera de 1212.

Resignado, Diego de Marcilla viu na guerra, lutando contra os infiéis, a possibilidade de enriquecer. Antes ainda de se dirigir a Saragoça, para se alistar no exército do rei de Aragão, Pedro II, prometeu a Isabel de Segura voltar exactamente cinco anos mais tarde.

O tempo foi passando.

Isabel de Segura aceitara o pacto mas a insistência do pai para que casasse com um ilustre e — mais importante ainda — rico homem de Teruel, don Pedro de Azagra, fê-la ceder, embora impondo como condição que não o faria antes que se esgotasse o prazo.

A jovem, de coração destroçado, ia escutando os relatos das gentes que vinham de Castela e que nada sabiam de Diego de Marcilla. Até que um dia alguém lhe deu a notícia de que este havia morrido em combate e, precisamente quando se completavam cinco anos desde a sua promessa, Isabel de Segura, resignada à sua sorte, decidiu casar-se com o homem que o pai escolhera.

Dizem que já passava do meio-dia.

Diego de Marcilla, montado no seu cavalo, carregando saudade, paixão e riqueza, subia a encosta de Andaquilla e, uma vez flanqueada a porta de Daroca, dirigiu-se à rua onde morava a sua amada, ouvindo um rumor que se ia exacerbando à medida que se aproximava da casa dos Segura. Escutando a notícia de uns jovens que por ali andavam, Diego de Marcilla quis certificar-se, insinuando-se por entre os convidados; Isabel de Segura, vendo o seu rosto entre a multidão, desmaiou e foi conduzida aos seus aposentos. O jovem apenas queria um último beijo e conseguiu entrar no quarto da noiva — mas esse desejo foi recusado por Isabel de Segura que, já recomposta, argumentou com o facto de ser uma mulher casada.

Passeio pela Calle de los Amantes e procuro imaginar a história.

Diego de Marcilla morreu nesse mesmo instante e só umas horas mais tarde, quando todos os convidados haviam partido, o marido de Isabel de Segura se prontificou a carregar o cadáver, deixando-o próximo da casa onde vivia a família, como se de um bêbado se tratasse, incapaz de chegar ao seu destino. 

Don Martin de Marcilla organizou o funeral na igreja de San Pedro e ali, sobre um cadafalso, ficou exposto o corpo do filho. Angustiada e cheia de remorsos, Isabel de Segura, com um manto que lhe cobria a cara, juntou-se ao cortejo fúnebre e, já no interior da igreja, atravessou em silêncio a nave para dar um beijo prolongado nos lábios do seu amado, o beijo que lhe recusara em vida.

E assim ficou, com a boca colada. Muitos julgaram-na desmaiada mas quando a tentaram retirar, permitindo que outros se despedissem de Diego de Marcilla, perceberam que estava morta — e logo depois, uma vez destapada a cara, que se tratava de Isabel de Segura.

Eternamente juntos

Uma neblina pouco espessa abate-se sobre a cidade ainda embrenhada no seu silêncio matinal e confere-lhe uma atmosfera misteriosa. Gosto de errar pelas suas ruas desertas, sem um percurso ou um destino definidos, limitando-me a aguardar o seu lento despertar. Aos poucos, abre-se como uma janela e convida o viandante a perscrutar a sua profunda relação com o amor, com o casal de amantes, de tal forma lhes está associada, em cada rua, em cada esquina, em cada beco, em múltiplos espaços comerciais. A poucos metros da praça que funciona como o coração da cidade, transpondo uma subida pouco pronunciada, encontro o Mausoleo de los Amantes, já com dois casais aguardando a abertura das portas ao lado da estátua de Diego e Isabel.

Não se sabe por ordem de quem, talvez de um familiar, mas os jovens foram enterrados juntos na mesma sepultura, na capela de San Cosme e San Damián da igreja de San Pedro, onde foram descobertos em 1555. Durante 23 anos, estiveram expostos ao público mas de novo foram enterrados por ordem do bispo e logo desenterrados por decisão do notário Yague de Salas, que redigiu um documento determinante para perpetuar esta história de amor.

O interior do mausoléu, inaugurado em 2005, impressiona e é um apelo constante ao amor: num sector fala-se do amor nos tempos difíceis, profundamente marcado pelo carácter político, social e cultural em que estava mergulhada Teruel nos primeiros anos do século XIII; noutro, da história dos amantes, noutro ainda, neste fenómeno que inspirou o mundo das artes — da literatura, do teatro, da pintura, da música e da escultura.

A morte de Isabel de Segura e  Diego de Marcilla foi ainda mais turbulenta do que a vida: de armário para panteão, de capela para sala de claustros, passando pelo sótão durante a Guerra Civil. Uma morte sem descanso até que, por fim, Juan de Ávalos, de visita a Teruel, horrorizado com o que viu, decidiu construir e oferecer o mausoléu em bronze e alabastro onde repousam hoje os corpos, sem que as mãos se toquem, como manifestação simbólica de um amor que nunca chegou a materializar-se.

Torres, torreões e touros

A igreja e a torre de San Pedro, a mais antiga das torres mudéjares turolenses (século XIII), tocam-se e dominam a Plaza de los Amantes, em contraste com o mausoléu modernista. Para um lado e para outro, duas torres, acompanhadas das igrejas homónimas, recortam-se contra o céu vestido de azul: a de San Martin e a del Salvador,  também associadas a uma lenda envolta num triângulo, com um final trágico e no contexto de uma cidade profundamente cicatrizada pela guerra.

No século XII, as tropas de Alfonso II invadem a província e conquistam, de forma gradual, cada vila. Mas, em Teruel, os muçulmanos são autorizados a permanecer (no início do século XVI foram obrigados a converter-se ao cristianismo e na mesma altura a última mesquita foi transformada em igreja) e a sua arte mudéjar é preservada. Omar e Abdullah, arquitectos a quem pediram a construção de duas torres, disputam Zoraida, proprietária de uma beleza sem paralelo. Um e outro, quase em simultâneo, pediram a mão ao pai e, este, percebendo que Zoraida tinha estima por ambos, definiu que o feliz contemplado seria o primeiro a terminar a obra. Omar e Abdullah trabalharam noite e dia,  o primeiro na de San Martin, o segundo na de El Salvador, tapando uma e outra com andaimes de forma a ocultarem a evolução que se ia registando. Omar foi o primeiro a concluir os trabalhos e o povo saiu à rua para admirar a elegância da estrutura; mas no mesmo momento Omar, vendo que a torre estava (ainda está) ligeiramente inclinada, lançou um grito e correu até ao topo, de onde se atirou para o vazio, preferindo a morte a uma vida sem amor e sem honra.

De volta à realidade, as duas torres são dos monumentos que mais turistas atraem a Teruel e integram o conjunto monumental mudéjar reconhecido desde 1986 pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade. Se a história e os números não mentem, a torre de San Martin foi terminada em 1316, há precisamente 700 anos, mas objecto de uma importante renovação, dirigida pelo conceituado Pierres Vedel, entre 1549 e 1551 — e uma vez mais já neste século, sob a responsabilidade de José María Sanz.

A torre de El Salvador, também restaurada pelo mesmo arquitecto, é um exemplo mais tardio do mudéjar turolense. Existem documentos assinados pelo bispo de Saragoça, de 1277, em que este autoriza a recolha de fundos para a igreja e o campanário, mas a torre está datada da segunda ou terceira décadas do século XIV. Tanto na sua estrutura como na arte decorativa, a torre é muito similar à de San Martin, com a diferença de que apresenta mais detalhes no seu exterior, bem como uma abóbada em cruzaria na passagem sob a mesma.

Não muito distante, um conjunto de grande complexidade, com oito séculos de existência: a bonita catedral de Santa Maria de Mediavilla, com o seu campanário mudéjar (1257-1258), o soberbo tecto em madeira decorado com elementos vegetais estilizados, geométricos e epigráficos de tradição islâmica, bem como o zimbório, assinado por Martín de Montalbán, também reconhecidos pela UNESCO já lá vão 30 anos.

À medida que a manhã avança, vai aumentando o número de turistas nas ruas até agora silenciosas. Passando sob a torre da catedral, desaguo na elegante Plaza Fray Anselmo Polanco, que acolhe a Casa de la Comunidad, agora transformada em Museo Provincial, e o Palacio de los Marqueses de Tosos; mais para lá, o Portal de San Miguel o La Traición (um dos dois sobreviventes — o outro é o de Daroca, associado à história dos amantes — da antiga cidade fortificada), e a muralha medieval (conserva ainda alguns torreões, entre eles o de Ambeles, com a sua planta em forma de estrela), de onde a vista se perde no horizonte antes de se fixar no Acueducto-viaducto de los Arcos, uma construção iniciada em 1537 (a obra mais emblemática de Pierres Vedel) para trazer a água desde a Peña del Macho, situada a quatro quilómetros, até à cidade.

Até essa altura, a recolha da água fazia-se através das cisternas medievais (duas delas abertas ao público) situadas no subsolo da Plaza Carlos Castel, na altura a Plaza del Mercado e nos dias de hoje vulgarmente conhecida como Plaza del Torico, onde agora me encontro, fitando o pequeno bovino que encima uma coluna e se projecta contra as casas de cores múltiplas perfiladas sobre arcadas que testemunham um passado glorioso. Todos os anos, em Julho, a praça acolhe uma multidão em clima festivo para viver intensamente a Vaquilla de Santo Ángel, o patrono da cidade, com largadas de touros, bailes, cortejos e o momento mais esperado, quando um vaqueiro coloca, com a ajuda da sua peña, um pano vermelho sobre o torico. Aquela que é considerada a festa mais popular de Teruel e que consagra a fundação da cidade, encerra, também ela, uma lenda que se perde na noite dos tempos: durante a Reconquista, e já depois de haver conquistado algumas praças importantes, Alfonso II dividiu o seu exército, levando com ele soldados para combater rebeldes nas montanhas de Prades e deixando outro grupo em Cella, próximo de Teruel, na defensiva. Desobedecendo ao soberano, as tropas seguiram um touro bravo que era acompanhado por uma estrela no firmamento, um touro que haviam visto em sonhos premonitórios e que era um sinal para estabelecer uma nova povoação. E assim se lançaram ao assalto da fortaleza, plantando o estandarte na praça conquistada.

Nascia a cidade do amor, dos amantes e das lendas.

Mas Teruel también existe

GUIA PRÁTICO

Como ir

Teruel tem um aeroporto, a poucos quilómetros do centro da cidade, mas destinado apenas a manutenção e carga. Para quem prefere utilizar transporte aéreo, a melhor forma para chegar a esta urbe da região de Aragão passa por  Valência ou Saragoça. A TAP viaja entre Lisboa e Valência (voos operados pela Portugália) por pouco mais de 200 euros (ida e volta). Há comboios desde Valencia e desde Saragoça (mais ou menos três horas e preços entre os 15 e os 20 euros por trajecto), bem como autocarros (se utilizar os directos pode chegar a Teruel em apenas duas horas), com tarifas mais baratas.

Quando ir

Teruel goza de um clima mediterrâneo continental montanhoso, com temperaturas agradáveis no Verão, mas com grande variação ao longo do dia (a média flutua entre os 20 e os 25 graus mas os termómetros também se podem aproximar dos 40). No Inverno, pode contar com dias frios (por vezes com mínimas de dez graus negativos) mas, ao contrário do que sucede um pouco em todo o país, com escassa precipitação, mais acentuada no final da Primavera. Uma das melhores alturas para visitar a cidade é durante o mês de Fevereiro (Páscoa também é uma opção a ter em conta), que coincide com as festividades das Bodas de Isabel de Segura (este ano entre 18 e 21), quando a cidade revive a tragédia dos amantes e as suas ruas recriam a atmosfera medieval da época. As festas de Santo Ángel têm lugar, este ano, entre 1 e 11 de Julho (os dias mais importantes são 9 e 10); Setembro recebe também a Festa do Presunto.

Onde comer

Um dos melhores restaurantes em Teruel, com uma comida tradicional acompanhada de um toque de modernidade, é o Yain (www.yain.es), na Plaza de la Judería, 9. Yain é uma palavra hebraica que significa vinho e o espaço contempla, de facto, uma boa garrafeira, situada sete metros abaixo da cota do solo, numa antiga adega judaica do século XIV e gerida pelo conceituado sommelier espanhol Raúl Igual, com participações em campeonatos da Europa e do Mundo na especialidade e uma experiência de dois anos no famoso El Bulli. Contando apenas com 30 lugares, o Yain, encerrado às segundas e também aos domingos e terças à noite, proporciona menus a preços acessíveis (17 euros durante a semana e 23 aos fins-de-semana).

Caso tenha dificuldade em reservar, experimente o Rufino (www.rufinorestaurante.com), na Ronda Ambeles, 36, com pratos saborosos, um serviço excelente que revela paixão pelo trabalho e uma atmosfera acolhedora. Todos os anos, em Fevereiro, o Rufino (fechado às segundas e aos domingos para jantares) organiza as Jornadas Gastronómicas da Trufa Negra de Teruel (a trufa está presente em muitos do pratos da carta, tanto em mariscos como em carnes). 

Onde dormir

Se desejar um pouco de luxo (duplos entre os 80 e os 115 euros), recomenda-se o Parador de Teruel, localizado na Carretera Sagunto-Burgos (N-234), ao km 122,5, a menos de cinco minutos do centro. Trata-se de uma mansão cuja construção foi fortemente influenciada pelo estilo mudéjar, com quartos espaçosos em tons de pastel, um restaurante que serve algumas das delícias tradicionais e um amplo jardim com piscina e campos de ténis. Teruel oferece uma vasta gama de alojamentos, para todos os preços e gostos, mas se viajar com um orçamento reduzido uma das melhores opções (duplos a partir de 30 euros) passa pelo Hostal Serruchi (www.hostalserruchi.es), na calle Ollerias del Calvario, 4, no Bairro del Arrabal, a dez minutos do centro histórico.

A visitar

Se viajar com crianças, aconselha-se vivamente uma visita ao Territorio Dinópolis (www.parquesocioaragon.es), um parque paleontológico que é o mais extenso de toda a Europa e proporciona distintas actividades para todas as idades, tanto na sua sede principal, próxima do centro de Teruel, como noutras localidades vizinhas, como Riodeva (tem uma réplica do maior dinossauro da Europa) ou Galve (com uma reprodução de uma família de Aragosaurus de tamanho natural).

Informações

Os cidadãos portugueses apenas necessitam de um documento de identificação (passaporte, cartão de cidadão ou bilhete de identidade) para visitar o país.

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