Fugas - Viagens

  • Sonia e German beijam-se após a troca de rosa e livro no dia de Sant Jordi em Barcelona
    Sonia e German beijam-se após a troca de rosa e livro no dia de Sant Jordi em Barcelona REUTERS/Gustau Nacarino
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São Jorge em Barcelona: São livros e são rosas

Por Sousa Ribeiro

Em Barcelona encontrou a UNESCO inspiração para criar o Dia Mundial do Livro e na capital catalã o dia do santo padroeiro é uma fonte inesgotável de romance, de alegria e felicidade em que se sente mais do que nunca a forte identidade e orgulho das suas gentes.

Ana Hernandez Martin estava triste nessa manhã em que as nuvens, como carneiros voando sob um céu parcialmente pintado de azul, ameaçavam Barcelona, tocando-lhe de leve, como se a desejassem acariciar. El Born permanece silente e Ana Hernandez Martin, caminhando com passos lentos, não quebra esse silêncio, como se entre ela e aquele emaranhado de casas, caindo sobre as ruas e vielas e mergulhando-as numa semipenumbra, existisse um pacto de cumplicidade.

Os seus olhos, de um verde quase sempre resplandecente, estão agora envoltos numa névoa, sem brilho, sem expressão.

Ainda é muito cedo, Barcelona teima em não despertar, pelo menos neste bairro que, ainda que por breves instantes, evoca um outro tempo, os primeiros anos da década de 1990, quando era cenário de bares e restaurantes decadentes, tão em contraste com os espaços coloridos e vibrantes dos dias de hoje, uma simbiose perfeita, tão cosmopolita como heterodoxa na magnificência de um palco saído da Idade Média. 

Ana Hernandez Martin ainda não recebeu uma rosa. Porque o sol só agora se levanta mas também porque, contrariando expectativas que se misturam em forma de sonhos, o fim chega quase sempre sem se anunciar.

Hoje é Diada de Sant Jordi.

Uma relação de sete anos, que sugeria, na puerilidade dos sentimentos, uma ligação capaz de resistir a tudo, mesmo aos silêncios que vão corroendo sem deles termos a percepção, chega ao fim — e tudo se esvai, como a memória, os momentos românticos em que se oferece um livro ou uma rosa, se fazem promessas eternas, os sorrisos que aparentemente nada têm de efémeros, pelo contrário, ameaçam prolongar-se, como fazendo parte de uma receita de amor.

Aos poucos, à medida que as Ramblas se anunciam, a vida começa a fervilhar. Por aqui e por ali, as bandeiras da Catalunha decoram os prédios majestosos, transformando-os num mar de amarelo e vermelho. As bancas estão montadas, correm de um lado e do outro, livros e rosas não tardarão a ser expostos e contemplados por milhares de homens e mulheres.

- Viver, uma única vez que seja, a experiência de um dia de Sant Jordi em Barcelona é de cortar a respiração. Quando acordamos, sentimo-nos invadidos por um sentimento de alegria porque sabemos que este é o dia mais bonito na Catalunha. O ambiente é mágico, todas as ruas (e não apenas no centro mas em muitos bairros da cidade) se enchem de barraquinhas de livros e flores.

À medida que a manhã se esgota, cheia de luz, verifico que Carina Sànchez, com quem conversara na véspera na delegação do turismo, me pintara uma atmosfera isenta de exageros.

- As pessoas caminham, para cima e para baixo, sem pressa, detendo-se nesta e naquela banca, olhando os livros, comprando rosas. Algumas são vendidas por diferentes organizações não governamentais ou por estudantes, neste último caso para suportarem, com a receita, uma parte das suas viagens de finalistas.  

Ao meu lado, Ana Hernandez Martin nada diz, a tudo e a todos dirige olhares indiferentes, como se não fizesse parte deste tempo de felicidade. Respeitando esse silêncio, concentro-me nas palavras, pronunciadas com ênfase, de Carina Sànchez, como se dela tivesse recebido um mapa que agora procuro seguir.

- Os escritores autografam os seus livros aos admiradores. O dia de Sant Jordi é um must para qualquer escritor, seja ele popular ou principiante. E como é agradável ver tantos casais apaixonados, estudantes caminhando sem destino e as crianças surpreendidas com a atmosfera festiva ou mesmo sentir o odor que sai das padarias onde, neste dia, se fabrica o pão de Sant Jordi, feito com queijo e sobrasada.

À minha volta, por todo o lado, confirmo as impressões de Carina Sànchez.

Era uma vez

Sant Jordi (para os catalães) terá nascido entre 275 e 281 a.C., na Grécia, e, seguindo o exemplo do pai, tornou-se soldado e oficial do exército romano às ordens do Imperador Diocleciano — que o mandou executar, transformando Jorge, profundamente crente da religião cristã, num santo e mártir. A data da sua morte situa-se em 303, eventualmente no dia 23 de Abril, figurando hoje como santo padroeiro de países tão distintos como Bulgária, Inglaterra, Geórgia e mesmo a Etiópia, sem excluir cidades como Tomboctu, no Mali, maioritariamente muçulmana, e comunidades autónomas espanholas como a Catalunha e as Ilhas Baleares (mas também em Aragão, entre outras regiões e aldeias).

Nesse dia, as mulheres recebem uma rosa.

Uma lenda, diferentes versões, distintas localizações: pode ser na Turquia, na paisagem lunar da Capadócia, mas o mais importante, para interpretar a história, é que existia um dragão e, associado a ele, um reino que aquele atacava, devorando todos os animais, até não restar um único.

No caso da Catalunha, a história localiza-se na pequena aldeia de Montblanc, uma povoação dentro de muralhas situada a duas horas de carro de Barcelona e que todos os anos organiza o popular festival Setmana Medieval de la llegenda de Sant Jordi, uma réplica da vida na Catalunha durante a Idade Média.

Como já ninguém conseguia satisfazer o apetite insaciável da besta, os habitantes decidiram sacrificar um ser humano como sinal da sua boa vontade, até ao dia negro em que a eleita foi a filha do rei. E no momento em que a princesa encontrou os seus passos a caminho da gruta do dragão, como que gozando de uma visão, deparou-se com um cavaleiro chamado Jorge, rápido a cravar a sua lança no dragão e a matá-lo, para a salvar.

Do sangue desse monstro, já sem vida, conta-se que desabrochou uma flor, uma rosa avermelhada que o cavaleiro ofereceu à princesa.

Em Barcelona, na Catalunha, nas Ilhas Baleares, a tradição tornou-se popular, um cavalheiro continua a oferecer uma rosa a uma mulher como se de uma princesa se tratasse. Na maior parte, são rosas vermelhas (com uma pequena senyera, a bandeira catalã, e a mensagem t’estimo), de acordo com a lenda, mas outras cores enfeitam as bancas, como amarelas (simbolizam amizade), brancas (inocência), laranja (paixão e desejo) ou rosa (felicidade) — porque as rosas oferecem-se também aos amigos e à família e por essa razão são vendidas, todos os anos, mais de seis milhões no dia de Sant Jordi (80% delas importadas), a preços que variam entre os três e os doze euros (e nem os sinais de crise afectaram as vendas, se bem que mais para o final do dia esses valores descem substancialmente).

Nesse dia, e desde 1923, os homens são presenteados com um livro, evocando o desaparecimento de autores de grandes clássicos, como William Shakespeare ou Miguel de Cervantes, tanto um como outro falecidos no dia 23 de Abril (na Catalunha a UNESCO encontrou inspiração para criar o Dia Mundial do Livro). Na verdade, embora tendo desaparecido ambos em 1616, a data da morte do escritor espanhol ocorreu dez dias antes, uma vez que Espanha se guiava pelo calendário gregoriano, enquanto Inglaterra o fazia pelo calendário juliano.

“E, levantando-se, deixou de comer, e tirou a cobertura da primeira imagem, que era a de São Jorge a cavalo, com uma serpente enroscada aos pés, e atravessada pela boca com a lança do santo. A imagem toda parecia um relicário de ouro, como se costuma dizer. Vendo-a, disse D. Quixote:

Este cavaleiro foi um dos melhores andantes que teve a milícia divina: chamou-se D. S. Jorge, e foi, além disso, defensor de donzelas.”

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha e tantos outros livros, a maior parte deles escritos em castelhano ou em catalão, encontram-se por todo o lado, na Rambla, na Rambla de Catalunya, no Passeig de Gracia, estimando-se que o dia de Sant Jordi proporcione vendas na ordem dos 20 milhões de euros, um facto que, não sendo decisivo, terá contribuído para Barcelona integrar a lista da UNESCO das cidades literárias e a rede das cidades criativas, como Edimburgo, Cracóvia, Montevideu, Dublin, Praga ou Ljubljana. 

Sardana e a identidade

Barcelona vive, de facto, um momento especial (não é por acaso que o Ayuntamiento abre as suas portas ao público para visitas, o que apenas acontece três dias durante o ano) mas o dia de Sant Jordi não é considerado feriado — as lojas estão abertas, todos têm de trabalhar mas não há quem não arranje pelo menos uns minutos para comprar uma rosa ou um livro. Quando a tarde avança, são muitos os que rumam à praça Sant Jaume para presenciar a sardana, a tradicional dança catalã, símbolo de orgulho e identidade nacional — e não era por acaso que o ditador Franco via os catalães como um povo arrogante e insolente, proibindo, entre outras coisas, a língua e, entre outras tradições, a sardana (forma-se um círculo que vai aumentando, todos de mãos dadas e braços erguidos, dançando com passos meticulosos e precisos sob a orientação de um líder e, quando a roda se torna demasiado grande, formam-se outras), que capta de forma notável o espírito catalão.

Ana Hernandez Martin sente necessidade de dizer algo, mesmo que não seja essa a sua vontade.

“É um dia muito popular na Catalunha. Para nós, catalães é como o dia de São Valentim.”

A noite acaba de tombar sobre a cidade quando chego ao quarto do hotel. Da rua chegam vozes, as luzes da cidade vão bruxeleando, como num teatro onde as cortinas nunca se fecham. Percorro, por momentos, as páginas de Manual da Escuridão (D. Quixote), de Enrique de Hériz, o grande escritor de Barcelona. “Há qualquer coisa que o acorda em plena noite. Uma angústia, uma necessidade premente de ordem. Está tudo desordenado. Não só a casa, cuja manutenção descurou nestes últimos dias. A vida, também. A luz, o tempo, tudo provém de um lugar diferente do esperado. E, como Victor tardará pouco a verificar, o lugar é tudo. O ponto de partida. Estou aqui e quero chegar ali. Tenho isto pela frente e aquilo atrás. Isto vem antes, aquilo depois.”

De repente, o telemóvel toca. Do outro lado, Ana Hernandez Martin.

- Quando cheguei a casa tinha uma rosa à minha espera.

Não lhe pergunto quem lha ofereceu, nem era necessário, e consigo imaginar que o brilho está de volta aos seus olhos. Regresso ao livro mas não me consigo concentrar. Lembro-me das palavras de Carina Sànchez:

- Quando recebes uma rosa sabes que alguém pensou em ti e que tu és importante para alguém, não importa se estás apaixonado ou não – recebes uma rosa dos amigos, dos familiares, dos colegas de trabalho ou simplesmente dos vizinhos.

GUIA PRÁTICO

Como ir

De Lisboa, tendo como base a segunda quinzena de Abril e não ignorando o facto de adquirir o bilhete com uma certa antecedência — neste caso um mês — a Vueling liga a Barcelona (ida e volta) por aproximadamente 70 euros, um pouco menos (30 euros) do que a TAP, se bem que este preço implique chegar à capital da Catalunha — e partir — a horas que podem não ser as mais convenientes (tarde no primeiro caso e muito cedo no segundo). Do Porto, a opção mais em conta é com a Ryanair, com uma tarifa a rondar os 50 euros. Como alternativa, pode pesquisar também com a Vueling mas, por norma, a companhia aérea espanhola pratica preços um pouco mais caros.

A TAP e a Vueling servem o Terminal 1 e a Ryanair o Terminal 2 e, tanto de um como do outro, há ligações de cinco em cinco minutos até à Praça da Catalunha. Desde o aeroporto, T1, o aerobus funciona entre as 5h30 e as 0h30 (entre as 6h e a 1h desde o T2), enquanto do centro da cidade (a viagem demora pouco mais de 30 minutos e o bilhete custa 5,90 euros) o primeiro para o T1 sai às 5h e o último à 1h05 — às 5h30 e às 0h30 no caso do T2.

Desde Fevereiro, altura em que foi inaugurada a linha L9 Sud, é igualmente possível utilizar o metro para chegar à cidade. No T1, a estação situa-se no interior e, no T2, no exterior, relativamente próxima da estação de comboios, que também efectuam ligações entre as 6h e as 23h, podendo sair em Clot, Passeig de Gracia ou Barcelona Sants, qualquer uma delas servida por metro.

De táxi, espere pagar entre 25 a 30 euros pela corrida entre o aeroporto El Prat e a Praça da Catalunha. 

Quando ir

Barcelona goza de um clima temperado mediterrânico, caracterizado por invernos relativamente húmidos e suaves e verões secos mas com temperaturas amenas (a máxima raramente ultrapassa os 30 graus). As estações do ano em que ocorre maior precipitação são as intermédias, no Outono e na Primavera, mas a capital da Catalunha pode ser visitada em qualquer altura do ano — nunca se sente muito frio ou muito calor e em Abril, por exemplo, dificilmente os termómetros baixam os 10 graus ou superam os 18.

Onde comer

Não faltam em Barcelona bons espaços gastronómicos e o difícil mesmo é escolher. Se aprecia tapas, pode sempre optar pelo Tapaç 24, na Carrer de la Diputació, 269; pelo Lolita Taperia, o sucessor do conceituado Inopia, aberto por Albert Adrià, irmão do famoso chef Ferran, na Carrer de Tamarit, 104. Se preferir ter o mar por perto, recomenda-se o Can Majó, na Carrer del Almiral Aixada, 23, com grande reputação (e merecida) em mariscos.

Onde dormir

Um bom hotel, moderno e beneficiando de óptima localização, na Rambla del Raval, 17-21, é o Barceló Raval, onde um quarto duplo custa 170 euros (mais 27 com pequeno-almoço). Se desejar gozar de uma panorâmica soberba sobre a cidade, pode optar por um dos quartos nos pisos superiores com preços por noite a partir dos 220 euros ou ainda por uma suíte júnior, um aposento com 60 metros quadrados com tarifas diárias a rondar os 270 euros. A um preço mais acessível e igualmente bem localizado, na Passatge de Gutenberg, 7 — rodeado de bares, restaurantes, museus, muito próximo das míticas Ramblas e a poucos metros da estação de metro de Drassanes — o hotel Chic & Basic, foca-se no conforto e inspira-se na Barcelona dos anos 1960, com um conjunto de fotografias que retratam essa época e mesmo um bem conservado Fiat 600 junto à recepção. O hotel (há outros três do mesmo grupo na cidade) dispõe de 85 quartos e cobra cerca de 130 euros por noite, uma quantia que pode baixar para 55 em dias de fraca taxa de ocupação. Para quem viaja com um orçamento reduzido, são múltiplas as ofertas em Barcelona mas uma da mais agradáveis passa pelo 360 Hostel Arts & Culture , na Ronda de Sant Pere, 56, situado nas proximidades da Plaza Catalunya e do Bairro de El Born e onde uma noite, em dormitório, não fica por mais de 25 euros.   

A visitar

A lista de atracções em Barcelona é de tal forma extensa que constitui uma forte ameaça para prender o viajante durante semanas. De qualquer forma, sempre pode dar uma vista de olhos em redor da Sagrada Família, para perceber a evolução dos trabalhos, com conclusão prevista para 2026. No claustro da catedral da cidade, conhecida oficialmente como Catedral de la Santa Creu i Santa Eulàlia e situada na Praça de la Seu, existe uma bonita imagem de Sant Jordi montado a cavalo numa pequena fonte. De qualquer forma, não faltam esculturas do santo e padroeiro espalhadas pela cidade: as mais bonitas encontram-se no Palau de la Generalitat, como a que decora a fachada renascentista, datada de 1860 e realizada pelo artista Andreu Aleu i Teixidor, bem como, no interior do palácio, a capela de Sant Jordi, projectada por Marc Safont entre 1432 e 1434. Olhando com atenção, facilmente se deparará com outras: na porta principal da Casa Ametller, no Passeig de Gràcia, uma obra em pedra com a assinatura de Eusebi Arnau; na Diagonal 395, uma estátua de Sant Jordi, com escudo e espada mas sem cavalo e sem dragão, um trabalho de Joan Rebull, relativamente recente (1977); na esplanada do Parque Montjuic, um trabalho produzido em 1924 por Josep Llimona; finalmente, na Sagrada Família, uma estátua com três metros de altura, em bronze, com a marca de Josep Maria Subirachs, ali erguida para comemorar o 125.º aniversário da colocação da primeira pedra no templo e num lugar que seguiu as instruções de Antoni Gaudi, que desta forma pretendia prestar a sua homenagem ao padroeiro, por quem sentia um grande carinho.

Infomações

Os cidadãos portugueses apenas necessitam de um documento de identificação (bilhete de identidade, cartão de cidadão ou passaporte) para visitar o país. Em Barcelona, a língua dominante é o catalão mas, de uma forma geral e a despeito de uma forte identidade, todos falam castelhano. O Dia de Sant Jordi atrai às Ramblas milhares de curiosos e, pelo menos durante algumas horas, o espaço pode tornar-se demasiado concorrido — como alternativa pode optar por errar pela Praça Sant Jaume ou pela Praça da Catalunya.

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