Belizário Cabeças tem 66 anos e trabalha no descortiçamento há 15. Está aposentado e este é um dos vários trabalhos sazonais que faz (também participa, todos os anos, na apanha da azeitona e da uva). É um dos que mais gosto lhe dá, a par do trabalho na vinha. De boina na cabeça, luvas nas mãos e machado ao ombro, pára para uma breve conversa mas logo se apressa para começar a descascar a próxima árvore – este ano a extracção de cortiça no Alentejo começou mais tarde devido ao tempo frio e tem os dias contados no fim de Julho.
Chegamos ao Redondo às 10h da manhã para participar num atelier de descortiçamento, disponível sob reserva através da plataforma de turismo cultural Compadres. Quando subimos para o tractor e nos aventuramos pelos terrenos de sobreiros, os trabalhadores já estão a meio da sua bucha da manhã. Um dia de trabalho aqui começa às seis da manhã. Até ao fim de Julho são sete horas de trabalho por dia, todos os dias. Por norma, a extracção da casca do sobreiro acontece ininterruptamente entre Maio e Agosto mas a chuva fez com que as árvores se contraíssem.
“Estamos a experimentar as árvores há semanas. Hoje está frio, esteve frio de noite. Se o calor não voltar, dura umas quatro semanas”, explica numa quinta-feira de manhã Eduardo Bon de Sousa, director do Hotel Convento de São Paulo, no qual se inserem estes 400 hectares de sobreiros. É o quarto de dia de descortiçamento deste ano – se tivessem começado a retirar antes, à força, o sobreiro contrairia de tal forma “que só sairiam bocados, sem valor comercial”, diz-nos, alertando para os estragos que tal extracção faria à árvore.
Depois de plantado o sobreiro, são precisos entre 25 a 30 anos para a primeira tiragem, à qual se chama cortiça virgem. A segunda tiragem, nove anos depois, dá origem à cortiça secundeira e já tem “alguma qualidade” mas é, tal como a virgem, bastante irregular. Estas não servem para rolhas mas dão origem a matéria-prima para isolamento, pavimentos e produtos para áreas diversas, desde a construção ao design. Só à terceira tiragem, outros nove anos volvidos, é que a cortiça é de qualidade. Esta chama-se amadia, tem as costas e a barriga lisas, e é a única, das três espécies, com qualidade suficiente para a produção de rolhas. A partir daqui, o período ideal de extracção é sempre a cada nove anos – o sobreiro tem uma longevidade de 200 anos e pode ser descortiçado cerca de 17 vezes.
A cortiça é produzida pelo felogénio, um conjunto de células mãe activas durante os meses quentes e com o seu pico em Junho. A homogeneidade da cortiça resulta precisamente do felogénio do sobreiro se manter em actividade durante toda a vida da árvore, em contraste com o de outras, onde é descontínuo e tem uma duração anual. Após a extracção da cortiça, o felogénio seca mas por baixo cria-se uma nova camada.
Apesar de este processo ter começado há dias, há já várias árvores descascadas e com um seis pintado a branco – é necessário assinalar o ano em que foi extraída a cortiça e utiliza-se a terminação; como a cortiça cresce de dentro para fora, o número fica sempre visível.
Enquanto observamos o trabalho dos machados – cada machado são dois homens e chamam-se assim devido à única ferramenta utilizada para a extracção da casca do sobreiro – Eduardo Bon de Sousa aponta para a árvore atrás de nós: o número cinco em cima, um seis em baixo. “Há casos em que não é possível tirar a cortiça da árvore inteira e divide-se. O ano passado, em 2015, ainda havia humidade na parte de baixo e conseguimos extrair mas a parte de cima estava contraída. Adiámos para este ano a extracção”, explica.
“A rapidez com que tiramos a cortiça depende da árvore”, atesta o senhor Belizário. A cobrilha é um dos maiores “pesadelos” dos sobreiros – uma lagarta cuja presença provoca o enfraquecimento gradual da árvore e é apenas visível durante o descortiçamento, originando feridas de cicatrização difícil que facilitam o aparecimento de fungos. “Caso contrário, quando a cortiça está a dar bem, é um trabalho em fluido”, diz.
Este é um dos trabalhos agrícolas mais bem pagos, realça Eduardo Bon de Sousa, devido ao cuidado que é preciso ter com o sobreiro. “A arte destes homens é descascar a árvore sem a ferir”, diz. Os cortes devem ser verticais e, para soltar a cortiça, podem empurrar com o cabo do machado ou com um pau, sem nunca forçar, caso contrário a próxima tiragem fica comprometida.
Já descortiçado, o tronco adquire uma cor avermelhada que vai escurecendo à medida que se regenera a casca – e neste período a manutenção do sobreiro, uma espécie típica na região mediterrânica ocidental e considerado património nacional, é essencial. Com folhagem verde todo o ano, o sobreiro é uma árvore que “muito dá e pouco pede”, e o seu abate é proibido pela legislação nacional e regional.
Apesar da forte protecção existente em torno dos sobreiros e da sua cortiça, esta só ganhou importância no século XVII – antes era a madeira dos sobreiros que era valiosa e utilizada nas naus e caravelas dos Descobrimentos. A cortiça era um material menor, utilizado apenas para bóias ou imobiliário – com a produção de rolhas para o champanhe francês Dom Pérignon.
Segundo dados da Associação Portuguesa de Cortiça, a produção mundial ultrapassa as 200 mil toneladas por ano – Portugal é líder, com uma produção média anual de mais de 100 mil toneladas. Nesta propriedade, são extraídas 2500 arrobas por ano, equivalentes a 30 mil euros de facturação com um custo de extracção de 14 mil euros.
Apesar de a cortiça ser um dos produtos naturais mais característicos de Portugal e utilizado mundo fora, há quem não saiba de onde vem. O director do hotel Convento de São Paulo, na Serra de Ossa recorda uns hóspedes americanos que julgavam que a cortiça vinha do mar e, ao visitar a herdade, ficaram admirados com a sua proveniência. “Para eles é um produto que dá à costa. Há um alheamento muito grande. Com a velocidade destes tempos, está a perder-se o conhecimento de onde vêm as coisas”, critica, reconhecendo, porém, a curiosidade.
O processo de transformação
Depois de retirada da árvore, a cortiça é transportada para uma fábrica. Na Cortiçarte, na Azaruja – o maior centro corticeiro do Alentejo – há pilhas e pilhas de cortiça no exterior. É aqui que fica, ao sol e à chuva, sob estruturas de aço inoxidável durante pelo menos seis meses para estabilizar. Só depois é transferida para o interior da fábrica e cozida. “Nós aqui fazemos a preparação da cortiça e, depois, os artefactos”, diz Joaquim Caeiro, responsável da fábrica, explicando-nos o processo de preparação, que consiste na selecção da cortiça pela sua qualidade (calibre e espessura).
A cortiça é cozida num tanque sem qualquer aditivo durante uma hora, acima de 100 graus – um processo que não tem como propósito a lavagem ou o combate a pragas e fundos, explica Joaquim, mas sim a expansão das moléculas, que se traduz num aumento do volume da placa de cortiça. Após essa operação de cozedura, são aparados os excessos e a cortiça é avaliada. Entre 25 a 30 dias depois, é sujeita a uma segunda cozedura e fica, então, concluído o processo e a cortiça é canalizada para os sectores em que se enquadra.
As pranchas mais finas destinam-se à produção de discos (que ficam em contacto com o vinho) para rolhas técnicas (fabricadas com os aglomerados de cortiça que sobram da produção de rolhas naturais). As mais grossas e suaves dão origem às rolhas naturais. Estas placas são perfuradas e é extraído um cilindro – cada cilindro é uma rolha inteira que é, depois, submetida a análise.
A produção de rolhas exige a melhor cortiça – a amadia. Vários estudos indicam que os consumidores portugueses de vinho preferem garrafas com rolhas de cortiça ao invés de vedantes sintéticos ou cápsulas de alumínio. “As características da cortiça permitem a respiração do vinho, coisa que com outros materiais não é possível”, diz Eduardo Bon de Sousa, frisando que embora sele o vinho, a rolha de cortiça permite que haja “um intercâmbio de determinadas características”.
GUIA PRÁTICO
A experiência de descortiçamento é um dos ateliers promovidos pelos Compadres, uma plataforma que cria roteiros alentejanos à medida e tem já quatro rotas de turismo cultural definidas – Rota do Fresco, Rota do Montado, Rota Pica-Chouriços e Rota Tons de Mármore.
Este atelier funciona apenas nos meses quentes e sob reserva atempada, tem a duração de um dia e meio e os participantes serão acompanhados por um intérprete dos Compadres com formação específica na área (a visita está disponível em português, espanhol, francês e inglês).
O programa prevê ainda o alojamento no Hotel Convento de São Paulo, erguido em 1182 por eremitas e com uma das maiores colecções de azulejos do país. É turismo rural desde 2011, tem 40 quartos e todos respeitam a história do edifício – numa visita guiada pelos corredores do hotel, o director Eduardo Bon de Sousa, que também recebe os participantes no atelier e os acompanha, destaca que “tudo aquilo que teve de sofrer intervenções não tenta imitar o velho. Não queríamos perder o genuíno.”
No corredor principal dos quartos, transformados a partir de duas e três celas às quais foi acrescentada uma casa de banho em mármore, há um longo tapete vermelho e as paredes laterais estão cobertas de azulejos: de um lado a representação do Antigo Testamento, do outro o Novo Testamento. É neste corredor que existem também janelas com vista para toda a herdade – e para os trabalhadores ainda junto dos sobreiros.
COMO IR
Opercurso mais rápido até à Aldeia da Serra, em Serra de Ossa, no Redondo, faz-se pela A2. Siga por esta auto-estrada, seguindo a direcção Espanha/ Évora/Santarém. Já no IP7, saia na saída n.º 7 para Portalegre/ Estremoz (IP2). Depois de convergir com o IP2, continue em frente para a N4 e vire à direita em direcção à N381. Percorra cerca de 15km, entre curvas e contracurvas, e vire à esquerda. A 200 metros, à direita, há uma placa que indica o Hotel Convento de São Paulo – chegou.
PREÇOS
A partir de 150 euros por participante (mínimo oito participantes). Inclui alojamento de uma noite no Hotel Convento de São Paulo, jantar e uma bucha a meio da manhã, com produtos regionais e biológicos, e almoço.