Fugas - Viagens

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Dois repórteres numa viagem de 34.798 quilómetros

Por Andrea Sachs

Partiram dos Estados Unidos, mas a verdadeira aventura começou em Reiquejavique. Acabaram em Hong Kong, e pelo meio houve Suécia, Madagáscar, Índia, Singapura. Só descansaram ao 21.º dia – vários copos de água gelada selaram o fim da viagem.

Se ao menos tivéssemos 80 dias. Infelizmente, não faremos as generosas férias de Júlio Verne, mas temos quase três semanas – tempo mais que suficiente para dar uma voltinha rápida pelo mundo. Na nossa circum-navegação vamos pousar em cinco continentes, um Estado-ilha e uma antiga colónia britânica que agora é administrada pela China. Os segmentos por terra irão de umas breves 24 horas (Reiquiavique, na Islândia) a três langorosos dias (Seychelles). Para cada destino, embarcaremos numa minicaça ao tesouro: temos de visitar um ex-líbris, comer um prato local e arranjar uma lembrança. Ao longo de 20 dias, completaremos milhares de quilómetros e vários fuso-horários em quatro continentes. E ao 21.º dia descansaremos.

Dia 1: Reiquejavique, Islândia

População: 331.918
Célebre por: banheiras naturais, vikings, peixe fermentado, Bjork e um gosto por elfos
Obrigatório ver: lagoa Azul
Obrigatório comer: hakari (tubarão fermentado) ou cabeça de carneiro na azafamada cafetaria BSI na estação de autocarros
Lembrança: chapéu de lã islandês

Nenhum de nós usou a palavra d… Só tínhamos 24 horas em Reiquejavique; podíamos dormir no voo para Estocolmo. O Jabin Botsford (repórter fotográfico) e eu deslocámo-nos pela ilha como o vento islandês, que parecia empurrar este país do Norte para mais perto da Gronelândia.

Cerca de uma hora depois de chegarmos de um voo de quase seis horas, estávamos à beira do Círculo Dourado, uma zona 300 quilómetros com elementos geológicos que borbulham, cospem e pulverizam. O circuito permite a visitantes rústicos como nós uma alternativa à [estrada periférica] Ring Road, de 1400 quilómetros, que exigiria pelo menos uma semana da nossa devoção.

Com os olhos turvos e o céu limpo, dirigimo-nos para a primeira atracção do caminho, o Kerio, um lago numa cratera vulcânica que, com os seus três mil anos, é ainda um bebé.

A descida em gravilha até à caldeira dava a sensação de estarmos a andar com grãos de café debaixo dos pés. Caí mais vezes durante essa curta caminhada do que durante os dois últimos invernos. Felizmente que a aterragem era suave. E eu não era a única na multidão a tropeçar. Um pai e uma mãe criaram um comboio humano com a filha e o filho pequeno – que acabou por ser derrotado pela gravidade. Felizmente, o deslizamento parou mesmo em cima da berma; um passo em falso para a água gelada e tornávamo-nos instantaneamente um gelado de pau.

No Gullfoss, ou “Cascata Dourada”, a água do rio Hvita caía libertando flocos de espuma branca que pairavam no ar. Ao longe, as montanhas carregavam estolas de neve sobre os ombros. O vento começava a soprar mais forte e obrigava-me a resistir a estas mãos invisíveis que me empurravam. A força aumentava ainda mais nas termas de Geysir, um local a borbulhar de actividade geotermal.

No pequeno passeio para Strokkur, que a cada quatro a oito minutos liberta vapor, o meu lenço voava como um papagaio de papel e as minhas luvas foram parar a um ribeiro próximo de uma fonte de água a ferver. Eu sabia que tinha de agir rapidamente, não podia esperar até chegar às lojas da capital. Entrei numa loja no outro lado da rua e, poucos minutos depois, voltei para o campo com a minha nova armadura, um chapéu de lã islandês. Às vezes um souvenir é mais do que uma recordação; é uma ferramenta de sobrevivência.

A meio da tarde completámos o círculo e voltámos para Reiquejavique para umas belas diversões. Apanhámos o elevador para o miradouro da igreja de Hallgrimskirkja, com 74,50 metros, e sentámo-nos em bancos altos para ficar a contemplar a cascata de edifícios até ao mar, que ao mesmo tempo mantêm uma distância cerimoniosa das montanhas.

Depois, no cais, o Jabin foi para a fila do Bæjarins Beztu Pylsur, cujo nome se pode traduzir como “o melhor cachorro quente da cidade”. Quando chegou a sua vez, pediu um hot dog com tudo a que tinha direito (cebola, mostarda doce, molho de maionese) e uma Coca-Cola. Um empregado serviu o cachorro quente e colocou-o num suporte em madeira estreito no balcão. “Sinto o sabor do borrego”, disse Jabin, analisando a mistura de proteínas.

À 12.ª hora na Islândia, chegámos finalmente a uma das maiores atracções do país, a lagoa Azul. Os hóspedes do spa geotermal cumprem um ritual que inclui uma chuveirada e amaciador para proteger o cabelo. Na piscina, que deita vapor como um caldeirão, andámos-nadámos até ao bar, onde ele pediu sidra e eu recuperei energias com um sumo de laranja, cenoura e gengibre. Depois de uma passagem vagarosa por uma zona de água quente, fomos fazer um tratamento à pele e tirámos uma argila de areia branca de uns potes. Espalhei-a na cara como se fosse uma sanduíche. Um empregado aconselhou-nos a deixá-la ficar durante uns 15 ou 20 minutos. Eu deixei o dobro do tempo, contemplando o meu ar de mimo. Depois seguimos para o segundo tratamento, uma máscara de algas. Disseram-nos que a tirássemos ao fim de dez minutos. Levei a minha cara verde para um lugar menos habitado. Procurei um local sossegado ao pé de umas rochas de lava. Ainda faltavam várias horas até poder d…, por isso o mínimo que podia fazer era relaxar durante alguns minutos.

Dias 2-4: Estocolmo, Suécia

População: 9,8 milhões
Célebre por: viagens entre ilhas e ilhéus, design minimalista, ABBA, palácios reais, formas de viajar medievais.
Obrigatório ver: Junibacken, um museu dedicado a livros de crianças e personagens como a Pipi das Meias-Altas.
Obrigatório comer: almôndegas
Lembrança: o cavalo Dala

Quando entro numa loja da H&M nos Estados Unidos, pergunto-me muitas vezes se os suecos também fazem lá compras. Afinal, a cédula de nascimento desta cadeia de roupas diz “Vasteras, Suécia”. Pouco depois de aterrar no nosso segundo destino, a quase três horas de voo da Islândia, preparei-me para conhecer a verdade. Dentro da loja gigantesca no centro de Estocolmo, fingi interessar-me por padrões tribais só para espiar os sotaques dos outros. Saí com a minha resposta (sim, eles usam aquilo) e mais um par de brincos de 10 dólares a contrariar a ideia de que a Suécia é ridiculamente cara.

Estocolmo é uma cidade cosmopolita, a par de outras grandes cidades ocidentais. Os locais usam uma farda urbana, preto com preto, e envergonham os monolinguistas pela facilidade com que mudam para o inglês. Mas os suecos também seguem as tradições que eu achava que não passariam de estereótipos, e que afinal são verdade. “Como almôndegas em casa”, disse-nos o empregado de mesa em Slingerbulten. “Comemo-las a qualquer dia da semana.”

O Jabin pediu hemmagjorda kottbullar med graddsas, rarorda lingon, pressgurka och potatismos, o que no prato se traduziu por quatro almôndegas cobertas de molho, acompanhadas por puré de batata, pickles e um punhado de groselhas cor de rubi. Enquanto conversávamos com o empregado de mesa, fomos interrompidos por uma erupção de canto na sala em frente. Ele falou-nos do hábito sueco de cantar sempre antes de um copo de aquavit. Na mesa ao lado da nossa, largaram os talheres e juntaram-se ao coro.

O Jabin engoliu as suas almôndegas e saímos antes do segundo round.

Como recordação, tinha uma ideia na cabeça (que mantive secreta) mas tive medo que nenhum sueco moderno ousasse ter aquela coisa em particular que eu ambicionava. Na K&U, uma loja de roupa na ilha de Sodermalm, vi um par de tamancos, e enquanto um dos empregados foi buscá-los pedi ajuda aos outros funcionários. A filha do dono da loja apontou para os sapatos de madeira e disse: “Aqueles ali.” Como segunda opção, recomendou um cavalo Dala (pronto, o segredo está revelado) e assegurou-me que a família tem várias dessas figuras de artesanato em madeira. Mandou-me para o Ahlens City, os maiores armazéns da cidade, fundados em 1899. Encontrei lá várias prateleiras de cavalos, no quarto andar, perto de um balcão de informações de turismo (sim, é tão gigante quanto isso). Escolhi um cavalo Dala encarnado, com uma flor artística e folclórica pintada nas costas e uma risca preta no focinho.

O Museu Vasa, que se diz ser o museu mais visitado da Escandinávia, conta uma história alarmista sobre o design sueco – mas, para defesa do país, os holandeses também foram responsáveis pela tragédia. Em 1628, partiu para o mar um navio de guerra de 68 metros, enviado pelo rei Gustavo Adolfo, que pretendia dominar o Báltico. A embarcação, construída por um armador holandês, afundou a menos de dois quilómetros da costa. O Vasa ficou no fundo do mar durante 333 anos até ser resgatado, restaurado e transportado para um edifício, a salvo de mares instáveis e caprichos reais.

O museu fica no Royal National City Park, que abriga várias instituições culturais, carvalhos e criaturas da floresta. Em Junibacken, do lado oposto ao museu, consegui esgueirar-me entre carrinhos de bebé e entrar numa infância sueca. “Ando a lê-los desde que tenho três ou quatro anos”, diz uma mulher jovem com o Story Train nas mãos, uma viagem mágica às histórias de Astrid Lindgren [escritora sueca de livros infantis, como a Pipi das Meias Altas]. “Esta parte faz-me sempre chorar.”

Na rua, reparei numa lenta fila de carros atrás de militares montados em cavalos e uma carruagem. Perguntei a uma moradora de que procissão se tratava. Ela disse que o rei Carlos Gustavo XVI fazia 70 anos no dia seguinte e supostamente iria dar uma festa ali perto. Tudo muito novo para mim e muito velho para os suecos.

Dias 5-7: Antananarivo, Madagáscar

População: 23,8 milhões
Célebre por: lémures, camaleões, lémures, sapos, lémures, embondeiros, lémures
Obrigatório ver: Parque Nacional Andasibe-Mantadia
Obrigatório comer: ravitoto
Lembrança: baunilha de Madagáscar

Quanto ansiávamos ver lémures? Tanto qu e passámos quase 24 horas entre Estocolmo e Madagáscar, com uma directa, duas escalas (Paris e Seychelles) e quatro refeições de avião semicomestíveis (entre os pratos: um burrito gorduroso com salada de frutas, ratatouille e arroz com uma salada de cenoura cremosa, e montes de pão embalado em saquinhos).

Tanto que ficámos fechados durante mais de cinco horas num carro aos ziguezagues por estradas cheias de camiões, crianças em marcha, vendedores de lagostins, e carrinhos empurrados por zebus, o gado local. Tanto que sacrificámos o sono muito necessitado, levantando-nos cedo para ver os lémures diurnos e ficando acordados até tarde para fazer passeios (com horas de jet-lag) de forma a ver os noctívagos (a solução para a falta de sono: dormitar em cada viagem de carro, por muito curta que fosse). Também superámos lesmas, mosquitos da malária e gigantescas teias de aranha que desciam como cortinas na floresta. Tudo por um primata.

Mas os lémures não são um animal qualquer e Madagáscar não é um país africano qualquer. A ilha ao largo da costa oriental abriga todos os lémures selvagens do mundo: 105 espécies. E eles estão praticamente por todo o lado.

O Parque Nacional Andasibe-Mantadia é um dos quatro habitats dos lémures mais próximos da capital, Antananarivo, uma metrópole clamorosa, com prédios coloridos nas colinas entre campos de arroz e campos secos. A reserva conta com uma dúzia de espécies de lémures, entre outras criaturas, como pássaros (muitos endémicos), camaleões, sapos, cigarras, borboletas, bichos-pau e muitas aranhas diferentes. Começámos no sector de Mantadia, que só é acessível através de um caminho de gado em terra batida.

Ficaram a doer-me as costas, não dos 90 minutos de empurrões, mas por tentar virar-me para conseguir uma posição semi-horizontal para descansar. O sofrimento do Jabin foi muito pior: a sua cabeça não parava de bater, como se estivesse a simular um “truz truz” na janela do carro.

O nosso guia, Liva, era como uma enorme dose de cafeína. Estava em profunda comunhão com a natureza (os pássaros respondiam mesmo aos seus chamamentos) e o seu entusiasmo pela vida selvagem manteve-nos acordados. Entrámos no interior da selva, pisando raízes e fugindo de grossas teias de aranha.

Ao longe ouvíamos os gritos dos lémures pretos e brancos, um som que parecia a versão em heavy metal dos cantos das baleias. Apurando o ouvido, Liva seguia as vozes até à sua origem. Enquanto víamos uma família a defender o seu território dos intrusos (nós?), Liva andava à procura de outras espécies. Regressou com alguns achados: lémures peludos e dorminhocos (que inveja), o raro lémur de barriga vermelha, os Sifakas diademados, também conhecidos como lémures dançarinos, que parecem usar perneiras cor-de-laranja.

Às vezes as pessoas vêm ao parque e não vêem lémures nenhuns”, diz ele. “Vocês viram quatro espécies. Tiveram sorte.”

Ao contrário do que aconteceu com as minhas calças de ganga, que se rasgaram numa das subidas, a nossa sorte com os lémures continuou. Acrescentámos à lista o lémur-bamboo e o lémur vulgar castanho na ilha dos Lémures, um refúgio para os lémures resgatados de situações domésticas. Nos passeios nocturnos, demos de cara com os olhos de Beanie Boo dos lémures-rato e vimos um camaleão mudar de cor de amarelo banana para um laranja mais chique com riscas verdes.

O indri, um dos lémures maiores, deu o pontapé de partida ao nosso passeio matinal em Andasibe. Uma família de quatro saltou-nos para a cabeça, propulsionados pelas suas patas felpudas brancas, com as suas mãos de aparência humana a chegar ao tronco oposto. A visita terminou com os lémures dançarinos – demasiado ocupados a tirar mangas-morango das árvores para poderem dar atenção ao público atento lá em baixo.

De volta ao parque de estacionamento, exausta mas exultante, voltei a ouvir os rugidos do indri. “Eles estão a dizer adeus”, diz Liva.

Na manhã seguinte, fomos nós a fazer as despedidas – com menos decibéis, claro. Adeus, funcionários amáveis do lodge Eulophiella, que rompeu com o menu pré-definido para nos preparar ravioto, uma refeição típica feita com folhas de mandioca, misturadas com carne de zebu. Adeus, Josefa, a nossa guia sempre alegre, que durante a nossa louca corrida para o aeroporto conseguiu encaixar o nosso pedido para comprarmos baunilha do Madagáscar, a recordação que tínhamos escolhido. Adeus, Raymond, o motorista que conduziu pelo trânsito sinuoso de Antananarivo como um rude nova-iorquino. E um adeus especial aos lémures. Infelizmente, teremos de vos deixar para trás durante a nossa ida para as Seychelles. Afinal de contas, vocês são endémicos.

Dias 8-11: Mahe, Seychelles

População: 92.430 habitantes
Célebre por: praias, reservas naturais e parques marinos, cultura crioula, desportos aquáticos, ilhas de corais
Obrigatório ver: Reserva Nacional Vallée de Mai
Obrigatório comer: caril de frango com coco
Lembrança: artesanato em coco

Era inevitável. Vamos passar por um percalço – ou, dependendo de quem conta a história, uma chatice das grandes.

Nos três primeiros países, mantivemo-nos fiéis ao itinerário com a maior das facilidades. O nosso único atraso durou apenas uma hora, e o avião acabou por sair de Estocolmo antes da hora estimada no ecrã das partidas. A minha tensão arterial nem sequer teve hipóteses de subir.

Até que chegámos às Seychelles.

Um pouco de informação de background: planeámos sair de Mahe, a maior ilha do arquipélago leste-africano e a nossa base, com destino a Praslin, uma ilha próxima com um local classificado como património mundial pela UNESCO. O agente dos EUA dissera-nos para estarmos prontos para uma saída às 8h; um representante no Aeroporto Internacional das Seychelles avisou-nos que o motorista só chegaria às 9h. Depois de processar a mudança de horários, lancei ao Jabin uma expressão semelhante àquela que se usa quando se ganha a lotaria: uma hora extra de sono.

Na manhã da nossa excursão, estava indulgentemente na cama, olhando deleitada para as palmeiras do lado de fora da janela, quando ouvi bater na porta e uma voz estranha a dizer ao Jabin que a nossa boleia tinha chegado. Olhei para o telefone: 7h. Corri à porta. A mulher disse-me que o avião iria descolar dentro de pouco tempo, teríamos de partir AGORA.

Não quero acusar ninguém, mas pronto, é o que vou fazer: o funcionário do aeroporto deu-nos as indicações erradas. Mas o meu telemóvel também teve culpa: ainda estava com a hora de Madagáscar, uma hora mais cedo. Perdemos o voo, e o seguinte, e o ferry – uma alternativa para viajar entre as ilhas. No aeroporto deixámos os nossos nomes numa lista de espera para a partida das 11h30. Afundei-me numa cadeira de plástico, sentindo-me como um estudante delinquente chamado ao gabinete do director. O meu castigo: não houve viagem para Praslin naquele dia. (Deixámos a visita para o dia seguinte e conseguimos).

Em vez de desmoralizar, virámos a adversidade de pernas para o ar. Conduzimos (do lado esquerdo, uma reminiscência do jugo britânico) até Victoria, onde passámos uma tarde soalheira-chuvosa-soalheira. A capital compacta mistura estilos das antigas potências coloniais com as cores e texturas da cultura africana. Uma sinfonia de inglês, francês e crioulo invade as ruas.

Fomos procurar uma lembrança, fugindo dos produtos fabricados na China, no centro de artesanato caseiro Cooperative des Artisans, que os britânicos criaram na década de 1930 para promover os talentos locais. Vagueei por entre os cestos de ráfia e bolsas feitas por três senhoras de idade, mas o Jabin não apoiou a ideia: aquele delicado trabalho de mãos nunca resistiria aos tombos da viagem, sobretudo às cabines dos aviões. O responsável da loja sugeriu um artesanato mais resistente do tamanho de um minibagel e que parecia... bem, digamos simplesmente que o placard da floresta de palmeiras em Praslin descreve a forma da semente como “pornográfica”. A peça era uma imitação em miniatura do lodoicea, o maior coco do mundo, que só cresce nas Seychelles. O Governo protege e regula estes frutos gigantes, que vende a centenas de dólares. Eu precisaria de mais alguns milhares de rupias para comprar a coisa verdadeira, para além de um saco de bowling para o transportar até casa.

Os cocos são um tema recorrente na ilha. O nosso prato tradicional, que conseguimos no restaurante Bonbon Plume em Praslin, era caril de frango com coco (dispensámos os morcegos-da-fruta).

Para a nossa visita obrigatória, andámos pela Reserva Natural Vallée de Mai (protegida pela UNESCO), um dos dois únicos locais do país onde a palmeira do coco de mer cresce. Em praias de areia branca entretive-me a chutar cocos de tamanho de bolas de râguebi, e reparei que o gelado de coco tinha lugar de destaque nas ementas.

No ferry de volta a Mage, víamos as palmeiras a encolher no horizonte até ficarem do tamanho de lápis. O céu pôs-se vermelho com pinceladas de laranja. A meio da viagem, alguns passageiros com sacos na mão correram para o exterior, para apanhar ar. Ofereci-lhes um sorriso consolador e virei o olhar para o pôr do sol e mais além – para a Índia, o nosso próximo destino.

Dias 12-14: Bombaim, Índia

População: 1250 milhões
Célebre por: templos hindus, Bollywood, praias, compras desenfreadas, trânsito ainda mais desenfreado, caril, ioga
Obrigatório ver: Porta da Índia e Grutas de Elephanta
Obrigatório comer: biryani
Lembrança: pulseiras da Colaba Causeway

Percebi que estava a fazer sérios progressos nesta viagem à volta do mundo quando comecei a reconhecer os nomes dos pilotos (olha, é novamente o piloto Patrick da Air Seychelles), deixei de calcular as diferenças horárias (programei o meu relógio para “Agora”) e já praticamente sabia de cor o número do meu passaporte (448*******). Outro sinal: no nosso próximo destino, o principal item da lista relacionada com a roupa era precisamente lavar roupa.

Antes de deixar Washington, eu e o Jabin tínhamos concordado em levar pouca coisa para não termos que despachar malas. Tínhamos esperança de que as nossas escolhas limitadas mas ponderadas fossem suficientes para os pontos extremos dos termómetros – a abordagem de vestir por camadas. Mas houve sujidade, suor e lambidelas de lémures. Tínhamos previsto lavar roupa nas Seychelles até sabermos que as instalações mais próximas ficavam noutra ilha. Quando chegámos a Bombaim, depois de um voo de quase cinco horas, estávamos ansiosos por uma máquina de lavar e secar. O Jabin estava a sobreviver com dois pares de cuecas e meias, uma T-shirt branca e um par de calções. Eu tentava impedir três vestidos lavados de serem contaminados por calções cobertos de lama encarnada e amoras, uma saia encrustada em sal do oceano Índico e por um fato-de-banho que cheirava a sulfúrio.

Antes de começarmos a explorar Bombaim, um centro financeiro ofuscado por Bollywood, ponderámos as nossas opções: pagar pelo serviço de lavandaria do hotel (dois dólares por peça), lavar a roupa à mão na banheira (o Jabin tinha um pacote de Tide) ou acrescentar algumas peças ao nosso rigoroso guarda-roupa. Mas quaisquer novas adições poderiam pôr em risco o nosso delicado ecossistema de bagagem. (Até chegarmos à Índia tínhamos sido prudentes nas compras, comprando apenas presentes do tamanho da palma da mão ou achatados). O Jabin esfregou algumas peças, esperando que secassem nos dois dias até à nossa partida. Eu, pelo contrário, decidi ver o que passava pelas passerelles de Bombaim nesta estação.

O Sul de Bombaim fica na ponta da cidade e pode-se facilmente molhar os pés no mar Arábico para arrefecer. Muitos dos edifícios lembram bem o Raj britânico, como o arco da Porta da Índia, construída em 1924 para assinalar a visita do rei Jorge V e a rainha Maria. Multidões de turistas, de muitas partes da Índia, juntam-se à volta do monumento para tirar fotografias uns aos outros e ao lado de uma estranha ocidental (agora apareço em mais de uma dezena de fotografias de família, incluindo uma em que estou a segurar o bebé irrequieto de alguém), ou para celebrar momentos especiais como casamentos e aniversários (procurem mulheres de vermelho), ou ainda para apanhar o ferry para as grutas de Elephanta, uma antiga galeria de pedra com deuses hindus esculpidos e com vacas e macacos de verdade à solta.

Há longas filas de lojas e bancas por trás do Taj Mahal Palace, o hotel que fica do lado oposto ao arco. A caminho da Shahid Bhagat Singh Road, onde íamos comprar pulseiras, conhecemos uma mulher determinada, que usava um sari azul-marinho, e que se nomeou nossa guia de compras. Levou-nos a uma loja que tinha o tamanho de um armário, repleta de tecidos. Jabin escolheu um tecido e um modelo e ficou parado sem se mexer enquanto um assistente lhe tirava as medidas. O proprietário disse-nos para voltarmos às cinco da tarde para buscar a camisa. Até lá, vagueámos pela Colaba Causeway, comprando sapatos de Caxemira a este vendedor, um vestido de algodão com o seu próprio sistema de ventilação (mangas em borboleta) àquele e alguns conjuntos na Fabindia, uma cadeia de lojas especializada em criações artesanais.

Quando o sol se pôs, não havia dúvidas de que tínhamos roupas limpas. Nem me preocupei quando entornei biryani por cima de mim, no Bademiya, um restaurante de bairro. Tinha um saco cheio de substituições.

Antes de regressarmos ao hotel com os nossos sacos, sentámo-nos no salão de beleza e esticámos as mãos. Uma artista desenhou flores, gavinhas, trepadeiras, cornucópias e gotas no meu pulso e na minha mão. Também fez desenhos de noiva na pele do Jabin. Explicou que o mehndi é uma decoração tradicional para as futuras noivas, que as cobre das pontas dos dedos aos cotovelos e das pontas dos pés a meio da perna. A tinta à base de plantas tem também propriedades que ajudam a acalmar as pessoas que estão prestes a embarcar numa aventura stressante, como é o casamento, ou a preparação das malas para a etapa de Singapura, numa viagem à volta do mundo.

Dia 15: Singapura 

População: 5,67 milhões
Célebre por: arquitectura moderna, bairros multiculturais, comida de rua, limpeza
Obrigatório ver: Buddha Tooth Relic Temple and Museum ou o Singapore Flyer
Obrigatório comer: tosta kaya
Lembrança: chocolates Merlion, Tiger Balm

Os ouvidos foram os primeiros a relaxar, depois o resto. Ninguém estava a apitar as buzinas, ou a falar acima dos decibéis de um bebé a dormir. Estávamos em Singapura, um intervalo entre as actividadades desportivas da Índia e Hong-Kong. 

Depois da aura pneumática de Bombaim, a correria da ilha cidade-Estado era tão suave como um par de auscultadores com isolamento em veludo. Quando entrei no táxi, depois de um voo nocturno de cinco horas e meia, deixei-me levar pela calma com que o motorista descrevia as atracções que iam aparecendo pelo caminho (os Jardins Botânicos, o templo hindu Sri Mariamman) e recomendava actividades (os parques temáticos da ilha de Sentosa, fazer compras na Orchard Road). Depois de se enganar no desvio para o hotel, encostou e desligou o taxímetro para se desculpar. Eu e o Jabin teríamos menos de 30 horas em terra, e facilmente conseguiria passá-las a passear dentro deste carro tranquilo.

Nesta altura já estávamos habituados a vaguear num estado meio zombie e sabíamos exactamente do que precisávamos para nos juntarmos ao reino dos vivos: uma tosta kaya. Esta comida de pequeno-almoço facilmente se encontra em qualquer bairro, a qualquer hora do dia. Fomos procurar a versão mais autêntica, recuando no paladar a uma Singapura do início do século XX. (O restaurante minúsculo que escolhemos ficava num centro comercial no People’s Park Centre, por isso foi preciso alguma imaginação para essa viagem no tempo).

A Ya Kun Kaya Toast, uma cadeia com mais de 50 lojas espalhadas pela Ásia, foi fundada por Loi Ah Koo, um imigrante da ilha chinesa de Hainan que trabalhava num café, servindo quem aparecia: operários, comerciantes, maquinistas de barcos, especuladores. Num espírito empreendedor, ele e a mulher começaram a servir refeições mais alegres, com uma tosta coberta de geleia de kaya, ovos, leite de coco, açúcar e folha de pandano, com manteiga fria no meio. Tudo acompanhado por dois ovos cozidos e uma chávena de café ou chá.

Jabin deu uma dentada no pão doce. “Dava uma óptima...” começou por dizer. “Comida para jet-lag?”, interrompi. “Comida para ressaca”, continuou. “Adoraria que pusessem bacon. Aí estaria completo.”

A população de Singapura é formada por três grupos étnicos principais: chineses, indianos e malaios. Na Chinatown, as lanternas ficam penduradas como luas vermelhas sob ruas estreitas. As lojas vendem uma amálgama de souvenirs. Há anúncios para incitar às compras: um por quatro dólares, três por dez dólares. O merlion é a mascote de Singapura e este híbrido de leão e peixe aparece em qualquer objecto imaginável, incluindo isqueiros baratos, relógios, termómetros e conjuntos de garfinhos de azeitona. Dei uma vista de olhos pelas prateleiras de produtos comestíveis com a imagem do merlion, resistindo à mania de comprar umpack inteiro de chocolates, e ficando-me por uma tablete. Também levei um Tiger Balm feito localmente para aliviar uma gripe que viesse pôr em risco o nosso périplo saudável.

Vaguear por Singapura foi terapêutico. As ruas estão limpíssimas e os edifícios brilham ao sol. A temperatura tropical está tipo sauna. Mas enquanto limpo a cara com toalhitas penso que estou a purificar e não a transpirar.

A caminho da Singapore Flyer, a maior roda gigante fora dos EUA, desvio-me para uma zona de comida ao ar livre (foi o calor que me levou a isso) e peço um chin chow de olhos-de-dragão. A taça de granizado vinha com uma capa de cubos gelatinosos, fruta tropical e umas esferas misteriosas que explodiam como caviar doce. O prato transformou-se num caldo e tive de me ver livre da colher para o sorver.

Nas curtas horas que restavam, tivemos de nos infiltrar numa visita ao Buddha Tooth Relic Temple and Museum, com ensinamentos espirituais dentro de uma estupa em ouro maciço. Acendi um pau de incenso e pensei num desejo. Poderia pedir uma recuperação rápida do meu nariz a pingar e da minha tosse, mas não quis estragar o momento. Em vez disso, recorri ao Tiger Balm para resolver esse problema. Apliquei o unguento antes do voo para Hong-Kong, deixando assim o buda livre para tratar de tudo o resto.

Dias 16-19: Hong Kong

População: 7,4 milhões
Célebre por: skyline esmagadora, Victoria Peak, voltas de barco nos tradicionais barcos de juncos em Victoria Harbor, compras (de produtos electrónicos), o mercado nocturno de Temple Street
Obrigatório ver: mosteiro de Po Lin na Lantau Island
Obrigatório comer: dim sum
Lembrança: algo do Goods of Desire

Hong Kong deu-nos as boas vindas com uma festa de dança na rua. No bairro de SoHo, os bares explodiam ao som de uma playlist universal composta de Britney, Bieber e Bruno, que era como uma sirene para os borguistas multinacionais, levando-os a emborcar shots servidos por seringas e a despir as camisas.

Olhei para o Jabin, que estava a comer tacos, e sugeri que não dormíssemos na nossa última noite. Podíamos jantar, beber, dançar, apanhar as nossas coisas e ir directos para o aeroporto. Ele disse-me que fazer uma directa foi uma das melhores ideias que eu tive desde que iniciámos a nossa viagem épica. E eu que achava que reservar lugares na coxia tinha sido o meu melhor momento.

O percurso que tinha parecido tão longínquo caíra finalmente aos nossos pés. Depois de um voo de quatro horas de Singapura, só nos restavam dois dias completos para chegar ao nosso destino final. Também podíamos ter aligeirado as visitas turísticas, mas não: decidimos levar-nos à exaustão. A fadiga extrema parecia o estado ideal para o voo de 14 horas e meia até casa.

O território autónomo ao largo da costa chinesa tem o pulsar de Manhattan ou Banguecoque. A cidade está cheia de descobertas, curiosidades e episódios dramáticos. Becos escuros parecem saídos de um cenário de film noir para um atalho ou beijo ilícito. Respirar aquele ar quente era como engolir uma bebida energética salpicada com uma coisa mais forte.

Percorrer o caminho do hotel até à estação de metro acabou por se transformar no exercício físico que bem precisávamos. Subimos escadarias íngremes, atravessámos faixas de trânsito compacto, saltámos obstáculos – nomeadamente grupos de transeuntes lentos colados aos seus gadgets. Apanhámos o metro (o transporte público foi uma estreia para nós) para a Lantau Island e subimos a bordo de um teleférico até ao Tian Tan Buddha, uma estátua em bronze gigante de pernas cruzadas no topo do Mount Muk Yue. Quando pisei o chão de vidro reparei num caminhante solitário que percorria o trilho a pé. Partilhámos o compartimento com uma família, e o filho do casal batia nas árvores, evitando por pouco a cabeça do caminhante.

No momento em que chegámos lá acima, o Jabin estava com fome e eu continuava vegetariana. As nossas vontades juntaram-se no mosteiro de Po Lin, que serve um almoço composto por vários pratos, com vegetais, tofu e arroz. Depois, escalámos os 260 degraus até ao Grand Buda, que olhava na nossa direcção por baixo dos seus olhos semicerrados. Uma mulher pediu ao Jabin que lhe tirasse uma foto, enquanto segurava em duas folhas de papel onde estava escrito “Hong” e “Kong”. “Ando a viajar pela Ásia e Europa até ficar sem dinheiro”, disse ela. “Deve durar um ano.” A aventureira, que tinha vindo do Vietname, estava a mandar as imagens ao pai, que estava a fazer diálise e apenas poderia viajar com ela em espírito.

Ficámos acordados até tarde, deambulando por Mong Kok, um bairro de lojas que tem horários para insónias e que é iluminado como se fosse um quadro de Lite-Brite.

No Ladie’s Market, um bazar nocturno com mais de 100 bancas, andámos à procura de bugigangas que muito provavelmente terão sido fabricadas na China continental. (E acabámos por comprar a nossa lembrança no Goods of Desire, um armazém de Hong Kong: uma capa para o bule de chá, uns pauzinhos para comer, um suporte para o iPad em forma de montanha). O Jabin arriscou nas provas de comida oferecida – uma sopa de noodles com tomate picante e gelado de sabores misteriosos –, o que poderia ter resultado na estreia de uma corrida ao nosso kit de primeiros-socorros.

A nossa última refeição em Hong Kong, e de toda a nossa viagem à volta do mundo, esteve quase para não acontecer. Durante a nossa busca de dim sum, os primeiros restaurantes onde entrámos disseram que não os serviam a partir das 16h. Corremos até outro local, mesmo a tempo de pedir seis pratos.

“Vocês estão tão entusiasmados”, disse-nos um cliente do restaurante. “Parece que acabaram de entrar num restaurante de primeira-classe.”

Enquanto comíamos um pudim de manga, um dos empregados já estava a limpar o chão à nossa volta. Deslizámos até à porta.

Voltámos ao SoHo e juntámo-nos à horda de pândegos que bebia cocktails e usava bandeletes com luzes a piscar. Demos várias voltas pelos bares e subimos a um muro com vista para as cenas de bacanal. Hong Kong estava a preparar-se para um longa noite, e nós estávamos sem pressa para ir embora.

Dia 20: Casa

No Aeroporto JKF de Nova Iorque, invadiu-me uma certa liberdade logo a seguir à fila da alfândega: a liberdade de comer um hambúrguer com ingredientes frescos no Shake Shack, de beber uma Dr.Pepper Diet (nada daquela horrível Coca-Cola Lite) e engolir um copo de água com gelo (sem medo de uma gastroenterite). Nogate da American Airlines, enquanto esperávamos pelo voo para Washington, não conseguimos encontrar a banca dos hambúrgueres nem a bebida gasosa. Mas bebemos vários copos de água gelada. Bem-vindos a casa.

Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post

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