Fugas - Viagens

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Uma casa, três corações, pelo mundo: Menina Mundo

Por Miriam Pina

Miriam e Nelson partiram do Porto para dar vida a um sonho: viajar pelo mundo com a filha, a pequena Mia. Em Setembro de 2015 voaram para Pequim, onde teve início a aventura pelo continente asiático. Mia, então com 22 meses, conta agora com dois anos e meio e muitos países percorridos. Uma verdadeira Menina Mundo.

[Sentámo-nos - frente a frente - com os sonhos, com os medos. Enfiámos os medos todos num saco - preto. Pegámos na balança e pesámo-los. Assustámo-nos. Depois fizemos o mesmo com os sonhos e não havia saco que os fechasse, não havia lugar em que coubessem, não havia balança que os pesasse].

O relógio parou. Os ponteiros deixaram de rodar. O calendário deixou de contar os dias, as semanas, os meses. O tempo deixou de ser contado.

Esta será a mais fiel metáfora que encontro para vos dizer esta nossa viagem. 
Tempo: que parámos, que ganhamos, que nos oferecemos. 

Quando digo oferecemos, está longe de ter sido dado ou sem implicações. Não, não somos ricos (nem filhos de pais ricos), cortámos as amarras profissionais, abdicámos de alguns bens materiais, vendemos o nosso carro, pegámos em parte das economias que conseguimos juntar e trocámos tudo por isto: o desengavetar de sonhos; uma mão e meia cheia de países; vivências que nos alargaram cada um dos cinco sentidos e memórias (mil) para o futuro, contadas em palavras, ditas por imagens - tudo no blogue Menina Mundo.

No dia em que passámos a ser uma casa, de pernas e braços – pelo mundo -, estávamos como no dia em que nos havíamos conhecido, ainda miúdos de escola: de mochilas às costas e pés nas sapatilhasmas agora com 17 anos de história partilhada e uma filha. De todas as nossas coisas levámos apenas 20 kg, mas foi com tudo o somos que fomos – e isso, nem quilos, nem litros, nem cifrões serão capazes de medir. 

Foi assim, a três corações, que partimos. Nos ouvidos entravam-nos palavras fortes: como inspiração, sonho, amor, saudades. Ouvimos muitos: “gandas malucos; “corajosos/loucos”; muitos se alguém é capaz serão vocês” e muitos medos, desses que se alimentam facilmente de pequenas dúvidas, de pequenos “cuidadoe o que vocês têm?e os empregos?”e a pequenina?”.

E os sonhos? – respondíamos, às vezes sem nenhum som a sair-nos da garganta. 

- E os sonhos? Quem nos trata dos sonhos?

Foi neste momento que nos sentámos, frente a frente – balança em braços – e pesámos medos e sonhos. E, das voltas que a vida dá, haverá sempre em nós gratidão por esta volta que demos aos medos. Porque os medos, esses, não percorrem a grande muralha da China; não sobem o Mekong; não plantam árvores a seis mãos; não lançam lanternas ao céu ou ao rio; não mergulham na baía onde desceu o dragão; não caminham pelos arrozais; nem nadam no oceano Pacífico, nem no Índico.

Os medos não atravessam o caos que são as ruas de Hanói; não tocam nem alimentam elefantes; não conhecem pessoas novas, nem provam novos sabores e não vivem entre montanhas. E nós fizemos isto tudo. E os medos não moram no meio da selva do Bornéu, onde apenas se chega e se sai de barco, para trabalhar  em troca de casa e alimentação; não vivem dentro das muralhas da cidade rosa do Rajastão e sentem que pertencem ali. E nós fizemos tudo isso, com uma filha no colo. Fizemos tudo isso: em família; crescemos todos os dias: em família.

A Mia cresceu também em pernas e braços, em abraços e algumas birras. Cresceu em pés descalços e mãos na terra. E quão certo isto me parece! Cresceu, em viagem, como se se cumprisse essa “menina mundo”: numa aprendizagem que se constrói no contacto com a natureza, com os outros, com o mundo. É nesta aprendizagem que acredito, mesmo que os outros sejam os vizinhos e o mundo a rua para onde dá a porta de casa. Por isso, deixo que explore, que traga os pés descalços e com eles sinta a terra, a relva, a areia e a água do mar. Que prove a água da chuva e os seus cabelos soltos ao vento, que traga as unhas sujas: das mãos, dos pés. O banho resolve.

Neste papel de pequena naturalista, muitas vezes parava e nós atrás, parava por uma pedra no chão ou por um pau, que viria a servir de lápis que desenha sobre a folha que a terra sabe ser. Numa das vezes tínhamos os templos de Angkor Wat à distância de uns passos, imaginava-me passar a primeira formação em pedra enquanto ia desenhando, a pedido, um coração, uma árvore, uma casa. E consigo ver a preciosidade nos dois lados, nos templos seculares e no tempo que lhe damos, que nos damos.

E, a cada novo lugar, os episódios de desenrasque, a excitação a cada viagem, o comer com pauzinhos, as palavras em várias línguas, as caminhadas na selva, a adaptação à mudança, a habituação a novos sons, cheiros, sabores e, de todas as coisas, há esta, a sua definição de casa:

O que é uma casa, Mia?

A Mia, o papá e a mamã.

Aos dois anos, a meio desta longa viagem, ela sabe que o que faz de nós família não é vivermos sob o mesmo tecto e as mesmas paredes todos os dias, é o que nos mora dentro do peito. Estarmos juntos é sermos casa, lar, família, independentemente do lugar no mundo. E isto relembra-nos que tudo o que é vivido, desde tenra idade, contribui para a forma como vemos o mundo, como o compreendemos, como o apreendemos. E é assim que queremos que ela o veja, pelo coração.

Foi nesse outro lado do mundo que ela observou diferentes rituais religiosos, diferentes traços do rosto, diferentes formas de vestir, orar, comer e falar. Trocou sorrisos por sorrisos. Brincou ao berlinde com os meninos da margem do Mekong e atravessou uma ponte suspensa com a sua primeira melhor amiga, na Malásia. E aqui, neste contacto, estarão as raízes para essa ausência de filtro que ela aplica às diferenças: uma ausência que se manifesta na forma como as vê - sem as ver. É sempre mais e maior o que nos une a qualquer outro ser humano do que o que nos separa e diferencia dele. O corpo, esse que evidencia as diferenças físicas, será sempre mais do que isso: é lugar onde bate um coração.

Termino como comecei, com esse relógio que parou – que paramos para ela, para nós. Tudo o que vimos e vivemos apenas se conta fora das horas. O tempo deixou de ser contado em números (em horas, minutos, segundos), passou a ser contado em histórias, países, pessoas, tradições; em palavras novas, em sorrisos, em tangerinas descascadas pelas suas mãos pequeninas. Passou a encher-se de primeiras vezes: como a primeira vez que andámos de bicicleta juntos; a vez em que descemos o rio numa jangada de bambu no rio Yulong; aquela em que vimos uma serpente na selva do Bornéu e aquela em que ficámos presos numa ilha deserta, com uma avaria no barco.

É isto que lhe queremos deixar, memórias do que vivemos juntos (no lugar de paredes de cimento e um papel que diga que são dela). O nosso amor e este tempo – que enchemos de mundo – serão a sua melhor herança, a prova de que o amor e os sonhos cabem em vidas simples; em vidas com mochilas; em pés descalços ou em sapatilhas.

E o blogue menina mundo é o lugar onde moram essas histórias: em palavras e fotografias.

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