O odor doce que a cada passo se ergue do engenho Lage Bonita cola-se à humidade quente dos trópicos, espalha-se pelos braços das árvores imponentes da Mata pernambucana e faz o tempo andar para trás. Na Lage Bonita ainda se fabrica açúcar como outrora e essa façanha tornou-se uma raridade na terra que moldou as suas paisagens e os seus hábitos à doçura da cana. Os velhos engenhos foram morrendo na zona da Mata ao longo dos últimos 50 ou 60 anos, mas Melânia e Paulo Vieira, os donos da Lage Bonita, resistiram e hoje o seu velho espaço industrial, arcaico e nostálgico, é bem mais do que uma forma de ganhar a vida com a curiosidade dos turistas: é também uma forma de conservar a identidade de um lugar e de uma região na qual o açúcar corre no sangue dos homens, como escreveu o grande sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987).
A roda que esmaga a cana é a mesma que a família de Paulo Vieira importou de Inglaterra em 1890, a cana é ainda cultivada na propriedade, o caldo da cana e todos os processos que levam até ao pão de açúcar fazem-se como no tempo em que o engenho era um mundo áspero e difícil que se dividia entre a Casa Grande dos senhores e as senzalas dos escravos.
Quando se pensa no Pernambuco ou, numa visão mais alargada, no Nordeste do Brasil, a primeira e quase exclusiva imagem que vem à cabeça é a das praias de areias brancas, com o mar azul-turquesa e umas filas de palmeiras a dar exotismo ao cenário. Essa visão exclusiva é redutora e perigosa. Porque não nos deixa ver o que fica para lá do Recife, de Olinda, de Porto de Galinhas ou de Itamaracá. Nas zonas da Mata ou no Agreste, já na transição para a imensidão árida do Sertão, há um Nordeste diferente e irresistível. A doçura do Brasil tropical e multicultural está lá. A memória do ciclo do açúcar, que milhares de colonos portugueses e seus descendentes criaram e desenvolveram desde a descoberta ao Brasil até ao presente, também. Igrejas barrocas de paredes malhadas pela humidade distribuem-se pelas pequenas cidades. Aqui e ali há áreas de mata atlântica original, cachoeiras, zonas protegidas, artesanato. Há também um clima por regra mais fresco do que o que se respira no litoral de Pernambuco. E a imbatível simpatia dos nordestino. Ou a sua maravilhosa riqueza gastronómica.
O engenho dos Vieira é hoje um testemunho da memória, onde cabe a cultura, a história familiar e também a placidez de lugares e de rostos exóticos que aprendemos a conhecer nas novelas. Não fica longe do Recife, ou de Porto de Galinhas – há que partir da capital pernambucana, passar Palmares, cruzar ao longo de 60 ou 70 quilómetros a rede de pequenos montes verdes, na maior parte cultivados com cana, passar ao lado de Quipapá e entrar numa estrada de terra batida até chegar ao engenho. A Lage Bonita leva-nos de imediato para o mundo de Gabriela Cravo e Canela, para esse Brasil colonial de vidas passadas ao ritmo da moenda que esmaga a cana e extrai o suco. Ali, numa ilha cercada pela luxuriante floresta da Mata, abre-se uma eira em parte coberta com canas já esmagadas, a moita, onde estão as máquinas e as caldeiras que transformam o caldo de cana em açúcar, e a casa de Melânia e de Paulo, também ela uma reminiscência dos tempos em que a cana era sinal de fortuna.
Cana, cana, cana. Enquanto não deixarmos a zona da Mata e entrarmos nos planaltos mais áridos do Agreste, a paisagem ondulada e verde é dominada ainda hoje pela cultura açucareira. A fazenda Betânia, que fica a pouca distância da Lage Bonita, à entrada da localidade de São Benedito do Sul, deixou a cana há muito, mas nos seus 160 hectares é possível descobrir outros exotismos. Roberta Queiroga gere aquele espaço por herança de família, embora hoje a Betânia seja uma mistura de propriedade agrícola e de espaço de turismo rural. Caminhando pelos trilhos da fazenda podem-se descobrir plantações de piripiri, pitangas, acerolas, araçás ou jacas com os quais se fazem sumos maravilhosos. Com sorte podem-se encontrar também preguiças, tatus ou capivaras (espécie de javalis tropicais). E quem preferir dias menos aventurosos, pode conviver de perto com os animais da quinta (galinhas, o bode Diego, que gosta de acompanhar as viagens pela fazenda no reboque de um tractor, cães ou gatos). Ou experimentar um banho no enorme açude da propriedade, com água natural temperada com o calor do Nordeste.
Lage Bonita não tem quartos para acolher hóspedes – ali o que pode experimentar é o ritual da produção de açúcar, podem-se provar bolos ou sucos feitos com sacarose e com rapadura (uma barra doce e dura) ou pão com mel do engenho e também é possível andar a cavalo, dar um banho e fazer desportos aquáticos na albufeira que alimenta a roda hidráulica. Na Fazenda Betânia há quartos disponíveis, que valem muito mais pelo silêncio e pelo exotismo do lugar do que propriamente pelo conforto. Ali, como um pouco por toda a zona da Mata e do Agreste, nasceu nos últimos anos uma ainda tímida experiência de turismo que, para já, só é conhecida e experimentada por brasileiros que moram num raio de 200 quilómetros na zona da Costa, como Recife ou Maceió, já no estado de Alagoas. A beleza dos lugares, o exotismo do ecossistema, a água morna ou a fantástica comida feita em casa valem a experiência, mas para os brasileiros há outro ingrediente que as torna irresistíveis: como ficam em geral em zonas mais elevadas, o seu clima é mais fresco e ameno e serve para retemperar as energias do calor abrasador do litoral.
Pelo sertão nordestino
No cimo de uma serra que se sobe a partir da cidade de Bonito, Fátima Magalhães dirige o seu Refúgio do Rio Bonito. Um edifício central com a parte administrativa e o restaurante, a piscina exterior aquecida e a casa da família compõem um núcleo a partir do qual se espalham blocos de pequenas casas abertas a turistas.
A brisa do final da tarde retempera os ânimos. A enorme extensão verde que desce a serra e se prolonga pelo horizonte recortado pela albufeira do rio Bonito faz lembrar uma paisagem alpina. Dos quartos, o cenário torna-se uma tela irresistível. Na varanda, uma irrecusável rede convida a sonos retemperadores, ou a deliciosas tardes de leitura. Fátima dá-se bem naquele pequeno paraíso. Vive no Recife, a 136 km de distância, mas a procura do seu refúgio obriga-a a passar por ali muito do seu tempo.
Para chegarmos a Bonito vindos da zona de Quipapá, onde fica o engenho da Lage Bonita, decidimos abandonar por umas horas a frescura da Mata para espreitar os planaltos do Agreste. Garanhuns é a última cidade grande antes de a paisagem se começar a tornar cada vez mais ressequida e violenta até se cristalizar numa aridez permanente lá para a zona do Sertão. Zona de cabras, de queijos esquisitos, de mandioca e de solidão, o sertão nordestino é a reserva mítica que alimenta boa parte da cultura nordestina. É o mundo do baião, do forró pé de serra, de Luís Gonzaga e do juazeiro, a árvore que, de certa forma, personifica essa imagem romântica do Sertão.
Perto de Garanhuns fica Caeté, a pequena cidade onde nasceu o ex-presidente Lula da Silva. O partido de Lula, o PT, ganhou lá as últimas eleições com quase 95% dos votos, mas quem for à procura de homenagens dessa cidade ao seu mais ilustre cidadão, pode desiludir-se. “Nós não conseguimos falar com ele”, queixa-se o prefeito da cidade, Armando Duarte. Em 2002, quando Lula chegou à presidência, fez-se uma pesquisa para saber ao certo onde Lula nascera e descobriu-se um lugar na Várzea Comprida, a seis quilómetros de Caeté, onde se construiu uma réplica da casa da família – uma pequeníssima habitação com duas dependências feita de madeira e barro. A casa está hoje esquecida e praticamente em ruínas. O Agreste é um lugar que exige luta diária para extrair do solo seco e arenoso algum feijão ou mandioca. Ali, a memória é um luxo dispensável.
Conduzir pelas estradas do Nordeste é hoje muito mais fácil do que há apenas alguns anos. Os pavimentos são razoáveis, apesar de aqui e ali haver buracos insuspeitos capazes de destruir a mais sólida das suspensões. Em alguns troços, podem aproveitar-se as BR, auto-estradas federais, como a mítica BR 232, que liga a costa às profundezas do sertão. É sempre necessário ter cuidado com as ultrapassagens. Mas a paisagem varia com muita frequência, os restaurantes de carne de sol, de carne de charque ou de bode (cabrito) surgem no meio do nada e proporcionam muito boas surpresas. Viajar pelo interior do Brasil tem garantidamente aquele lado imprevisível, surpreendente e aventureiro que fornece o tempero ideal aos que gostam mais de viajar do que fazer férias. De resto, o Nordeste é pobre, mas sintomas revoltantes da pobreza de outrora quase que deixaram de existir. O Brasil do interior é hoje muito mais justo e ameno, embora por vezes, nas cidades, as sucatas ao ar livre ou o lixo nas valetas causem estranheza e repulsa aos hábitos europeus.
Nas imediações do Refúgio do Rio Bonito as cores e os cheiros são diferentes. A altitude torna o ar mais límpido – a pousada fica a 850 metros. As chuvas abundantes que chegam em vagas do litoral no “Inverno” austral criam nas montanhas uma amostra da floresta luxuriante dos trópicos. Por toda a serra abundam pequenos hotéis de montanha, que servem de base para longas caminhadas ou para experiências radicais nas oito cachoeiras da zona. A do Vale da Noiva fica a pouco menos de dez quilómetros, após uma estrada de curvas apertadas que se cola ao dorso das montanhas abertas a horizontes infindáveis de verde intenso. É um dos lugares mais populares da região. Por cinco reais (1.2 euros, ao câmbio actual) pode-se entrar no Vale da Noiva e descobrir um lugar fascinante.
As árvores que crescem ao lado de uma ribeira acidentada que antecipa a queda de água (copaíbas, imbaúbas, jaqueiras) criam uma sombra impenetrável. O calor, ainda assim, é intenso e húmido, tropical, bem diferente do ar fresco que deixáramos no refúgio poucos minutos antes. Ao longo da ribeira há jactos de água para massagens, pequenos açudes para crianças, um bar com cerveja estupidamente gelada (um dos maiores contributos do Brasil para a civilização moderna) e uma pequena cabana já junto da cachoeira onde os mais ousados se preparam para travessias do vale em rapel ou para a descida dos 35 metros da queda de água seguros por fios (e ajudados por auxiliares experientes). Um lugar lindíssimo, que vale por si só, com ou sem os desafios dos desportos radicais.
O Carnaval dos Papangus
Em Bezerros, uns 70 quilómetros a Norte da serra de Bonito, a paisagem cruza os elementos luxuriantes da Mata com a semiaridez do Agreste. A cidade pouco teria de recomendável se não fosse um importante centro de artesanato e se não conservasse uma interessante tradição do Carnaval – os Papangus, máscaras trabalhadas durante o ano pelos seus moradores, que são exibidas num dos dias da semana dos festejos e que tornam Bezerros numa ousada tentativa de réplica do Carnaval de Veneza. Em Bezerros há ainda outra importante atracção: a Serra Negra, que se ergue no final da cidade e a protege dos ventos secos que vêm do coração do continente. A subida à serra faz-se por uma estrada de paralelo, íngreme, com um ou dois momentos de particular emoção (curvas fechadíssimas em rampas quase a pique). Faz-se bem.
A cada passo, a presença de cafés, de lojas e de restaurantes mostra que aquele lugar tem alguma tradição turística. No pico do Verão, quando as temperaturas inclementes sobem para a casa dos 40 graus, a Serra Negra é um oásis de frescura. Há por lá um pequeno parque ecológico com uma vista admirável até ao limiar do sertão, com rochas gigantescas e uma mancha de arvoredo densa e fresca que convida à exploração. Há também um pequeno bar à entrada famoso pelo seu rabo de boi estufado – a possibilidade de se comer muito bem por bastante menos de dez euros nestes lugares é um dos grandes privilégios do Nordeste do Brasil. Ainda antes, um pequeno núcleo de casas alberga esplanadas e restaurantes. E bares onde se canta e dança livremente, ou não fosse Bezerros um lugar de festa.
Glória Cardoso percebeu o potencial do sítio para o turismo por volta de 1995, ano em que ela e o seu marido (entretanto falecido) compraram o terreno onde viriam a construir a Pousada Canto da Serra. Lá, por muito que se procure uma irregularidade, um detalhe de incompletude ou de mau gosto, não se consegue. O espaço exterior é um jardim irrepreensível. Há alguns animais e frutos à discrição (goiabas, acerolas, pitangas…). Os chalés estão colocados sobre a vertente da serra aberta para Bezerros, o espaço interior é confortável e na varanda há lugar para a instalação de uma rede. A brisa da tarde tempera o calor e o silêncio estimula todo o tipo de ausências. Para quem vive a dureza dos empregos modernos nas grandes cidades, se aquilo não é o paraíso, não fica longe.
O caminho de Bezerros para Vicência obriga à travessia do coração da Mata onde a cana-de-açúcar ainda domina a paisagem. Já não é cultivada por fazendeiros e transformada nos engenhos familiares – é explorada em terras alugadas pelas usinas que restam. O calor aperta, mesmo quando chuvadas intensas e fugazes parecem temperar a jornada. Passa-se por Carpina e atravessa-se Nazaré da Mata, um santuário principal de uma das mais extraordinárias tradições do Nordeste – ou do Brasil -, os feéricos caboclos de lança, que aparecem com os seus trajes de lantejoulas e as suas cabeleiras de fitas garridas a defender os cortejos reais nas semanas do Carnaval. Chega-se depois a Vicência, uma cidadezinha do interior que, ao longe, parece ter parado no tempo mas que no interior das suas ruas centrais exibe uma dinâmica comercial misteriosa – por ser tão intensa.
A Casa Grande
Daqui ao engenho Jundiá é apenas um pequeno salto de três ou quatro quilómetros. A Casa Grande resiste lá ao fundo de um vale viçoso, como se cumprisse a missão de colar a sequência das gerações da família Correia de Oliveira Andrade, que a mandou construir em 1879. Nesse tempo, a cultura de cana tinha exaurido os solos mais próximos do porto do Recife e Vicência era ainda um lugar distante, embora hoje, por estrada, fique a apenas 87 km da capital de Pernambuco. As primeiras plantações de cana datam de 1750 e em 1817 a Jundiá recebe o seu engenho. Mas quando a família que ainda hoje conserva aquele vasto e belíssimo cenário na Mata lá chegou, estava em vias de experimentar uma nova era. A escravatura acabaria em 1888 e a senzala que outrora lá existiu desapareceu. Para sorte da sétima geração dos Correia de Oliveira Andrade, com origem no Douro e no Minho, a magnífica Casa Grande continua em pé e em bom estado de conservação.
O engenho Jundiá aluga pequenos quartos a turistas, mas quem o procura não está por regra à espera de pernoitar por lá. Os encantos da casa estão no seu recheio, na sua história, na beleza do espaço envolvente e no pequeno museu de açúcar que Zélia César Correia mantém com devoção. A maioria dos turistas que por lá passa paga 70 reais (cerca de 17 euros) para poder passar lá o dia, com direito a um lanche de chegada e um almoço na sala com um enorme pé direito e sem tecto – uma forma de garantir a circulação de ar. As paredes caiadas de branco e azul-chumbo contrastam como entorno de erva que alimenta quase duas centenas de cabeças de gado. No seu interior podemos ver retratos de membros ilustres da família (parte da elite pernambucana), objectos de outro tempo, presentes exóticos, cartas e relógios parados há décadas no tempo que, no seu imobilismo, impregnam as salas de nostalgia.
O engenho de Jundiá deixou de ser engenho há 60 anos. Na sua época dourada produzia 17 mil toneladas de açúcar que tanto podiam seguir para a Europa via porto de Recife como seguir as rotas do interior até aos mercados do Sertão. João Andrade, marido de Zélia, lembra-se ainda desses dias e de todos os capítulos que se seguiram até hoje, um tempo em que o turismo se tornou indispensável para manter o lugar útil e vivo. João passeia-se pelas varandas que contornam a casa, detém-se na pequena horta cultivada pela mulher que parece filigrana, entrega-se à sua paixão pela História (é duro discutir com ele episódios da História de Portugal) e, apesar desta aparente monotonia, não pensam regressar ao Recife, onde viveu entre 1976 e 2010. “Tenho horror em viver lá”, explica Zélia.
Percebe-se que toda aquela quietude, o calor do fundo do vale e a carga de memórias exerçam neles um irresistível poder de atracção. O mesmo acontece a quem chegar àquele lugar idílico onde um certo ângulo do Brasil antigo se cristalizou. A singeleza e o exotismo dos lugares da Mata e do Agreste são irresistíveis.Estão carregados de silêncio, de brisas temperadas que amenizam o calor tropical, de memórias e de uma atmosfera que ora nos perturba com memórias de escravos, ora nos envolve e conforta com o calor, o vigor da paisagem e o abraço do clima. Visitar a Lage Bonita ou Jundiá depois de horas de distensão e paz da Fazenda Bethânia ou da Pousada Canto da Serra faz-nos perceber cinco séculos de História que, sendo do Brasil, também é em parte nossa. Descer às cachoeiras da Serra do Bonito depois de um par de dias no Refúgio do Rio Bonito é uma experiência com a natureza que nos leva longe e nos faz esquecer as rotinas.
Resumir o Nordeste do Brasil ao litoral é por isso um erro. A duas horas de carro há um outro país, profundo e autêntico, que vale a pena descobrir.
Multimedia
Mais
A saber...
- Moeda Real
- LínguaPortuguês
O Pernambuco mais doce está para lá do sol e da praia