Não é todos os dias que os ecrãs de informação de um aeroporto anunciam um voo com partida e chegada nesse mesmo aeroporto. O nosso voo, precisamente - lá estava, nas partidas, às 20h30, o voo EZY800 sairia de Gatwick para chegar às 00h30 a Gatwick, pois claro.
O nosso bilhete, porém, oferecia um pormenor extra omitido nesse ecrã mas que permitia muitos mais voos da imaginação: partida de Gatwick, destino The Northern Lights, a aurora borealis. A viagem de uma vida? Para muitos ver uma aurora boreal, as luzes do Norte, é-o. Esta, porém, assumimo-lo, não foi, pelo menos para nós; foi antes um espreitar da aurora boreal que para muitos viciados em listas de desejos pode servir para marcar um feito, visto.
Para nós foi uma espécie de aperitivo que veio reforçar a viagem de sonho, que continua adiada. Até porque a intenção nem era proporcionar uma viagem de sonho, antes uma experiência inesquecível de assistir à aurora boreal a bordo de uma avião a 38 mil pés de altitude, qualquer coisa como 11,5 quilómetros – tudo pela mão ou nas asas da easyJet, que celebrou o 20.º aniversário em 2015 e ainda não parou de comemorar.
Chegámos então a Londres – figurativamente, porque nunca saímos de Gatwick – como caçadores de tesouros, em perseguição de uma maravilha natural bastante elusiva que testa a paciência de quem a busca. Nós não tínhamos tempo para paciência: as auroras boreais são caprichosas, fugidias, não têm dia nem hora marcada para aparecer (que elas surjam numa noite escolhida é uma aposta arriscada), nós sim.
Claro que a marcação da viagem não foi à toa, elas são associadas ao Inverno, embora na realidade aconteçam durante todo o ano, em latitudes bem setentrionais, como aquelas pelas quais a nossa viagem que nos levou pela Escócia até às ilhas Shetland, no Atlântico Norte, que deveriam ser o nosso destino final (o Norte da Escócia está à mesma latitude da ilha Nunivak, no Alasca, e Stavenger, na Noruega, destinos mais óbvios para observar o fenómeno), mas acabamos a orbitar no espaço aéreo das ilhas Féroé (Dinamarca). Cortesia do comandante foi o sobrevoo de Londres - escapou-nos o Big Ben e o London Eye, que, asseguraram-nos, foram bem visíveis - e Edimburgo.
O que é necessário é que o céu esteja bem negro, para que sejam, então, visíveis as auroras boreais, por isso os meses frios são os que oferecem mais garantias - 9 de Fevereiro foi o eleito e durante o dia todos se interrogavam sobre se a “diva” faria ou não uma aparição e se a noite seria condescendente, apresentando-se seca, como um palco limpo de nebulosidade. Nós, que até havíamos chegado no dia anterior, preparávamos as piadas para o caso de da aurora não vermos nem rasto: quase vimos a aurora, quase vimos Londres. Seria a viagem do quase - excepto que não foi.
Sim, a incerteza rodeava toda a extravagância, contudo, alguns dos responsáveis por ela foram avançando previsões mais ou menos optimistas. “O céu [na Escócia] está limpo, pelo menos”, foi a frase mais repetida. Mas mesmo na presença do astrónomo que nos acompanhou na demanda pelo Santo Graal natural a incerteza se dissipou totalmente.
Por esta altura já tínhamos cumprido parte do programa associada a esta viagem - jantar num novo restaurante do Terminal Sul do aeroporto de Gatwick, o Grain Store, cujo chef, Bruno Loubet, ostenta uma estrela Michelin - e estávamos num lounge do aeroporto onde Seb Jay, da Dark Sky Telescope Hire (empresa turística especializada em observação de estrelas), nos deu uma breve introdução ao fenómeno da aurora borealis e afirmou que tínhamos “uma hipótese razoável” de a ver, já que as condições estavam “favoráveis”.
Se chegássemos a 400 milhas (643 quilómetros) desta, adiantou, “com sorte” veríamos “irradiações de cor verde”; se conseguíssemos aproximar-nos mais, 200 milhas, o lilás e o amarelo, por exemplo, também fariam parte da paleta colorida. “De acordo com as previsões de actividade solar e electromagnética, o que devemos ter são as 400 milhas”, concluiu, mantendo as expectativas controladas - ou seja, no máximo o avistamento de um “brilho verde homogéneo”. “É só o que vos posso dizer, será uma aventura tanto para mim como para vocês”, explicou perante uma plateia mais ou menos atenta, constituída por 80 convidados, entre imprensa e outros parceiros estratégicos da companhia de aviação, à qual não se permitiam copos vazios.
Quando embarcámos no novíssimo Airbus A320 da companhia, apresentado também no âmbito da celebração dos 20 anos e reservado para este voo privado, já tínhamos tido, então, um curso rápido em auroras boreais - Aurora, deusa romana do amanhecer; Boreas, vento norte na mitologia grega. Quase ironicamente, apesar de este ser um fenómeno que se dá melhor com a lua (que é como quem diz, com a noite), é no sol que nasce.
E de forma violenta, uma vez que a superfície deste é um caldeirão de turbulência ininterrupta, onde se “cozinham” partículas de carga eléctrica que, dependendo das condições “meteorológicas” do sol são lançadas no espaço em alta velocidade (vento solar) e podem ser capturadas pelo campo magnético da Terra. Ao colidir com as partículas de ar mais elevadas dá-se a “magia” das luzes: o verde-amarelado vem do encontro com o oxigénio, o vermelho do oxigénio com um pouco de nitrogénio, o violeta com o nitrogénio. Nós aventurámo-nos numa terça-feira e na sexta-feira anterior uma ejecção de massa coronal (CME, no seu acrónimo inglês), uma espécie de bala em que a matéria concentrada (partículas magnetizadas) é lançada numa única direcção, tinha ocorrido. Demora três dias a chegar à Terra: a ideia é que veríamos os seus efeitos.
Demorámos pouco mais de hora e meia (preenchidas com “discos pedidos” a um guitarrista que acompanhou a viagem) até chegarmos à zona em que as luzes no interior do avião se apagaram e o comandante começou a andar em círculos - habemus aurora!, dizia o astrónomo.
À vez, ao lado esquerdo e ao lado direito do avião era a possibilidade de se maravilhar com as luzes (estavam para “os lados da Islândia”) e nós um pouco à toa: vemos partes, nunca ao nosso lado, para a frente ou para trás, onde a noite está um pouco iluminada, mais clara, de um verde-amarelado muito, muito pálido.
Confessamos que a olho nu não vimos as cores saturadas que associamos às auroras boreais e que as fotografias revelariam. Até as nossas: fez parte da preparação, com direito a cábula e tudo, como operar as máquinas e smartphones para a experiência. Nós seguimos à risca (a abertura máxima, o ISO 800, 1600 e mais elevado, a exposição prolongada, o foco para o infinito), depois improvisámos um pouco, e, sim, o ecrã da máquina revelaria algo que não víamos sem este intermediário: o verde intenso a pintar o negro da noite estrelada, abrindo caminhos imprevisíveis na escuridão, ainda que sem grandes proezas dançantes.
Quando o nosso lado ficava na sombra da aurora, revelava-se a noite límpida e estrelada típica dos meses frios. Sentíamos que as estrelas estavam ali à mão - e não mortas há milhões de anos.
A constelação de Oríon andava a espreitar, Júpiter também não faltou à chamada, Sirius foi mesmo a estrela mais brilhante e a Via Láctea deixava-se espreitar. Não nos levem a mal se confessarmos que isto foi o que ouvimos de Seb Jay, incansável a apontar-nos o cosmos, sem conseguirmos realmente discernir nada. E, na verdade, pouco importava, porque quando conseguíamos abstrair-nos do que nos rodeava, era como se estivéssemos sozinhos, hipnotizados pelas estrelas lá fora, sem precisar de saber nada.
Apenas sentir que estávamos numa cápsula espacial, enquanto na nossa cabeça, em loop, ouvíamos this is ground control to Major Tom, a Space Oddity de David Bowie a acompanhar-nos. E esta foi, realmente, uma viagem singular, uma excentricidade não espacial, mas aérea, pelo menos - com a bênção da natureza, na orla da Terra.
A Fugas viajou a convite da easyJet
GUIA PRÁTICO
Onde ver a aurora boreal
Não há que enganar: no que às auroras boreais diz respeito, o rumo é mesmo ao Norte. Quanto mais perto do Árctico, melhor. Deixamos algumas sugestões. Na Gronelândia e Islândia, todo o território é bom para as ver, é tudo uma questão de acessibilidades; na Noruega, Svalbarb e Tromsø; na Finlândia, Nellim e Kakslauttanen; na Suécia, a Lapónia e a região de Kiruna; na Dinamarca, ilhas Feroé; na Escócia, o norte das Terras Altas e as ilhas Shetland e Skye; no Canadá, o Território do Yukon; no Alasca, também o Yukon e o Parque Nacional e Reserva de Denali; na Rússia, a Sibéria e a Península de Kola.
De qualquer forma, e apesar de a aurora boreal não ir desaparecer, o facto de elas acontecerem num ciclo solar de 11 anos faz com que nos próximos anos as suas manifestações sejam menos frequentes e intensas. Esse período durará até 2024-2026 – mas até final de Março ainda estão no seu apogeu.