Ele tinha aquela mania que tudo tinha de estar no sítio. A cama onde nasceu, a masseira do pão, a escudela onde se lavava a louça, as velhas panelas, o cântaro da água, os frascos dos remédios, os santinhos pendurados nas paredes pela mãe, os móveis, as cadeiras. José Maria Ferreira de Castro nasceu numa casa modesta a 24 de Maio de 1898 em Ossela, Oliveira de Azeméis. A casa que quis transformar em museu com tudo no lugar da sua infância para mostrar as origens sem rodeios, sem retoques, sem artifícios. A casa-museu é uma das 34 estações do roteiro literário “Caminhos de Ferreira de Castro” que é inaugurado a 28 de Maio. No ano em que se assinala o centenário da vida literária do autor de Emigrantes, um dos escritores portugueses mais traduzidos no mundo, é possível abraçar os primeiros anos da sua vida precisamente onde tudo aconteceu, em Ossela, ao longo de 34 pontos assinalados com excertos das suas obras criteriosamente seleccionados pelo Centro de Estudos Ferreira de Castro – que ao longo deste ano tem um programa de comemorações dos 100 anos do início da vida literária de um dos nomes maiores da literatura nacional do século XX.
O circuito completo tem 12,89 quilómetros e uma biblioteca em frente à casa-museu que Ferreira de Castro quis construir e oferecer à sua terra em 1973 com o dinheiro ganho em dois prémios literários em França. Deixou mais de 6000 livros e a indicação expressa que dali não sairiam. Deixou mais: ditados escritos à mão na escola primária, o diploma do 2.º grau do ensino primário, o passaporte com que partiu para o Brasil, quadros pintados pela sua segunda mulher, a artista espanhola Elena Muriel. E ainda a sua primeira foto com a seguinte legenda: “Primeira fotografia de Ferreira de Castro. Por ser muito pobre, só aos 17 anos foi fotografado em Belém do Pará”.
O roteiro é um percurso físico e emocional pelo arquivo que Ferreira de Castro fez questão de preservar. Em cada estação, uma paisagem, um edifício, e palavras do escritor que acompanham memórias. Recue-se ao passado, pois então. No rio Caima, e para lá se chegar passa-se por vários campos de cultivo, Ferreira de Castro tomava banho com os colegas nessas águas “frias e azuis” e “entre amieiros sussurrantes”. Com os amigos da escola construiu uma bicicleta de madeira. Fez umas andas que escondia no monte a meio caminho entre casa e escola, adorava apanhar as canas dos foguetes que caíam nos pinhais, ficava danado quando os seus papagaios não subiam tão alto como os que via na praia do Furadouro. No chafariz de Vermoim, brincava com o arco do pipo.
Maria Manuela, 75 anos, mora a dois passos da casa de Ferreira de Castro. Guarda as chaves da casa-museu há 45 anos, é a guia de serviço, e não esquece as visitas de Jorge Amado, José Saramago, Assis Esperança àquela habitação – e de outros políticos como Ramalho Eanes ou Mário Soares. Abre a porta do rés-do-chão para mostrar o lagar e os pipos e para lembrar que antigamente aquele piso era de terra batida. Abre o portão e mostra a placa que assinala que naquele lugar, ao lado da casa, existia um forno a lenha, o curral da cabra e um pombal. E sobe as escadas de pedra para abrir a porta de madeira velha. “Passava aqui horas sentado. Gostava muito de ficar sozinho a pensar”, recorda.
Olha para a floresta e avisa que por ali está uma árvore plantada pelo escritor que adorava a natureza. “Está ali um carvalho que plantou em 1940. Sempre que vinha cá, ia visitar o carvalho.” Chegava e ia dar uma volta à quinta. “E dizia ‘deixem-me estar aqui a meditar’.” A sua vontade era cumprida. Maria Manuela abre a porta que dá para uma pequena cozinha, depois a sala e dois quartos, um deles onde nasceu o escritor. Poucas divisões para tantas histórias. “Está tal e qual como era”, garante Maria Manuela, que chama a atenção para o par de sapatos e a mala com que o escritor pisou o mundo. Assim à vista desarmada, sem redomas de vidro, sem nada que trave o toque. Dentro de uma escrivaninha, o dicionário de capa vermelha de 1881 que levou para o Brasil e algumas fotos de antepassados ainda não identificados. Na cozinha, a louça da mãe. “Está tudo como era na infância dele, até está ali o barril que se usava naquela época para levar a água para o campo”, diz.
Maria Manuela foi escolhida por Ferreira de Castro para fazer de sua mãe num filme que contava a história da sua vida até à partida para o Brasil. Recorda-se de um homem introspectivo, pensativo, de cara fechada. “Não era uma pessoa alegre, tinha um ar triste. Era muito modesto, uma pessoa que não se gabava, tanto falava para um pobre esfarrapado como para um rico.” O ar tornou-se mais alegre depois do 25 de Abril. O escritor estava de regresso a Ossela e Maria Manuela viu-o diferente. “O dia em que o vi mais alegre foi na véspera de lhe dar o ataque.” Era 4 de Junho de 1974, no dia seguinte, na Pensão Suíça, em Macieira de Cambra, Vale de Cambra, onde passava grandes temporadas, o escritor sofre um acidente cardiovascular. Foi transportado para o Hospital de Santo António, no Porto, não recuperou e morreu a 29 de Junho. Foi enterrado em Sintra como era sua vontade.
Terra doce, do coração
Com 12 anos, Ferreira de Castro partiu para o Brasil com lágrimas nos olhos e Margarida, o seu primeiro amor, no peito. A mãe despediu-se da janela com o adeus nas mãos. O pai tinha morrido há quatro anos. Do outro lado do Atlântico, trabalhou no seringal, passou fome, começou a escrever. Jornalista, escritor, homem das letras, viajou pelo mundo. Mas voltava sempre a Ossela, às raízes. Regressou a Portugal aos 21 anos e com 400 escudos no bolso. Passou algumas semanas com a família e partiu para Lisboa para tentar a sua sorte no jornalismo e nas letras, esteve doente com a morte à espreita algumas vezes, em 1958 foi convidado por um grupo de democratas para se candidatar à Presidência da República, e declinou o convite por sentir não ter capacidades para tal cargo. Em 1969, Jorge Amado propôs o seu nome para candidato ao Prémio Nobel da Literatura, aos 75 anos foi homenageado na Sociedade de Belas Artes de Lisboa.
Aos seis anos, Ferreira de Castro entrou na escola primária de Ossela que faz parte do roteiro literário. Aluno brilhante, apaixonado por Margarida, a jovem de 17 anos que via passar da janela da escola e a quem escrevia cartas de amor. Envergonhado, metido com os seus botões. “Era de Inverno. Ia de chancas, friorento, enroupadito. Creio que foi a minha mãe quem me acompanhou até meio caminho. Não me recordo bem. Mas lembro-me, nitidamente, da minha entrada na escola. Lá estava, ao fundo, à secretária, instalada sobre um estrado, o professor Portela. Era gordo e de carne muito branca e fofa”, recorda nas suas memórias puxadas agora para este roteiro. “Sentei-me em uma carteira e, não tendo coragem de levantar os olhos, fixei-os no abecedário, que crescia e se deformava constantemente. Nesses primeiros dias, a minha única distracção era seguir as moscas que passeavam no sujo rebordo do tinteiro.” Era o melhor aluno que ansiosamente esperava ver o seu nome escrito no jornal da vila. Nunca apareceu, apenas os nomes dos filhos dos homens ricos da terra. Ficou destroçado. “Era como se não tivesse ido à escola, como não tivesse feito o exame, como se não existisse!”, escreveu.
E lá está a igreja velha onde foi baptizado e fez a comunhão, dia em que pronunciou o discurso religioso escrito pelo padre, decorado para a ocasião. O Ti Zé Moleiro fez parte da sua vida, esse homem de poucas palavras, sempre com o burro atrás, e com quem conversava sempre que regressava de Lisboa. O homem que, como escreveu, “representava a poesia humana da aldeia”. “(…) somente ao morrer de cada sábado abandonava o moinho, sem casaco, apenas de camisa, colete e calças, coberto por um chapéu largo de abas ensebadas e todo embranquecido de farinha; e, com um burro pela arreata, carregado de sacos de milho já moído, por atalhos atravessava metade da freguesia, para surgir à noitinha, já meio difuso e semifantasmal no lusco-fusco, à beira da estrada, onde tinha a sua casa e a família”.
O cemitério de Ossela também faz parte do roteiro. Ali estão enterradas os dois amores da sua vida. Diana de Lis, a sua primeira mulher, escritora de Évora, e Elena Muriel, segunda mulher, pintora espanhola e com quem deu a volta ao mundo.
José Rodrigues dos Santos é presidente da Junta de Freguesia de Ossela, filho de Maria Manuela, secretário da Associação dos Amigos de Ferreira de Castro. Conheceu o autor de Emigrante, de A Lã e a Neve, de A Missão. Ajudou-o na tarefa de colocar os livros na biblioteca, desenhou-o várias vezes pelo próprio punho. “Estivemos três meses a montar a biblioteca, foi tudo colocado pela mão dele”, lembra. Recorda-se dele sempre com o cigarrinho na boca e com vontade de beber café. “Havia uma coisa que ele dizia e que nunca mais esqueci: para nunca estarmos satisfeitos com aquilo que fazíamos, para ir mais além.” E ele, de uma família pobre, mostrou que era possível ir mais longe.
Ferreira de Castro colocou Ossela no mapa. No Guia de Portugal, editado em 1924, descrevia a terra do seu coração. “Cortado pelo rio Caima, debruado de amieiros e de salgueiros, o Vale de Ossela é uma série de rincões edénicos, onde a natureza veste as suas melhores galas, despretenciosamente, como se o fizesse por simples hábito. Torna-se necessário trilhar ínvios caminhos para surpreender todo o encanto da terra doce que parece contemplar-nos com uma meiguice sonhadora, uma ternura que não se esquece. Lá no fundo do vale, já nas fraldas da serra, divisa-se a Igreja Velha, o Mosteiro presumível lugar, outrora, de anacoretas contemplativos.” Nunca duvidou do respeito das gentes da sua terra. Sabia que os seus conterrâneos do concelho oliveirense guardariam as suas memórias. “(…) tratarão da Biblioteca com o mesmo amor com que eu a fundei e da humilde casita natal com o mesmo carinho que a vêm tratando até hoje, carinho que tantas vezes me tem comovido”, escreveu na carta de doação da biblioteca ao município. E as gentes da sua terra estão a celebrar os 100 anos da sua vida literária. O ex-ministro da Educação Nuno Crato esteve na Secundária Ferreira de Castro, em Oliveira de Azeméis, a dissecar a obra A Curva da Estrada, depois disso exibiu-se um documentário sobre a sua vida e a casa-museu produzido por Mário Augusto. E, ao longo de 2016, haverá mais iniciativas na agenda.
Como chegar
Para chegar à Casa-Museu Ferreira de Castro, de Lisboa ou do Porto, pela A1 e A29, sair em Estarreja e seguir pela EN224 e IC2 em direcção ao centro de Oliveira de Azeméis, seguir novamente pela EN224 até à saída de Ossela. Do Porto, ir pela A32 até à saída de Oliveira de Azeméis e daí seguir até à saída de Ossela pela EN224. A Casa-Museu fica a 200 metros à direita da saída para Ossela da EN224.
Informações
O Centro de Estudos Ferreira de Castro avisa que não é difícil percorrer o trajecto, mas é um pouco exigente devido à sua tipologia com calçadas, caminhos, carreiros, travessia de ribeiros e pontes, subida e descida de rampas.
O roteiro literário pode ser feito individualmente, em qualquer altura, bastando para isso aceder aos separadores “Cultura” e “Roteiro Literário Caminhos de Ferreira de Castro” em www.cm-oaz.pt e com o auxílio e orientação da informação lá prestada, seguir as estações do percurso, assinaladas no terreno. As visitas com guia são promovidas de forma esporádica, complementares a outros eventos relacionados com o centenário da vida literária do escritor. Os interessados podem constituir um grupo com mais de 20 pessoas e propor, através do email património.cultural@cm-oaz.pt, a marcação de uma data para a realização do roteiro com a orientação de guia. Em qualquer uma das modalidades de visita, a participação é gratuita.