As estradas são como serpentes, rompendo por entre as colinas que vão ondulando suavemente, como as dunas no deserto; mas um deserto de cores, de verde e amarelo, decorado com ovelhas na sua eterna indolência, de rios e riachos que não emitem mais do que murmúrios, de casas rústicas, da cor do mel, recortadas com árvores seculares e bordejadas por trilhos onde, já sem as grandes multidões de turistas, agora que o Verão começa a dar os seus últimos suspiros, nada mais reina do que o silêncio e a mansidão.
A primeira impressão, mal estaciono o carro e caminho entregue à minha solidão, é que acabo de ser devolvido a um passado que julgava perdido, até um lugar que transmite tranquilidade mas que, como rapidamente percebo, vive intensamente o presente, convertendo uma herança de tempos imemoriais numa atmosfera de glamour, representada por viaturas luxuosas e homens e mulheres que respiram elegância, num perfeito contraste com pastores e agricultores que cuidam dos seus animais e das suas hortas.
Como um jardim a perder de vista, a região, estendendo-se, de norte a sul, ao longo de uma centena de quilómetros entre Chipping Campden e Bath e cobrindo uma área um pouco superior a dois mil quilómetros quadrados, recebe anualmente 38 milhões de turistas (permitindo receitas na ordem dos 400 milhões de libras), um número verdadeiramente assustador se comparado com uma população total que não ultrapassa os 140 mil residentes — e mais de metade das suas paróquias não alberga mais de 300 habitantes.
A fraca densidade populacional rivaliza com uma das mais baixas taxas de crescimento urbano — na sua essência, Cotswolds, habitada há já mais de 6000 anos e classificada, desde 1966, como Área de Notável Beleza Natural, mantém a sua vocação rural, como alguém que, teimosamente, deseja expressar a sua fidelidade aos anos de antanho — mas também porque a Revolução Industrial passou por esta região como uma brisa apressada, quase sem deixar marcas.
“Na Europa, a melhor lã é inglesa, em Inglaterra, a melhor é a de Cotswolds” — supostamente um ditado do século XII mas que encaixa na perfeição na história da região que, à custa das ovelhas, viveu a sua época de esplendor durante a Idade Média. Abadias e mosteiros, vendo na criação de ovinos uma fonte de riqueza, investiram fortemente no que chamavam os “leões de Cotswolds”, logo imitados por comerciantes que não tardaram a ver no horizonte uma prosperidade que lhes permitiu construir sumptuosas mansões e mandar erguer magnificentes igrejas, ainda hoje conhecidas como “as igrejas da lã” — Inglaterra, por essa altura, baseava metade da sua economia nessa matéria prima.
O peso das tradições
Por vezes com o sentimento de que estou na Toscana, tão similar é, em alguns casos, a paisagem, inicio a minha errância por Cotswolds em Chipping Campden, a flor das aldeias de Inglaterra. As suas ruas estão sempre impreganadas dos odores das plantas e das flores, como se, na sua beleza, oferecendo ao viandante um caleidoscópio de matizes, procurassem esconder a elegância dos seus edifícios dos olhares curiosos ou impondo ao turista um simples passeio pela sua rua principal.
Chipping Campden (campden é uma palavra de origem anglo-saxónica para mercado), há mais de 400 anos que se ouve falar dela, talvez porque assim Robert Dover desejou. Se o fez, a aspiração deste advogado inglês cumpriu-se, tendo como cenário uma colina que tem aos pés Chipping Campden, com a realização dos Jogos Olímpicos, uma criação do século XVII (mais propriamente em 1612) que se perpetuam com base na tradição mas adaptados aos tempos modernos. O atletismo, os saltos, a luta, a esgrima, as corridas de cavalos, os bailes e a caça e o xadrez — todas estas manifestações desportivas eram acolhidas na antecâmara de uma festa, o momento sublime para o vencedor, ansioso por carregar para casa um colar de prata que o afastava de todos os males. A festa continua, em moldes diferentes, mais civilizada do que há quatro séculos, na primeira sexta-feira após o Pentecostes, neste cenário onde a natureza teima em manter-se afastada da mão do homem, oferecendo uma panorâmica sobre o vale de Evesham.
Estando em Chipping Campden no momento certo, observando o fogo-de-artíficio colorindo os céus negros em Scuttlebrook Queen, a procissão de milhares, com as suas lanternas, descendo da colina até à praça, mais do que assistir aos encerramento dos jogos, está a testemunhar uma parte da vida anual de Cotswolds, tão bordada por um fio da história.
A atracção romana
“Coça Gloucestershire e descobre Roma” — outro ditado de um outro tempo mas que pretende, ao contrário do que é dado a entender, ser uma referência à longa história de Cotswolds na agricultura, à facilidade de cultivo, de criação de animais, beneficiando dessa delicada ondulação das colinas que se estendem como dunas verdes. Os romanos, como tantas figuras mediáticas nos dias de hoje, sentiam-se atraídos por Cotswolds. Contemporâneos, são muitos os exemplos, como Hugh Grant, Elizabeth Hurley, Stella McCartney, J. K. Rowling, Kate Winslet, Kate Moss e Alex James (baixista dos Blur), famoso por ter gasto um milhão de libras em Londres em champanhe nos seus dias de excentricidade e por ser, agora mais calmo, criador de vacas e ovelhas e produtor de leite numa quinta em Kingham, a dois passos de Chipping Norton, onde uma vez por ano organiza um festival gastronómico e de música.
Os romanos fizeram mais do que adquirir mansões de luxo, abriram caminhos pelas colinas, por onde antes se fazia o transporte de sal, uma rota mais tarde substituída pela toponímia de Fosse Way (deriva do latim e significa fossa), cavado como defesa e mais tarde transformado em artéria comercial, tão popular na construção das estradas romanas, por onde se canalizavam os bens. Cirencester, a Corinium dos romanos, com o seu estatuto de capital regional do Império na Britânia (apenas superada em importância por Londres), atesta desse passado no impressionante museu local — e, com frequência, os arqueólogos descobrem vestígios do passado, como aconteceu há bem pouco tempo nas proximidades de Tewkesbury.
Os manuais falam dessa batalha, de Tewkesbury, em 1471, da última da Guerra das Rosas (a branca da casa de York e a vermelha da casa de Lancaster, esmagada por aquela), um período turbulento da história que todos os anos, em Julho, é recordado com um festival dramático medieval que figura entre os mais concorridos da Europa. Mais de cinco séculos depois, Tewkesbury, onde os rios Severn e Avon se encontram, é um lugar que cativa o viandante, com as fachadas das suas casas brancas atravessadas por traves de madeira irregulares (há mais de quatro centenas classificadas), as suas ruas estreitas que abraçam a majestosa abadia beneditina do século XII e a panorâmica que se alcança do cimo da torre da abadia normanda, estendendo-se até Brendon Hill e às charmosas aldeias que decoram o Severn Vale.
A pé ou de bicicleta
A curta distância de Tewkesbury, muito popular entre os turistas, surge a tranquila vila de Winchcombe, com as suas lojinhas de antiguidades, as suas padarias e os seus talhos, os seus pubs e salas de chá, o seu mercado e a sua arquitectura dourando à luz do sol, os seus museus, jardins e fontes, bem como as ruínas da abadia Hailes, no passado um dos maiores centros de peregrinação do país. Mas a principal atracção da vila que foi capital da Mércia (um dos sete reinos anglo-saxónicos) e uma das mais importantes de Cotswolds até à Idade Média encontra-se nos arredores, o Sudeley Castle, em tempos o retiro preferido dos monarcas Tudor e Stuart e o local de eterno descanso para a rainha Katherine Parr, a sexta mulher do rei Henrique VIII e cujo túmulo em mármore se pode ver na capela de St. Mary’s Sudeley antes ou depois de um passeio pelos jardins bem tratados que rodeiam esta imponente estrutura do século XV.
Winchcombe, com pouco menos de cinco mil habitantes, pode também servir de base para alguns passeios a pé (ou de bicicleta, como a National Route 45, passando por Stonehouse, Stroud, Nailsworth e Cirencester) por uma região perfeita para caminhadas ao longo de mais de cinco mil quilómetros de trilhos, entre eles o tentador Cotswolds Way, um percurso de mais de uma centena de quilómetros que poucos se atrevem a completar, preferindo caminhar ao longo de secções do trajecto que acabam sempre por desaguar numa vila que recebe de forma calorosa, colonizando a vontade de prosseguir.
Muitas delas praticamente não sofreram alterações desde a época medieval, mantendo um carácter que apenas sofre uma metamorfose nos meses de Verão, quando as suas ruas são invadidas por um verdadeiro formigueiro humano. Na Primavera ou quando o Outono já se anuncia, revelam a sua essência mais pura, como Broadway, que tantos escritores, artistas e compositores foi atraíndo ao longo dos séculos, encantados com a sua localização aos pés de uma escarpa pronunciada. Para quem sente dificuldade em conviver com as multidões, os arredores de Broadway oferecem alternativas mais serenas, como a igreja de St. Eadburgha (século XII) e, mais para cima, após uma caminhada de quase três quilómetros, na crista da escarpa, a Broadway Tower, uma torre gótica do século XVIII que acolhe uma pequena mostra de William Morris, artista tão fortemente associado ao revivalismo das artes têxteis, e que, como uma varanda debruçada sobre um vale, oferece vistas soberbas.
Stow-on-the Wold é, mesmo não estando definido anteriormente, o destino que se segue. O sol continua a brilhar e a tornar doces como o mel as paredes das casinhas que podiam figurar num conto de fadas — e por isso tão sedutoras aos olhos das crianças. As suas ruas são como vielas, ideais para conduzirem, num tempo que já não é deste tempo, os rebanhos para a feira, localizada na praça central (acarinhada por edifícios elegantes), ainda hoje o coração desta vila considerada estratégica durante a ocupação romana — situada na junção de seis estradas, também por ela passava a importante Fosse Way.
Uma outra Veneza
Muitos dos visitantes regressam ano após ano — e não é por acaso. A região, para ser admirada em toda a sua plenitude, para que nenhum recanto fique por ver, cobra tempo em troca da sua beleza. Ninguém fica indiferente a Burford, uma vez mais com as suas casas de pedra (muitas delas dos séculos XVII e XVIII) ao longo da High Street, a Minster Lovell, um dos locais preferidos de William Morris, ou a a Bibury, que o artista descreveu como “a aldeia mais bonita de Inglaterra.” A localidade, com pouco mais de mil habitantes, tem também aquela que deverá ser uma das ruas mais fotografadas do país, através da qual corre a Arlington Row, um conjunto de cottages que no século XIV serviam de armazéns de lã e, mais tarde, já no século XVII, foram convertidas em espaços para acolher os tecelões — também do século XVII, atravessando Rack Isle, um refúgio selvagem e onde antigamente se secavam as roupas, o Arlington Mill, um moinho que é testemunha de outras vidas que se foram esgotando como agora se esgota o meu tempo.
De volta à estrada, faço uma paragem em Painswick, para deambular pela Bisley Street, para rodear a St. Mary’s Church e os jardins rococó, desenhados por Benjamin Hyett (proprietário da Painswick House e filho de um membro do parlamento) em 1740 e restaurados para lhe devolverem a glória (e a ostentação) que sempre os caracterizaram.
O dia começa a extinguir-se quando os meus passos percorrem uma das margens do rio Windrush. Turistas com tanta ou tão pouco pressa como eu vão cruzando as pontes da vila que é conhecida como a “Veneza de Cotswolds”, um dos destinos mais populares neste território, não só pela sua beleza natural mas também porque Bourton-on-the-Water proporciona múltiplas actividades a famílias e crianças (réplicas da aldeia, de comboios, parques e jardins com mais de 500 espécies de pássaros, como o Birdland Park and Gardens, museus e até uma conceituada perfumaria que comercializa fragrâncias inglesas há 40 anos, no início um passatempo, hoje um negócio em expansão).
O sol atira os seus últimos raios sobre o campo pintado de verde e amarelo. Uma ovelha fita-me demoradamente, como se desejasse hipnotizar-me ou apenas recordar-me que muito do que acabo de ver se deve aos seus antepassados. Saiu-lhes da pele. Para trás recortam-se as colinas suaves. Das ovelhas e da lã.
Guia prático
Como ir
Desde Lisboa, a melhor opção, combinando comodidade e preço (dependendo das datas, pode viajar por pouco mais de 120 euros, ida e volta), passa por voar com a easyJet até Bristol e, uma vez no aeroporto, recorrer a um dos serviços regulares de autocarro que ligam a Cheltenham (entre duas a três horas e por 16 libras com uma paragem no terminal da cidade) ou, se for mais conveniente, a Gloucester (mais demorado porque tem necessariamente de mudar de autocarro em Cheltenham e por 18 libras). Como alternativa a Bristol — a distância é mais ou menos a mesma —, tem igualmente a possibilidade de voar para Birmingham, se bem que a Ryanair é a única companhia aérea com ligação directa (apenas de Faro) àquela cidade inglesa e por uma tarifa a rondar (a pesquisa é importante face à variação nos preços) por pouco mais de 110 euros. Também de Birmingham (desde o aeroporto mas com uma curta escala no terminal urbano), partem alguns autocarros da National Express com destino a Gloucester e Cheltenham (os mais rápidos cumprem o trajecto em cerca de duas horas).
Quando ir
Ocupando uma área no sudoeste e na região central de Inglaterra, as Cotswolds gozam de um clima marítimo temperado — as temperaturas não são elevadas no Verão e, por norma, não descem muito no Inverno. Popular durante a época alta, tanto entre ingleses como entre estrangeiros, proporciona cenários encantadores na Primavera e no Outono, com as cores características das duas estações e sem as multidões que a visitam no Verão. Não raras vezes, os meses de Setembro e Outubro oferecem dias de sol e os termómetros aproximam-se dos 20 graus — mas nunca se sabe, em Inglaterra e um pouco por todo o Reino Unido, podem conhecer-se as quatro estações em menos de 24 horas.
Onde comer
Simples e, ao mesmo tempo, sofisticado, o The Old Butchers, no 7 Park Street, em Stow-on-the-Wold, é, com as suas doses generosas e uma gastronomia que utiliza de preferência produtos locais, um dos melhores restaurantes na região de Cotswolds. Aberto todos os dias, para almoço e jantar, funciona, desde 2005, num antigo talho, servindo pratos da moderna cozinha britânica com um toque da Europa continental, bem como uma generosa lista de vinhos (quando o visitámos tinha um tinto do Dão). Também com um exterior que prima pela simplicidade, o Le Champignon Sauvage, na 24-28, Suffolk Road, a curta distância de Cheltenham, esconde dentro das suas paredes aquele que é considerado um dos melhores espaços gastronómicos do país. Com duas estrelas Michelin, o restaurante, liderado pelo conceituado chef David Everitt-Matthias e a sua mulher, Helen, reflecte o talento e a experiência daquele, com um cardápio que inclui borrego, coelho e truta e tão concorrido que lhe permite abrir apenas de terça a sábado e durante uma hora para almoço e jantar (se bem que os clientes podem permanecer depois de feito o pedido).
Onde dormir
Se preferir alojar-se num hotel, desfrutando de todas as comodidades, uma das melhores opções passa pelo Queens Hotel Cheltenham – McGalery by Sofitel, um hotel-boutique de quatro estrelas situado num elegante edifício no cimo da Promenade, com 84 quartos e preços que variam entre os 170 e os 350 euros (este último para uma suíte de luxo). Um pouco por todo o lado, não terá dificuldade (no Verão é conveniente reservar com grande antecedência) em encontrar casas que acolhem o visitante de acordo com o conceito B&B mas se lhe agradar a quietude de Chipping Campden não se arrependerá se passar uma ou duas noites no confortável e familiar The Chance, na 1 Aston Road, que dispõe de apenas dois quartos e com uma tarifa diária (terá de reservar pelo menos duas noites) de 100 libras (não aceita pagamentos com cartão, nem animais e encerra nos meses de Dezembro e Janeiro). Em todo o caso, pode também consultar alguns sites (www.campdencottages.co.uk, www.cotswoldretreats.co.uk e www.manorcottages.co.uk), se optar por alugar a sua própria cottage na região. Para orçamentos mais reduzidos, em Cirencester dispõe de um hostel (cama em dormitório custa 22 libras e um quarto duplo 35) num admirável espaço conhecido como New Brewery Arts (onde se produz e vende o trabalho de artistas independentes), no Brewery Court, na Cricklade Street. Os adeptos do campismo e do caravanismo dispõem igualmente de diferentes opções, entre elas o Briarfields Motel & Touring Campsite, na Gloucester Road, em Cheltenham.
A visitar
Cheltenham acolhe quatro importantes festivais ao longo do ano, o último dos quais, dedicado à literatura (os outros celebram o jazz, a ciência e a música), entre 7 e 16 de Outubro, com a presença de seis centenas de actores, poetas, políticos e escritores como Ian McEwan, Edna O’Brein e Karl Ove Knausgård.
Informações
Enquanto não forem concluídas as negociações para a saída da União Europeia, os cidadãos portugueses podem continuar a viajar para o Reino Unido munidos de um documento de identificação, que tanto pode ser o passaporte como o bilhete de identidade ou o cartão de cidadão. A moeda é a libra estrelina e equivale a cerca de 1,20 euros.