Sentado num banco do jardim, à sombra das tílias, esperava com ansiedade que a carrinha, de um cinzento escuro, estacionasse ao lado do coreto onde, no Verão, aos domingos, a banda tocava para uma plateia atenta. De quando em vez, os sinos da torre da igreja repicavam e exacerbavam essa ansiedade que nunca fui capaz de controlar. Não era o único a aguardar esse momento que tanto encantamento produzia no meu ser e, mal a Citroën assomava, vencendo as pedras da rua gastas pelo tempo, formava-se uma fila que nem sempre respeitava a ordem de chegada.
Lembro-me do cheiro, das prateleiras, de correr com os dedos e com o olhar os livros, dos cartões que eram preenchidos, a hora e o dia da entrega, a hora e o dia da devolução, esta última por vezes retardada por imprevistos sem justificação. E, de regresso a casa, apressando o passo, carregava os livros de folhas por vezes já escurecidas, ainda mais ansioso e desejando percorrer as suas páginas como se elas me mostrassem o mundo com que sonhava, aqueles relatos de aventuras para mim tão reais, rasgando os meus horizontes que, já por essa altura, não conheciam limites.
Na sexta-feira celebrou-se o Dia Mundial das Bibliotecas e, ao evocá-lo, escrevendo sobre algumas das mais emblemáticas do mundo, por onde passei numa ou noutra etapa da minha vida, esta é a memória mais vívida que possuo, um passado tão presente, como alguém que ainda hoje, num tempo tão distante, continua sentado a saborear o aroma das tílias antes de experimentar o odor que saía daquelas estantes aos meus olhos tão organizadas.
“Chega-se a ser grande por aquilo que se lê e não por aquilo que se escreve.”
Jorge Luís Borges
Um desafio para mim antes de vaguear por algumas das mais magnificentes bibliotecas do mundo, uma viagem por entre milhões e milhões de livros que, embora nos pudesse levar a outros pontos do globo, nos conduz por países tão distintos como Irlanda, Brasil, Egipto, Estados Unidos, Austrália e China, sem ignorar Portugal, cenário de alguns dos mais belos espaços tão impregnados de silêncio, onde a sabedoria é como um polvo com tentáculos, disponível para servir o leitor.
“Uma vez, na China, uma aluna da Universidade de Xi’an, perguntou-me o que se perde escrevendo. Difícil pergunta kafkiana. E lendo? Certa feita, Borges disse que deixava aos outros vangloriarem-se dos livros que tinham escrito e que a sua glória consistia antes nos livros que havia lido.”
Claudio Magris, Alfabetos
Alexandria, Egipto
É a cidade de Alexandre Magno, de Cleópatra, a cidade onde nasceram Demis Roussos e Konstandinos Kavafis, a cidade lendária envolta numa profunda magia, a cidade da memória, imortalizada pelo poeta.
“Disseste; Vou partir para outra terra, vou partir para outro mar.
Uma outra cidade melhor do que esta encontrar-se-á.
Cada esforço meu um malogro escrito está;
e é – como morto – enterrado o meu coração.
A minha mente até quando irá ficar nesta estagnação.
Para onde quer que eu olhe, para onde quer que fite por aí
ruínas negras da minha vida vejo aqui,
onde tantos anos passei e dizimei e dei em estragar.”
Apontada como o principal centro de sabedoria do mundo antigo, a biblioteca de Alexandria foi fundada por Ptolomeu Soter no século III a.C. (pouco depois da própria fundação da cidade, por Alexandre, o Grande), tendo como primeiro director Zenódoto, que mais tarde cedeu o lugar a Apolónio de Rodes, se bem que, na realidade foi o poeta Calímaco quem tratou de arranjar fundos para tornar possível a sua consulta, dedicando anos da sua vida a materializar um catálogo composto por 120 livros conhecidos como os Pinaces.
Num tempo, admite-se que a biblioteca abrigava mais de 700 mil volumes mas com mais certeza se pode afirmar que este palco, numa urbe que chegou a rivalizar com Roma, teve um papel determinante como estímulo para alguns dos avanços registados na época, atraindo eruditos de todo o mundo — Herófilo chegou à conclusão de que a cabeça, e não o coração, era o lugar do conhecimento, Euclides desenvolveu a geometria, entre outras descobertas importantes.
Acompanhando e beneficiando do crescimento económico de Alexandria, porto estratégico nas rotas entre a Ásia e a Europa, a cultura foi ganhando o seu espaço: Marco António aumentou a colecção com livros provenientes dos reis de Pérgamo mas não tardou muito (no ano 48 antes da nossa era) até que César chegasse e transformasse tudo em cinzas. Reconstruída, a biblioteca voltou a ter as suas estantes preenchidas mas em 391 (há autores que apontam o ano de 640) tiveram uma vez mais como destino uma fogueira.
Alexandria mudou, há menos de 80 anos tinha uma população que não ultrapassava os 300 mil habitantes; hoje são mais de quatro milhões. O mesmo sucedeu com a biblioteca que, com o apoio da UNESCO, ocupa agora parte de um espaço de 80.000 m2 na zona onde supostamente se encontrava a antiga, em Selsela, na Corniche tantas vezes comparada ao Malecón de Havana, dominando o velho porto e expondo-se à luz tão clássica do Mediterrâneo.
Após um concurso internacional, em 1989, para a selecção do melhor projecto, a vencedora foi a firma Snohetta (nome de uma montanha no centro da Noruega que serve de cenário para o palácio Valhalla na mitologia norueguesa), que acabara de se estabelecer (nesse mesmo ano), tendo como figuras máximas Craig Dykers (nascido na Alemanha) e Kjetil Thorsen, autores de outros projectos mediáticos como o Memorial ao 11 de Setembro no lugar do World Trade Center e a transformação da Times Square numa área pedonal, ambos em Nova Iorque, bem como as aclamadas obras do Ballet Nacional Norueguês e a Casa da Ópera em Oslo e, mais recentemente, das novas notas de coroas norueguesas.
Com 11 andares, a nova Biblioteca Alexandrina tem espaço para mais de quatro milhões de volumes de livros, uma capacidade que pode aumentar para o dobro desde que se obedeça a uma arrumação mais compacta (para a qual está preparada) e tem ainda outras funções culturais e educacionais, como um planetário (uma estrutura separada e esférica situada junto à praça), alguns museus (como o dos manuscritos e de antiguidades) e uma escola de ciência de informação — não deixe de admirar a exibição permanente Impressões de Alexandria, que traça a existência da cidade através de pinturas, mapas e fotografias e, incluído no preço, uma visita guiada pela história da antiga biblioteca e o conceito e significado da que foi inaugurada em 2002.
Caracterizada pela sua inclinação e forma circular, a estrutura tem 160 metros de diâmetro e uma altura que supera os 30 (e desce outros 12 no solo), estando rodeada por uma praça ao ar livre e um lago envolvidos pela brisa que chega do Mediterrâneo, ao mesmo tempo que é atravessada por uma ponte pedonal que liga a cidade à Universidade de Alexandria.
O tecto, inclinado, remete o viajante para o antigo farol (guiava os navios e era o símbolo de ostentação da grandeza da cidade); para muitos é um disco, como um segundo sol que todos dias sobe das águas do Mediterrâneo, para outros a janela do mundo para o Egipto e, ao mesmo tempo, a janela do Egipto para o mundo. A importância histórica da antiga biblioteca e berço do conhecimento é perfeitamente evocada no formato curvo das suas paredes exteriores erguidas com granito proveniente das pedreiras de Assuão (como faziam os faraós para construírem os seus templos) e esculpidas com letras gigantescas, pictogramas, hieróglifos e símbolos de todos os alfabetos conhecidos (um trabalho que teve a colaboração de artistas como Jorunn Sannes e Kristian Blystad, tendo o cuidado de recorrer a métodos antigos de corte na pedra para criar a fachada).
O interior do projecto cujos custos totais terão chegado aos 200 milhões de euros não é menos impressionante: um espaço aberto que se estende por 20.000 m2 (ocupa mais de metade da área total da biblioteca) e com capacidade para dois mil leitores (não há outro, do género, no mundo), que se dividem ao longo de sete bancadas, um vasto território por onde entra a luz mas concebido de forma a que não esteja exposto directamente ao sol, tão prejudicial para livros e manuscritos.
Quando viro as costas à biblioteca, chega-me o cheiro do mar, o sussuro das ondas que se quebram sobre o passeio marítimo, como um estímulo para, partindo deste lugar onde cabe tanta sabedoria, enriquecer o meu conhecimento sobre os lugares por onde passaram, em diferentes fases, escritores como EM Foster (chegou a Alexandria há precisamente 100 anos), Konstandinos Kavafis e Lawrence Durrell. Chego a Sharia Fuad, sempre com as imagens da biblioteca presentes, e sento-me num café. Os aromas a narguilé enchem a atmosfera. Aqui bem perto vivia Nessim, o negociante copta tão presente no Quarteto de Alexandria (D. Quixote) de Durrell.
“Recordo-me de ter ouvido a Nessim certo dia — creio que o tinha lido em qualquer lugar — que Alexandria era o grande lagar do amor; os que escapavam eram os doentes, os solitários, os profetas, enfim, todos aqueles que tinham o sexo mutilado.”
Alexandria, o lagar do amor e o lugar do conhecimento. Como dizia Agostinho Silva, “leia.” “Como preparado há muito, como corajoso despede-te dela, da Alexandria que se vai embora.”
Leio Kavafis já em viagem para a pátria de Joyce, de Beckett, de Kavanagh, de W. B. Yeats, a capital irlandesa com um património literário que dificilmente encontra paralelo no mundo.
Dublin, Irlanda
A Clare Street está a meia dúzia de passos dos agradáveis parques verdejantes do Trinity College. Nesta rua, com os seus prédios de tijolo, caminhava um dia, em 1904, uma jovem que fazia limpezas no Finn’s Hotel. Pela mesma artéria, mas em sentido contrário, errava um homem que a olhou e logo caiu de amores. Abordou-a e marcaram um encontro para uns dias mais tarde. Ela optou por não comparecer e ele, cego na sua paixão, não se resignou e, na primeira oportunidade, convidou-a de novo, agora com sucesso.
Ela chamava-se Nora Barnacle; ele James Joyce. Nora Barnacle passou a ser a sua companheira, mais tarde a sua mulher. Mais ou menos à mesma distância, mas para o lado oposto ao do Trinity College, está a Merrion Square, onde Joyce queria encontrar-se com Nora. No percurso entre o hotel e a praça ambos passavam pelo número 21 da Clare Street, onde o pai de Samuel Beckett geria o seu negócio e onde este último começou a escrever a sua novela Murphy.
Por essa altura, em 1904, James Joyce começava a escrever Dublinenses.
O escritor irlandês e Nora Barnacle encontravam-se, segundo rezam as histórias, mesmo em frente à casa onde viveu William Wilde e onde o filho, Oscar Wilde, foi criado, um lugar que, com inusitada frequência, era palco de festas que se prolongavam madrugada dentro. Bram Stoker, autor de Drácula e que conhecia Oscar Wilde do Trinity College, era uma visita frequente da casa — e casou mesmo com uma antiga namorada do autor de, entre outros, O retrato de Dorian Gray.
A Clare Street e a Merrion Square estão intimamente ligadas à literatura irlandesa, a alguns dos seus nomes mais sonantes e, pelo menos para quem está identificado com estas intrigas — de outro modo são lugares vulgares na capital —, funcionam como uma espécie de anzol para uma imersão nesse admirável mundo que é a biblioteca do Trinity College, a universidade de Dublin.
Quando dela nos aproximamos, percorrendo agora a Nassau Street, uma artéria predominantemente comercial, parece envolta numa atmosfera rural, com as árvores e os espaços verdes que a rodeiam, numa quietude apaziaguadora. Fundada em 1592 pela rainha Isabel, numa tentativa de contrabalançar a influência papista, a universidade encarnava, até há bem pouco tempo, o Protestantismo da Coroa Britânica — com efeito, salvo uma autorização especial, até 1968 nenhum estudante católico (hoje representam dois terços) podia sentar-se nas cadeiras do Trinity College, eternamente associado a um bastião protestante e visto pela igreja católica, desde o século XIX, como um “perigo moral”. Por essa razão, o cardeal John Henry Newman criou, em meados do século XIX, em St. Stephen’s Green, a universidade católica de Dublin, onde James Joyce foi um aluno brilhante.
Samuel Beckett, Prémio Nobel da Literatura, estudou no Trinity College, um lugar mágico que abriga uma das mais bonitas bibliotecas da Europa (e a mais antiga do continente) e do mundo e que produz em quem a visita uma sensação de paz que tarda em dissipar-se. Anne Enright, vencedora do Man Booker 2007, com O encontro — como se falasse de Joyce e Nora —, também estudou, na década de 1970, no Trinity College, que todos os anos atrai meio milhão de visitantes, muitos deles em busca do Livro de Kells, uma compilação de evangelhos de uma beleza ímpar da autoria dos monjes da abadia homónima.
As estantes, repletas de livros, sobem, em dois andares, até um tecto abobadado, tudo de um castanho escurecido; são muitos, mas apenas uma pequena parte da colecção do Trinity College, mais de três milhões de um reportório que inclui um número considerável de obras no idioma irlandês, um catálogo de literatura infantil famoso em todo o mundo e ainda declarações assinadas na sequência da rebelião irlandesa de 1641, testemunhos de alguns protestantes que sobreviveram aos massacres dos católicos e que mais tarde, mas ainda na mesma década, serviram de argumento para a campanha de Cromwell, lançando as bases para um apoio público visando tomar medidas punitivas contra os irlandeses; no solo, um conjunto de colunas em madeira é encimado pelo mesmo número de bustos de eruditos que parecem contemplar o visitante com uma expressão que pretende conferir solenidade ao momento.
Retiro-me em silêncio, de volta às ruas da cidade literária, cuja herança está visível num pub, numa rua que ladeia um canal, um pouco por todo o lado.
“Trago o livro já fechado,
A leitura suspendi,
E miro o fogo, a bailar,
Nas tábuas do meu sobrado.”
James Joyce, Música de Câmara
Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro, Brasil
O primeiro impacto é provocado pela bonita fachada do edifício, em estilo manuelino, que se projecta contra um céu por onde se passeia um rebanho de nuvens, como pedaços de algodão.
Situado actualmente no número 30 da Rua Luís de Camões, a curta distância da Praça Tiradentes e do Largo de São Francisco, o Real Gabinete Português de Leitura já existia antes de ser erguido este prédio, no centro do Rio de Janeiro, Brasil. Na verdade, a sua fundação remonta a 1837 (celebra 180 anos em 2017) e teve como alicerces um grupo de 43 imigrantes portugueses, na sua maioria comerciantes mas também alguns refugiados políticos que haviam escapado ao absolutismo reinante em Portugal na época.
Não era, nesses primeiros anos do século XIX, muito numerosa a comunidade portuguesa naquela cidade brasileira mas, ainda assim, sentia uma necessidade premente de criar uma associação que, de certa forma, lhes permitisse “isolarem-se na doce recordação das coisas da pátria e na ilustração do espírito, pela leitura sã dos bons autores e dos periódicos da época.”
Para a materialização deste desejo, tão impregnado nas suas almas, muito contribuíram figuras como Rocha Cabral, definido como o verdadeiro mentor espiritual do centro associativo, e Alves Viana, a quem coube a redacção dos primeiros estatutos do Real Gabinete Português de Leitura. De forma gradual, o projecto começou a ganhar corpo, através da organização de catálogos para posterior aquisição de livros e obtendo, ao mesmo tempo, manuscritos raros e obras de autores portugueses que foram enchendo as estantes.
Em 1860, a associação contava já com mais de trinta mil volumes, um número que ultrapassou os cinquenta mil na década de 1880 — ano em que passou a ser vista como uma das mais importantes bibliotecas do Brasil (um estatuto apenas superado pela Biblioteca Pública do Rio de Janeiro). Contando já com uma vasta colecção, também por essa altura já havia mudado duas vezes de localização, começando por transferir-se daquela que foi a sua primeira sede, na Rua de São Pedro, para a Rua da Quitanda e, posteriormente, para a Rua dos Beneditinos.
Sempre pelos mesmos motivos — a falta de espaço —, nenhum deles satisfez as necessidades da associação que, em 1871, adquiriu um imóvel onde em tempos funcionou o Hotel São Pedro, na Rua da Lampadosa (nos dias de hoje Luís de Camões), com o intuito de confirmar as palavras do relator do parecer de contas no ano seguinte.
“O Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, terá um edifício digno de acolher os seus livros, os tantos milhares de bons amigos que aqui nos rodeiam neste acanhado tabernáculo, em cujos altares não cabe nem mais um ídolo. Erija-se pois o tempo, ou, mais parecidamente, construa-se o arsenal das armas da inteligência, onde o espírito venha revestir-se de aptidão e força para as grandes conquistas do progresso.”
Entre o lançamento da primeira pedra, a 10 de Junho de 1880, e a inauguração oficial passaram-se oito anos mas, finalmente, a obra pensada pelo arquitecto Rafael da Silva Castro enchia de orgulho a cada vez mais numerosa colónia portuguesa no Rio de Janeiro e atraía olhares de muitas outras nacionalidades.
Se o exterior seduz facilmente, funcionando como um corpo, o interior prende o olhar, como se da alma se tratasse. Ninguém escapa à beleza da clarabóia que deixa entrar a luz que ilumina o salão de leitura, ninguém se mostra indiferente às várias tonalidades que a decoram, às cores vivas das lombadas dos livros, à madeira, aos bustos e aos números que ostenta, com cerca de 350 mil volumes que incluem obras raras de Luís de Camões (Os Lusíadas de 1572) e mesmo o manuscrito de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, bem como centenas de cartas de escritores.
Washington, EUA
A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, na colina do Capitólio, em Washington, impressiona pelos números: no total, são mais de 160 milhões de itens que se estendem por estantes que ocupam, na sua totalidade, quase 1350 quilómetros. Ocupando três edifícios, o Thomas Jefferson, o John Adams e o James Madison Memorial, a biblioteca é considerada a maior do mundo, com um acervo constituído por 38 milhões de livros e de outro material impresso, 3,6 milhões de gravações, 5,5 milhões de mapas, mais de sete milhões de partituras, 14 milhões de fotografias e 70 milhões de manuscritos.
Todos os dias, a biblioteca recebe, em média, 15 mil itens, dos quais cerca de 80% são acrescentados à colecção no mesmo dia, dispondo, para tanto, de escritórios espalhados por cidades como Nova Deli (Índia), Cairo (Egipto), Jacarta (Indonésia), Rio de Janeiro (Brasil), Nairobi (Quénia) e Islamabad (Paquistão) que se encarregam de pesquisar, adquirir e catalogar material proveniente de outros 60 países.
Fundada a 24 de Abril de 1800, após decreto assinado pelo então presidente dos Estados Unidos, John Adams, a biblioteca que é a instituição cultural mais antiga do país foi incendiada a 24 de Agosto de 1814 na sequência da invasão das tropas britânicas, destruindo cerca de três mil volumes. Mas, logo em Janeiro do ano seguinte, o Congresso aprovou a compra da biblioteca privada de Thomas Jefferson, terceiro presidente e um dos principais autores da declaração de independência dos EUA, um total de quase 6500 livros que foram adquiridos por pouco menos de 24 mil dólares. Anos mais tarde, em 1851, também devido a um incêndio, sofreu danos irreparáveis, com a perda de 35 mil volumes e de um retrato original de Cristóvão Colombo.
Tendo como missão apoiar o Congresso no cumprimento dos seus deveres constitucionais e de promover o progresso do conhecimento e da criatividade, tudo em benefício do povo americano, a biblioteca desenvolveu também um sistema de classificação próprio, usado noutras bibliotecas universitárias e como importante ferramenta de investigação.
Os números voltam a impressionar: mais de metade da sua colecção de livros e outras publicações não está escrita em inglês — na verdade possui uma amostra representativa de 470 idiomas que inclui a mais expressiva (fora da Rússia) compilação de material na língua russa (perto de 800 mil exemplares), entre outros máximos.
As raridades também abundam: o livro mais pequeno deste templo da literatura é o Old King Cole, cujas páginas apenas podem ser percorridas com a ajuda de uma agulha; o maior, com 1,52X2,13 metros, é uma obra a cores que contém imagens do Butão; possui também uma tábua cuneiforme que data de 2040 a.C, bem como documentos de mais de duas dezenas de presidentes dos Estados Unidos e, finalmente, um verdadeiro tesouro da biblioteca, uma Bíblia de Gutenberg, um trabalho do século XV em velino que foi comprado em 1930.
É com um sentimento de pena que se deixam aquelas escadas no interior e, já na rua, se vira as costas à sua admirável fachada, também decorada com uma bonita escadaria.
Sydney, Austrália
E é com um sentimento de prazer que se entra na soberba Biblioteca Pública do estado de Nova Gales do Sul, em Sydney, na Austrália, e quando, durante alguns minutos, se lança olhares, desde um patamar superior, à sala de leitura Mitchell, com o seu tecto envidraçado e os seus livros ameaçando tocar-lhe. Mitchell é, na verdade, uma das três alas que formam a biblioteca, ficando a dever o seu nome a David Scott Mitchell, que doou a sua valiosa e enorme colecção ao povo de Nova Gales do Sul, impondo como condição que fosse erguida uma biblioteca separada para a albergar.
Por essa altura, no virar do século XIX, já o espaço se mostrava reduzido para abrigar um cada vez maior número de obras e o legado proporcionado por David Scott Mitchell serviu como estímulo para se darem início aos trabalhos que se prolongaram por quatro anos, entre 1906 e 1910, tornando-se no primeiro espaço, em todo o país, com conteúdo exclusivamente australiano.
Embora com outra designação, a biblioteca (que também foi conhecendo diferentes localizações) nasceu em 1826, para satisfazer os desejos de colonos desesperadamente à procura de um livro para lerem. Mergulhada em dívidas, foi comprada pelo governo de Nova Gales do Sul em 1869 por uma quantia irrisória e abriu as suas portas em Setembro desse mesmo ano, com um total de 20 mil volumes.
Aos poucos, foi crescendo: quase vinte anos depois da conclusão das obras na ala Mitchel, era inaugurada (e ligada àquela a sul) a ala Dixson, para armazenamento e também para acolher a vasta colecção de pinturas (algumas de artistas que acompanharam James Cook nas suas viagens exploratórias) de William Dixson, um homem de negócios, benfeitor e coleccionador de, entre muitas outras coisas, mapas antigos, moedas, selos, medalhas, livros e manuscritos, a maior parte focada na Australiana (tudo o que diz respeito à Austrália e às suas origens) mas também com itens europeus.
Ao mesmo tempo, a biblioteca ganhava beleza estética no seu interior, tanto na ala Mitchel, como na Dixson, onde muitos olhares se concentram no pórtico e no vestíbulo, especialmente neste último, com uma reprodução do mapa da Tasmânia em mosaico de pedra.
Bem mais recente é a ala conhecida como Macquarie Street, por estar virada para esta rua. Inaugurada apenas em 1988 (após cinco anos de trabalhos), numa cerimónia a que assistiram a rainha Isabel II e o princípe Philip, está ligada à ala Mitchell por uma ponte e por passagens subterrâneas, um projecto que teve a assinatura do arquitecto Andrew Andersons, nascido em Riga, na Letónia, mas que se mudou para a Austrália com a sua família quando tinha sete anos.
Pequim, China
Na China tudo é grande e a Biblioteca Nacional da China, em Pequim, não constitui excepção: com quase 35 milhões de itens, é a maior da Ásia e uma das maiores do mundo, com uma impressionante colecção de literatura chinesa e de documentos históricos de diferentes partes do globo.
Fundada em Setembro de 1909 pelo governo da dinastia Qing, apenas abriu as suas portas oficialmente em 1912 (após a Revolução Xinhai, também conhecida como Revolução de 1911 e que depôs a última dinastia imperial), numa altura em que já muitas províncias da China possuíam um espaço dedicado ao livro, um desejo que nasceu muito por culpa dos relatos de viajantes chineses que, percorrendo alguns países ocidentais, se aperceberam de como as bibliotecas atraíam um grande número de leitores.
Muitas das preciosidades da biblioteca são, com efeito, alusivas às dinastias que marcaram a história da China, bem como o Siku Quanshu, a biblioteca completa em quatro secções, uma compilação que nos remete para o período Qianlong da dinastia Qing e que foi a maior obra antes do país abraçar a modernidade, num total de mais de 36 mil volumes e mais de seis mil caixas que estão divididas por mais de uma centena de estantes.
Ocupando uma área que se estende por 170 mil metros quadrados, a biblioteca tem de tudo um pouco (neste caso muito): milhares e milhares de livros antigos, milhões de outros costurados, inscrições em ossos oraculares, ideogramas gravados em cascos de tartaruga, manuscritos das grutas de Mogao, também conhecidas como as Cavernas dos Mil Budas e escavadas no ano de 366, no noroeste do país, cópias de sutras budistas do século VI, entre muitas outras colecções belas e raras.
Por vezes, sento-me num dos bancos do jardim, agora de pedra, onde em tempos existia um pequeno lago, com umas pedras irregulares, com os seus peixes vermelhos e alaranjados. O cheiro das tílias desapareceu. O coreto não é mais do que uma memória que se afasta. Só o sino vai repicando, como sempre, recordando-me que o tempo não se detém. Fico por ali, sereno, à espera daquele carro cinzento que primeiro, mal dobrava a curva, mostrava o seu focinho.
Espero em vão. É como se aquela ausência roubasse uma parte da minha vida. Mas os livros, esses, continuam vivos.
As bibliotecas de Portugal
Viajar torna o ser humano mais rico mas, ainda que valha a pena, não é necessário passar a fronteira para ver algumas das mais belas bibliotecas do mundo. Algumas delas estão em Portugal.
Na Universidade de Coimbra encontramos a Biblioteca Joanina, essa obra-prima do Barroco que começou por ser a Casa da Livraria, construída entre 1717 e 1728 — mas recebeu os primeiros livros apenas em 1750 — e que presta homenagem àquele que é considerado o seu patrono, D. João V.
O interior faz abrir a boca de espanto, com as suas colunas, as suas estantes de madeira de carvalho revestidas de folhas de ouro, com quase 60 mil volumes, os seus motivos chineses, as suas cores, os pavimentos e os tectos. Para que melhor se preserve, conta com uma colónia de morcegos que tratam de afastar os insectos, perpetuando a vida dos livros.
No Palácio Nacional de Mafra mora outra biblioteca que merece uma visita demorada, com os seus quase 40 mil volumes e raridades do século XV, algumas bíblias e partituras de autores portugueses e estrangeiros; em Lisboa, é imperdível a biblioteca da Academia de Ciências, significativamente alargada quando recebeu o espólio da Livraria do Convento de Jesus, da Ordem Terceira, contendo um pergaminho do século XII, obras dedicadas ao mundo científico e com proveniências distintas, de países árabes à China, entre outros.