Às vezes a hora de ponta e os seus engarrafamentos têm algumas virtudes. Sobretudo se o destino é um aeroporto e temos tempo para gastar. Assim, estamos a caminho do Aeroporto Logan, em Boston, o trânsito anda aos soluços e depois de mergulharmos debaixo da terra, sem skyline, rio e outras paisagens para escrutinar uma última vez, a nossa atenção foca-se mais perto. Sim, nos carros que nos ultrapassam, nos carros que ultrapassamos: muitos modelos que nunca havíamos visto, muitos jipes e SUV, não fossem os Estados Unidos obcecados com carros grandes, telemóveis omnipresentes nas mãos dos passageiros, um Ferrari vermelho descapotável vindo da Florida, algumas viaturas do Maryland e, claro, a maioria do Massachusetts, o estado de que Boston é a capital.
É nas placas de matrícula destes carros que vemos: Massachusetts em cima, “The Spirit of America” (“o espírito da América”) em baixo. E, nesse instante, os nossos três dias em Boston (que haveriam de ser prolongados, involuntariamente, quase mais 24 horas inúteis) encontram um sentido claro. Não, toda a “América” não está em Boston (ou Massachusetts), nem Boston está em toda a “América”; mas no Massachusetts, em Boston, encontra-se uma espécie de pré-história dos EUA que ainda pode ser vista como o ideal do “sonho americano”. Afinal, foi aqui que (quase) tudo começou e nós vamos seguir-lhe os passos — chamam-lhe Freedom Trail (Trilho da Liberdade) e nele incorpora-se, pelo menos, um determinado espírito da América.
Para quem chega, como nós, pela primeira vez a Boston, nada melhor do que mergulhar na sua história, pois o passado e o presente (e até o futuro) encontram-se em cada esquina (muitas vezes, literalmente), o que faz com que os percursos históricos sejam também um bom pretexto para conhecer o quotidiano da cidade.
Nesse processo, começa-se a compreender a cidade que muitos dizem ser a mais europeia dos EUA mas que teima em comparar-se com Nova Iorque, a sua némesis — ainda que a comparação seja, obrigatoriamente, maculada pelos termos. Há poucos para comparação, para o bem e para o mal, e começa logo por um dado objectivo: Boston tem 670 mil habitantes, Nova Iorque ronda 10 milhões — como não teriam de ser diferentes? Que se tranquilize Boston, epítome do charme do Novo Mundo que não esquece o Velho, pois vale bem uma visita por si só. A sua história, arquitectura, tradição cultural e académica e até localização enformam um modo de ser cujas raízes mergulham bem fundo na vida dos EUA.
Fundada em 1630, apenas 10 anos depois de o mítico Mayflower ter aportado algumas dezenas de quilómetros a sul, nas costas de Cape Cod, com os “peregrinos” e os seus sonhos de liberdade religiosa (da sua religião, claro — “eram muito intolerantes com as crenças de outros”, ouviremos de um guia, acrescentando algum sarcasmo: “os puritanos trouxeram muito de duas coisas: bíblias e carrancas”), aventura e, claro, comércio (já sabemos que nem só da dilatação de fés e impérios se fez o Novo Mundo), Boston foi, ainda é, um produto dessa mentalidade inicial.
À qual não faltou, e não é uma questão menor nestas paragens, uma incipiente democracia: uma vez que não estavam no território para eles designado, os sobreviventes da viagem e do primeiro Inverno na Nova Inglaterra decidiram uma espécie de emancipação e forma de auto-governo a que chamaram o “Mayflower Compact”, a base das regras que ditariam a vida da nova comunidade em que cada um contribuiria para o bem-estar comum.
Nesta improvável mistura de puritanismo religioso (o mesmo que dizer, conservadorismo) e liberalismo social e político se forjou Boston como farol da Nova Inglaterra e ainda hoje olhada por uma certa América, profunda e conservadora, como um perigoso ninho de intelectuais radicais — e políticos, veja-se o exemplo mais querido, John F. Kennedy, presidente dos EUA, nascido no Massachusetts, congressista e senador do estado.
Para tal não é indiferente o facto de albergar algumas das mais prestigiadas universidades do país (são aliás, mais de 50 as instituições de ensino superior na órbita de Boston): o Massachusetts Institute of Technology (MIT), pólo científico por excelência, a Boston University e Harvard, a mais antiga (1636) e (re)conhecida. E nisto de “o mais antigo” Boston gaba-se de vários: do mais antigo parque público ao mais antigo restaurante, passando pela mais antiga escola pública, a mais antiga biblioteca pública e até o mais antigo estádio de beisebol da Major League, a cidade alberga a antiguidade norte-americana. Isto apesar de Filadélfia ter algumas reivindicações idênticas, como notam com ironia bem-disposta alguns norte-americanos, e de, claro, ter sido o palco da Declaração da Independência (1776). Quanto a isso, é um bostonian convicto — e proselitista, ou não fosse guia dos famosos Duck Tours, omnipresentes em Boston, “por terra e água” (veículos anfíbios) — que contrapõe com humor: “Nós aqui lutámos, eles lá assinaram um papel.”
Assinar papéis é o que propõe a petição de uma associação diante de um dos cenários mais fotografados de Boston: o moderno a espelhar o antigo na Copley Square — um século separa estes dois ícones arquitectónicos da cidade, a Hancock Tower, edifício de I.M. Pei, versus a Trinity Church. Na manhã em que os EUA, e o mundo, acordaram com a notícia do massacre numa discoteca gay em Orlando, pede-se a proibição das armas. Coincidência: em Boston termina a semana do orgulho gay e por todo o lado se vêem bandeiras arco-íris que nessa manhã são acompanhados por memoriais, como o que vemos diante da Arlington Street Church (em frente ao jardim público da cidade), com velas, palavras escritas a giz no passeio onde se actualizam o número de mortos e se escreve “black lives matter”.
Aqui sempre foram importantes, atrevemo-nos, ou não tivesse sido a cidade um dos mais activos pólos abolicionistas do país, e há mesmo um Black Heritage Trail que permite descobrir a história da comunidade negra na capital do estado que foi o primeiro a abolir a escravatura, logo em 1783, como forma de agradecimento à comunidade negra pela sua participação na Revolução Americana. É, aliás, a Guerra Revolucionária, que opôs os “patriotas” aos colonizadores britânicos (e que terminaria com o nascimento do novo país), que compõe grande parte do tecido histórico de Boston, epicentro do início da contestação e da luta armada.
E é seguindo-lhe o rasto que não só descobrimos o passado, como o presente e o futuro da cidade: uma verdadeira red-brick lane, uma linha de tijolos vermelhos que serpenteiam parte da cidade como um GPS analógico e constitui o Freedom Trail. E para quem, como nós, tem pouco tempo disponível é a melhor maneira de ter uma visão ampla da cidade, uma vez que atravessa os seus bairros mais importantes; se acompanhada por uma das grandes atracções da cidade, os Boston Duck Tours, amplia-se um pouco o perímetro da exploração e até se entra no rio; com um pouco mais de tempo, sai-se desse circuito e tem-se um relance dos bairros up and coming. Sim, a nossa estadia é curta – mas nós não paramos.
Flanar é preciso
Temos tempo até para ir oceano adentro — mas isso será história para outra oportunidade. Por agora falamos apenas da visão da cidade desde o mar: uma parede de arranha-céus que parece que chegam até à beira da água. O barco não está de partida — está de chegada, o ferry que percorreu a costa desde norte até entrar na baía diante de Boston, povoada de ilhas. É-nos difícil perceber a excentricidade da linha costeira da cidade, com a foz do rio Charles a intrometer-se, a pista do aeroporto a acompanhar-nos a certa altura.
Assumimos: chegamos a Boston perdidos na sua geografia mas rapidamente percebemos a sorte da localização do nosso quartel-general. Mesmo em frente, o jardim público da cidade, com gradeamento a toda a volta e lago-ampulheta onde “cisnes” deslizam empurrando barcaças de madeira com cadeiras — num dia de semana de manhã são tomadas de assalto por crianças em visita de estudo (e continuaremos a vê-las por todo o Freedom Trail) — enquadrado por arranha-céus; na esquina, a Rua Newbury, fila de casas de tijolo vermelho e passeios largos do que chegou a ser a zona mais elegante de Boston e agora é a artéria comercial mais desejada (à nossa frente, a Chanel, por baixo de nós a Tiffany’s, por exemplo), com uma mescla de restaurantes e cafés que transbordam para esplanadas (ao nosso lado um café Nespresso) e galerias de arte.
Uma curta caminhada leva-nos até à Copley Square e um pouco mais de persistência desemboca na Prudential Tower — a entrada é por um centro comercial, mas o destino de turistas é o 50.º andar, onde o Skywalk Observatory proporciona vistas de 360º sobre a cidade (e é o mais alto “miradouro” da Nova Inglaterra); ou o 52.º, com o restaurante Top of the Hub a oferecer refeições a pairar sobre Boston. Bem mais perto, também em redor do jardim público, com a estátua equestre de George Washington a receber-nos, temos o célebre Cheers, que inspirou a série homónima — parece ter já visto melhores dias: num sábado à noite tem meia dúzia de pessoas no espaço pequeno (qualquer semelhança com o “irmão” televisivo não é pura coincidência: simplesmente não existe). Cheers não foi a única série ou filme cuja acção se passa em Boston, tendo a cidade servido como pano de fundo (ainda que muitas vezes grande parte da produção fosse em Hollywood) a Ally McBeal, The Practice e o seu spin-off Boston Legal (curiosamente, tudo séries de “advogados”), The Departed, Good Will Haunting, Mystic River, American Hustle, The Heat e o mais recente Spotlight, por exemplo, e quem quiser pode reconstituir os cenários com visitas temáticas.
Mas desviamo-nos da centralidade bem-vinda do nosso hotel, em Back Bay, que nos permite descobrir os principais bairros da cidade caminhando. Deste “novo” centro conquistado à água no século XIX (era um “anexo” pantanoso do rio Charles que foi transformado em quarteirões de casas vitorianas, igrejas e, mais tarde, arranha-céus) até à água no século XXI (o HarborWalk, ainda em desenvolvimento, tem o oceano como vizinho, desde o Instituto de Arte Contemporânea até ao Christopher Columbus Park com praias, molhes e cais históricos que formaram o coração do comércio marítimo da cidade pelo caminho). Sem falhar o “caminho verde” que leva o nome de Rose Fitzgerald Kennedy Greenway e é um dos “milagres” do Big Dig, obra máxima de engenharia que deu a volta a viadutos (“the distressway” ou “parking lot”) trocando-os por túneis que ajudaram a tornar o trânsito mais fluido e a cidade mais arejada. Afinal, Boston é um território concentrado em menos de dois quilómetros de largura e cinco de comprimento — parece curto para tanto simbolismo, é ideal para visitantes.
No entanto, muitos visitantes não resistem a dar uma volta numa das atracções da cidade, os Boston Duck Tours. Os veículos anfíbios são uma constante nas ruas de Boston — e nas águas. Apesar de terem nascido no Wisconsin e, entretanto, espalhado-se um pouco por todo o mundo, foram adoptados como parte integrante da paisagem urbana — afinal, a história de amor de Boston com “patos” já tem precedentes, na forma literária (e esta é uma cidade eminentemente literária): Make Way for the Ducklings, algo como “abram o caminho aos patinhos”, é o livro infantil, publicado em 1941, que conta a história de uma família de patos que decide viver numa ilha no lago do jardim público da cidade. Sucesso literário e afectivo para gerações de americanos (e não só), os patos têm direito a estátuas de bronze no jardim que escolheram como morada.
Nós também embarcamos num duck tour, com partida do Prudential Center, no caso do Molly Molasses — todos os veículos têm nomes relacionados com a cidade: neste caso, a Great Molasses Flood, uma inundação que em 1919 causou 21 mortos nas ruas de North End, quando um tanque com quase nove milhões e meio de litros de melaço (molasses), usado na destilação do álcool, (que, a ironia é evidente, no dia seguinte seria proibido, no início da Lei Seca) rebentou. É o professor Quackenstein, “académico, historiador e cientista louco”, que nos guia nesta “máquina do tempo”, para um “regresso ao futuro”.
Apesar do cepticismo inicial, e mesmo com o vento frio que vira do avesso o dia quente de meados de Junho (e ainda haverá chuviscos), confessamos que é uma boa introdução à cidade, ainda que depois exploremos a pé parte do nosso percurso sobre rodas. O melhor dos dois mundos: a liberdade de andar a pé (e não é um jogo de palavras com o “trilho da liberdade” que nos permitirá não nos perdermos — também pode haver um guia real, vestido à época) aliada aos pormenores sobre a cidade que de outra forma não teríamos sabido (pelo menos em tempo real) a que temos acesso a bordo do Molly Molasses. É desta mescla que resulta a “nossa” Boston.
A herança negra
É simbólico, apenas, o nosso início: imaginemos que começamos a nossa incursão bostoniana no Boston Common (que até tem um posto de turismo e é mesmo a primeira paragem do Freedom Trail — e é o tal parque público mais antigo do país). É pelo professor Quackenstein que conhecemos o primeiro uso do Boston Common, foi como pasto de vacas e palco de enforcamentos (incluindo o de Mary Dyer, uma quaker, que se tornou símbolo da intolerância religiosa puritana tendo inspirado, mais de um século após a sua morte, a promulgação da primeira emenda constitucional que separa o Estado da igreja e garante “liberdade de consciência” a todos os cidadãos).
Ao fim-de-semana a pequena colina relvada é um mar de gente sentada, deitada, como se de uma praia se tratasse, o campo de softball está ocupado; durante a semana é mais tranquilo, com as bancas de comida a montarem-se a meio da manhã e muitas amas a empurrarem carros de bebé. Num dos seus cantos, em frente à State House, uma homenagem ao 54.º regimento voluntário de infantaria do Massachusetts no Memorial Robert Gould Shaw, o abolicionista que liderou esta que foi uma das primeiras unidades oficiais de infantaria constituída por negros durante a Guerra Civil, formada após a Proclamação da Emancipação em 1863, e que prestou um serviço intenso no exército da União (a sua história foi contada no filme Glória).
Curiosamente, estamos aos pés de Beacon Hill, o bairro mais antigo e afluente da cidade (por exemplo, indica-nos o nosso guia, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, tem morada no número 57 numa das ruas), no seu South Slope, onde a maioria dos habitantes, brancos e ricos, eram fervorosos abolicionistas. Tal serviu como incentivo para que negros livres se instalassem no North Slope e no vizinho West End no início do século XIX, onde chegaram a formar a segunda maior comunidade do país e um dos pontos mais procurados do Underground Railway, uma rede de rotas secretas e casas seguras que, no século XIX, ajudavam os escravos a fugir dos estados esclavagistas para os estados livres. Mesmo após a Guerra Civil esta zona continuou a ser um ponto central da comunidade afro-americana, que aqui desenvolveu uma forte consciência política, e toda esta memória está preservada no Black Heritage Trail, que entre vários edifícios pré-Guerra Civil passa pela African Meeting House, a mais antiga igreja negra (1806) ainda de pé nos EUA.
Voltamos ao South Slope para uma curiosidade que demonstra o espírito empreendedor bostoniano. Não muito longe daqui foi a sede da companhia que levou gelo ao mundo — no início do século XIX. Um astuto (e aventureiro) homem de negócios, Frederick Tudor, começou a recolher o gelo dos lagos gelados pelo rigoroso inverno da Nova Inglaterra e vendeu-o para todo o mundo: começou pelas Caraíbas e chegou à Índia. Se o rigoroso Inverno desaconselha visitas, os tórridos verões também não são propícios a passeios. Imaginamos como será o Outono por estes parques de Boston — são muitos, alguns incluídos no Emerald Necklace (445 hectares de uma cadeia de espaços verdes) — com a folhagem a pintar-se de vermelhos, amarelos, laranjas.
A caminho do West End não há, contudo, parque que esconda o massivo edifício conhecido genericamente por Government Service Center, apontado por ser um dos mais odiados da cidade, estilo arquitectónico brutalista e um dos muitos cenários do filme The Departed em Boston. Foi um dos edifícios icónicos da renovação do West End nos anos de 1950 — onde muitos imigrantes, sobretudo italianos, irlandeses e judeus do Leste Europeu, encontraram nova casa (entre eles, Leonard Nimoy, o Mr Spock de Star Trek, que aqui nasceu, filho de um barbeiro judeu ucraniano) —, antes um bairro pobre, feito de ruelas estreitas e cortiços num bairro de prédios altos, centros comerciais e parques de estacionamento. A lembrança desses tempos ergue-se como uma ilha entre vias rápidas nas margens do rio Charles: o prédio estreito de tijolos vermelhos, quatro andares e cartaz publicitário da Apple a preencher uma das paredes laterais é conhecido como The Last Tenement House (“o último cortiço”) e um dia albergou “dezenas e dezenas de pessoas”.
A Antiguidade americana
Não seguimos ainda para West End, pois até aqui muito há que contar. Para trás ficou o início da colonização no cemitério mais antigo de Boston, o de King’s Chapel (como a igreja que lhe dá nome, fachada em colunas e interior branco e bordeaux, onde se preserva o único sino forjado por Paul Revere), lápides, gastas e negras, de, entre outros, o primeiro governador puritano do Massachusetts, John Winthrop, e da primeira mulher europeia na Nova Inglaterra, uma das “peregrinas” originais, Mary Chilton. Incongruente, quase, o espaço relvado, exíguo, debaixo de árvores, por detrás de grades e rodeado de altos edifícios que é o cemitério Granary (1660) — novamente lápides gastas e tortas, muitas bandeirinhas dos EUA, ou não estivessem aqui enterrados alguns dos heróis da Guerra Revolucionária, incluindo Paul Revere, que merece destaque.
De outras histórias se faz o Omni Parker House, do outro lado da rua, o mais antigo hotel em funcionamento contínuo do país, ainda que o edifício já não seja o original — aqui foi inventada a famosa Boston cream pie (a sobremesa oficial do estado). E já que é de doces que se fala, a passagem por uma loja Dunkin’ Donuts provoca ironia: “Este é um avistamento raro em Boston. Só há 100 mil destes num raio de 50 milhas em redor” (não sabemos se à ironia se junta a hipérbole). Estamos na chamada downtown Boston, e a dois passos a Washington Street é a artéria comercial tradicional, com lojas tão reconhecíveis como os armazéns Macy’s. Em pracetas ouve-se música clássica, pede-se dinheiro com uma “ameaça” escrita em cartão (“Give me one dollar or i’m voting Trump” — ouvimos dizer que é uma intimação vista noutras cidades americanas) e no fim da rua estamos diante da sede do governo colonial, a Old State House, onde em 1770 aconteceu o chamado Massacre de Boston.
Cinco civis foram mortos aqui, outros dois morreram mais tarde, às mãos do exército colonizador em mais um episódio que alimentou o sentimento emancipatório da colónia e que foi capitalizado pelos patriotas; em 1776 foi da sua varanda que pela primeira vez foi lida a Declaração da Independência aos cidadãos de Boston. Posteriormente, foi sede do governo da Commonwealth of Massachusetts e actualmente, diante da varanda cor de creme contra os tijolos vermelhos do edifício, desenha-se no chão um círculo que recorda o massacre. Contudo, curiosamente, o leão e o unicórnio símbolos da monarquia britânica continuam a tutelar o edifício — cópias, já que os originais foram destruídos nos idos da revolução. Um guarda vestido a rigor convida os visitantes a entrar — se o tivéssemos feito teríamos visto, por exemplo, um frasco de chá que resistiu ao Boston Tea Party (tudo menos uma festa — o motim “original” contra os britânicos — e nenhuma relação com o movimento ultraconservador Tea Party), um mosquete usado numa das batalhas da Guerra Revolucionária, um tambor usado noutra...
Não conseguimos fartar-nos do contraste (as nossas fotografias são disso prova): o edifício que já foi o mais imponente de Boston é um anão, quase uma peça de Lego entre os arranha-céus que o rodeiam neste que é também o centro financeiro da cidade. Mas seguimos com a Guerra Revolucionária no Faneuil Hall, mercado e ponto de encontro desde 1743 — aqui se fizeram dos discursos mais inflamados pró-independência. Agora faz parte de um complexo que inclui o Quincy Market (atravessamos o corredor da comida e não paramos de olhar vitrinas recheadas de sobremesas coloridas em conjuntos artísticos) junto ao antigo porto mas continua a ser espaço privilegiado para actos simbólicos e discursos políticos. Estamos em plena área comercial e de lazer e no exterior grande esplanada de tijoleira vermelha uniformiza toda a zona que inclui verdadeiros centros comerciais, lojas e vendedores de rua, e também mesas e cadeiras, e, sorte nossa ou rotina, espectáculos musicais (no caso, bagpipers).
O intervalo faz-se para o almoço marcado no Union Oyster House, o mais antigo restaurante dos EUA (1826) — as ostras que dão nome à casa são incontornáveis, mas é (mais uma vez) a lagosta que vem para a mesa: em quase todas as nossas refeições em Boston é omnipresente, ou não fosse um dos ícones gastronómicos da cidade (e da Nova Inglaterra) — veja-se a sua presença em tantos souvenirs — em diversas declinações. Não muito longe, a “mais antiga taberna da América”, lê-se na montra da The Bell in Hand (1795) — e estamos no Blackstone Block, pequenas ruelas pitorescas, dos já reconhecíveis edifícios de tijolo, que albergam comércio (muitos pubs) no rés-do-chão, muitas vezes revestido a negro e dourado, vasos pendurados e suportes de lousa com os pratos do dia a alinharem-se defronte das fachadas. Erguemos os olhos e os arranha-céus miram-nos incessantemente. É também aqui, numa alameda arborizada, que se situa o New England Holocaust Memorial, seis torres de vidro em fila que se percorrem com as sombras a tatuarem os números da “solução final” nazi — e o seis não é à toa: seis milhões de judeus mortos no holocausto, seis campos de concentração principais, seis anos de genocídio.
Daqui houve Estados Unidos
Para o West End, então. Aqui apenas passamos nos Duck Tours e no táxi que nos levaria à estação ferroviária de Boston North e o que melhor observamos desta parte da cidade é desde o rio Charles. Finalmente trocamos as rodas pelo casco do “barco” para entrar “na melhor via para evitar o tráfego de Boston”. No rio que já foi um dos mais poluídos do país e agora é o mais limpo rio urbano (“um projecto de décadas”), pesca-se e toma-se banho sem perigo para a saúde apesar da cor castanha, “apenas vegetação”.
Passamos uma porta (já na reforma) que pertencia ao sistema de barragens do rio, no local onde este se estreita e dá lugar ao novo Museu da Ciência (“cheio de maravilhas” e temos de acreditar pois não o visitaremos) — quando novamente se alarga a vista consegue abarcar o edifício completo e o parque que acompanha o rio do lado Boston; do lado de Cambridge é um trilho de bicicletas. Inversão de marcha na direcção da foz, para ver como Boston se aproximou do rio com parques que o perseguem incansavelmente e com edifícios residenciais de luxo — a margem do West End. “Este é um edifício adorável do lado de fora, tem cozinha e lavandaria 24 horas por dia, pátio no interior, garagem em baixo”, vai descrevendo o nosso guia, para terminar com a punch line: “E é uma prisão [Suffolk County Jail]”.
É ainda a bordo do veículo anfíbio que chegamos a Charlestown, do lado norte do porto de Boston, um “percurso acidentado” em direcção ao Bunker Hill Monument, numa colina, claro. Este é um obelisco muito parecido com o Washington Monument, mas construído vários anos antes (concluído em 1843), para comemorar a batalha de Bunker Hill, uma das primeiras (e mais sangrentas) da Guerra Revolucionária (1775). Passagem pelo City Square Park, o local fundacional de Charlestown, onde o primeiro governador do Massachusetts construiu a sua casa e conhecido como a “porta de entrada de Boston”.
Para Paul Revere foi a porta de saída para a sua midnight ride (“cavalgada da meia-noite), quando, na iminência do ataque das tropas britânicas a Lexington e Concord, pediu emprestado um cavalo aqui na zona para alertar a colónia, no que foi o início da Guerra Revolucionária que resultou na criação dos EUA. Da gesta de Paul Revere (eternizada no célebre poema de Longfellow Paul Revere’s Ride: “Listen, my children, and you shall hear/ of the midnight ride of Paul Revere (...)” – assim começa, em tom épico) está Boston cheia de histórias, incluindo na Old North Church (a mais antiga igreja da cidade ainda de pé), onde os sinais do ataque foram dados: uma lanterna acesa se fosse por terra, duas se fosse por mar.
Nós na cidade
Já estamos em North End, caminhando entre ruas vibrantes de comércio familiar. Este bairro é a Little Italy de Boston — restaurantes (mais de cem), cafés, geladarias e pastelarias não faltam. Em algumas destas últimas fazem-se filas para os tradicionais cannoli, que provamos (e aprovamos) depois da entusiasta indicação de uma companheira de viagem. É também o bairro mais antigo da cidade, por isso não surpreende que aqui esteja a casa de Paul Revere, a mais antiga de Boston, em praça de empedrado gasto e desirmanado.
E se durante grande parte da nossa estadia ficamos nesta parte “central” de Boston, temos uma passagem efémera pelo distrito de Four Point Channel. Aqui, o Instituto de Arte Contemporânea, edifício de vidro, ângulos rectos que se destacam na “caixa” saliente que é, digamos, a sua coroa, ajudou ao renascimento da zona, atraindo artistas e restaurantes — muitos, como aquele onde jantamos, diante da água.
Sim, também queremos voltar a Boston para buscar todos os instantes em que não estivemos perto do mar. Mas não só. Queremos, por exemplo, visitar o Isabella Stewart Garden Museum, atravessar o rio até Cambridge e, porque não?, ir a Fenway Park assistir a um jogo dos Red Sox, a mítica equipa de beisebol da cidade, como se fôssemos adeptos desde pequeninos — boné já não nos falta, caímos em tentação perante as tantas bancas nas ruas que vendem merchandising da equipa. E se calhar este é o verdadeiro espírito de Boston: fazer-nos querer ser parte dela.
GUIA PRÁTICO
Como ir
A Fugas viajou no voo inaugural da nova rota Lisboa-Boston, que une as duas cidades diariamente desde 1 de Julho num “novo” Airbus 330-200. Os preços começam em 489€ (simulação para partida em meados de Setembro e regresso uma semana depois).
Onde comer
Há dois pratos que são essenciais em Boston: o New England clam chowder (sopa de mexilhões) e os lobster rolls (rolinhos de lagosta). Ambos reflectem a longa ligação da cidade ao mar, embora o primeiro, por exemplo, possa levar bacon — como qualquer prato-bandeira, tem variações dependendo do lugar escolhido — e leva, com certeza, natas. Mais espessa ou menos espessa, esta “sopa grossa” (tradução literal de chowder) pode ser uma refeição por si só. A longa relação de Boston (de Nova Inglaterra, na verdade) com a lagosta (que merece vários festivais, um dos quais, o do Maine, é descrito sem pudores no ensaio-ícone do escritor David Foster Wallace, Pensem na lagosta) faz com que quem venha à cidade espere muito deste crustáceo. Uma das maneiras mais populares de a comer é num pão, onde pedaços de lagosta cortados pequenos, envolvidos num “molho” de maionese, aipo, salsa, sumo de limão, sal e pimenta, são colocados (os lobster rolls); a mais tradicional é cozida ao vapor, mas esperem-se inovações como pizza de lagosta ou o célebre macaroni & cheese com lagosta. Camarão, caranguejo, ostras e outros mariscos são comuns em muitos restaurantes da cidade, assim como peixe fresco servido sempre com molhos (de manteiga em muitos casos) que os tornam quase irreconhecíveis (e, será só a nós?, todos iguais).
Como qualquer cidade norte-americana, os hambúrgueres são omnipresentes — nós não os provámos, mas sabemos. E a comida italiana tem terreno fértil no North End, com as suas dezenas de restaurantes.
The Beehive
Bar e restaurante com decoração boémia e jazz ao vivo no South End.
541 Tremont St
Boston, MA 02116
Tel.: (+1) 617-423-0069
www.beehiveboston.com
Preços: 70 dólares com bebidas para duas pessoas é a média.
Top of the Hub
No 52.º andar do Prudential Center, restaurante e lounge.
800 Boylston Street
Prudential Tower, Floor 52
Boston, MA 02199-8142
Te.l: (+1) 617-536-1775
http://topofthehub.net
Preços: É um restaurante caro. As opções mais económicas são os menus de almoço: 39 dólares; de jantar: 55 dólares.
Legal Sea Foods
Cadeia de restaurantes de marisco na costa Leste dos EUA – na cidade de Boston há 11.
270 Northern Avenue
Liberty Wharf
Boston, MA 02210
Tel.: (+1) 617-477-2900
www.legalseafoods.com
Preços: O preço médio varia entre 20 e 50 dólares.
Union Oyster House
O restaurante mais antigo dos EUA funciona num edifício pré-revolução. Composto por várias salas em dois andares — uma das quais tem uma cabina reservada para a família Kennedy (era onde JFK se sentava a ler o jornal ao domingo).
41 Union Street
Boston, MA
Tel.: (+1) 617-227-2750
www.unionoysterhouse.com
Preços: Menu de almoço entre 14 e 20 dólares; menu de bar entre 6 e 18 dólares; especialidades da casa entre 22 e 34 dólares.
Onde dormir
Taj Hotel Boston
Como referimos, tem uma localização muito central, ideal para explorações a pé da cidade. Os quartos são grandes — assim como a cama.
15 Arlington Street
Boston, MA
Tel.: (+1) 617 536 5700
https://taj.tajhotels.com/en-in/taj-boston
Preços: dependendo da época, um quarto standard pode ir de 255 a 625 dólares.
A Fugas viajou a convite da TAP