Os holandeses e a água. Podia ser um capítulo da história europeia, a ilustrar as relações dos autóctones continentais com o respectivo meio ambiente. Seria – ou é – um capítulo pleno de revelações de invenção, engenho, imaginação, uma enciclopédia espantosa povoada por imagens de moinhos, pólderes, diques, canais, verdes pradarias, tudo bem abaixo do nível das águas marítimas.
Compreensivelmente, foram as catástrofes naturais que funcionaram como estímulo à invenção e ao desenvolvimento das técnicas de engenharia hidráulica holandesa. Algumas eram familiares, já, a outros povos e civilizações, sabemo-lo, que não pouco receberam os europeus das gentes e culturas do Próximo Oriente, (os primeiros moinhos conhecidos tiveram origem na Pérsia), mas foi ali, naquela região onde a terra sempre viveu resvés o mar, numa relação sempre à beira do desequilíbrio, que diques e moinhos viriam a vestir-se de impressionantes sofisticações e a dotar-se de funções de defesa contra intemperanças hídricas.
Em terras tão baixas, o fenómeno das inundações sempre foi uma ameaça de peso – os registos recuam até ao século IX para assinalar uma grande catástrofe do género e recordam, entre muitas outras, as grandes tragédias de 1570, quando grandes inundações devastaram todo o litoral desde Antuérpia até Groningen, no norte, e a do Natal de 1717, quando uma violenta tempestade atingiu toda a região, incluindo o oeste da Alemanha e a Escandinávia, e deixou quase todo o norte da Holanda debaixo de água.
Mais recentemente, em 1953, uma série de temporais fez romper vários diques na Zelândia, causando inundações que afectaram 150 000 hectares e provocaram enorme perda de vidas. Foi este último desastre que abriu caminho a um gigantesco projecto de uma rede de diques – o Deltawerken –, uma obra de engenharia hidráulica que abrange o delta dos rios Reno, Mosela e Escalda e protege actualmente uma vasta área do território holandês no sul do país.
Nas telas de Monet
Em Kinderdijk, como em muitas outras paragens neerlandesas, os moinhos compõem uma paisagem bucólica, parecem feitos à medida dos postais ilustrados e dos cliques intermináveis das vagas de turistas que os acometem de manhã à noite, sobretudo durante o Verão e aos fins-de-semana. Nos Países Baixos contam-se mais de um milhar de engenhos desta natureza, maquinarias que se multiplicaram na região não apenas com a função de equipamentos de apoio às actividades agrícolas mas também na condição de peças de um vastíssimo sistema de protecção, assumindo um papel crucial na drenagem de água dos pólderes. Os moinhos holandeses são, ainda hoje, embora com menos relevância do que outrora, um elemento mais do complexo sistema de segurança de gentes e povoados daquele que é um dos países europeus mais densamente povoados e que tem cerca de um terço do seu território abaixo no nível da água do mar.
O universo dos moinhos holandeses é extenso e pitoresco e estas geringonças tornaram-se símbolos ou algo muito próximo de um epítome despojado das típicas paisagens da região. O impressionista Monet reinventou-as num celebrado acervo de telas durante as suas duas estadas em Zaandam, a norte de Amesterdão – durante a primeira, em 1871, os pincéis e as tintas mostraram os moinhos em atmosferas carregadas, sob a ameaça de tempestades, levantando a face a ventos e chuvas, os elementos que justificaram a sua criação. Monet viu-os e retratou-os também, numa segunda viagem, três anos depois, com viva luminosidade e colorida floração à volta, mas descobri-los hoje imersos em outonais jogos de luz, em dias de mudança de estação, sob céus plúmbeos e com ventos fazendo dançar as velas e as ervas altas da beira dos canais, é um aliciante para o andarilho que mete os pés (ou os pedais) a rolar pelos pólderes.
Há-os, um pouco por toda a parte, de diversos talhes e tamanhos e carismas, ufanos das suas invenções técnicas, e são, da Zelândia à Frísia, um elemento constante na paisagem holandesa, bordeando canais, no horizonte de húmidas planuras verdes, à beira de caminhos percorridos por milhares de bicicletas ou caminheiros em busca do melhor ângulo para fotografar.
Entre todos, há uma vintena que se tornou símbolo por excelência da Holanda e da sua relação com a água. São os de Kinderdijk; ficam no pólder de Alblasserwaard, nos arredores de Roterdão, e foram classificados pela UNESCO como Património Mundial em 1997.
Uma visão da Holanda pré-industrial
Caminhamos ao longo de uma estreita faixa de terra entre dois canais. De um lado e de outro, os pólderes de Nederwaard e de Overwaard e alguns dos dezanove moinhos que fazem parte do conjunto. O caminho é frequentado por peões e bicicletas e permite uma visão panorâmica dos dois pólderes e dos esguios canais junto dos quais se erguem os moinhos e que servem de via a uns quantos praticantes de windsurf.
Antes de o caminho virar à esquerda, acompanhando a curva dos canais, atravessamos uma ponte de madeira assente sobre uma comporta e estamos junto à entrada do moinho-museu de Nederwaard. A proximidade do moinho torna-o maior aos olhos do andarilho; ao longe, alinhado com os seus pares, parecia bem mais pequeno. Com uma memória difusa de outros lugares neerlandeses, como Schiedam (também nos arredores de Roterdão), onde se situam os mais altos moinhos do mundo, lembramo-nos do fidalgo Alonso Quijano, cuja imaginação facilmente se deixaria acicatar pela visão destes gigantes.
Como convém, por ora, sermos mais Sancho do que Quixote, assentemos que além de local de memória de como eram as coisas rurais antes da Revolução Industrial – em cujo dealbar moinhos como os de Zaanse Schans viriam a desempenhar, aliás, um papel relevante -, Kinderdijk mostra-nos uns engenhos, datados na maioria da primeira metade do século XVIII, que têm estatuto de relíquia histórica e cultural mas que se mantêm plenamente funcionais, embora não tão importantes como em tempos passados para os equilíbrios hidráulicos dos canais e para a drenagem dos pólderes.
As batalhas neerlandesas com a água tiveram durante séculos este figurino: pólderes e casario protegidos da subida das águas dos rios pela bombagem accionada pelos moinhos ou através de precários diques construídos ao longo do litoral. Nestas bandas do grande pólder de Alblasserwaard a ameaça agravou-se por volta do século XIII e a resposta foi dada por meio da construção de canais - os weteringen - destinados a drenar a água dos pólderes no Inverno ou para responder ao assoreamento dos rios. O processo assegurado mais tarde através de bombagem a vapor e eléctrica é explicado com minúcia na estação de bombagem de Wisboom, no interior do moinho-museu do Blokweer e pelos guias durante as visitas guiadas: a água é elevada para níveis intermédios e devolvida ao leito dos rios logo que possível, o que se faz mediante a estrita observação dos ritmos das marés e dos caudais.
Nem toda esta gente vem de automóvel, ou não estivéssemos na Holanda. Há ciclovias que dão acesso, desde Roterdão e de outras paragens, a Kinderdijk e não falta gente a pedalar continuamente por estas paisagens planas – estes caminhos fazem parte, aliás, de rotas mais extensas integradas na enorme rede de ciclovias da Holanda e o roteiro local passa por uma séries de aldeias, totalizando sessenta quilómetros de caminhos traçados entre os pólderes. Há também quem chegue a Kinderdijk de waterbus, navegando através do canal que segue para Dordrecht, uma muito antiga e aprazível cidade da Zelândia.
O Centro de Visitas de Kinderdijk, situado numa antiga estação de bombagem a vapor, está quase sempre cheio de forasteiros - mas apenas uma pequena parte parece interessada em assistir ao audiovisual sobre o local. Afinal, para quem se lança numa visita a uma espécie de grande museu ao ar livre, "perder tempo" com o visionamento de (mais) um audiovisual numa era de massificação da imagem e de tecnologias de informação ressoa a bizarro. Os moinhos transformados em espaços museológicos parecem mais apelativos - e são, efectivamente, ainda que uma parte dos visitantes opte pela visita (livre) dos espaços exteriores, ao longo dos caminhos que marginam pólderes e canais.
A banda sonora de Kinderdijk
A última das famílias que habitavam os moinhos partiu nos anos 50 do século passado. Do lado de dentro do moinho-museu de Nederwaard e através da janela vemos o mesmo cenário que os seus habitantes avistavam em manhãs de fina neblina soltando-se do pólder. Está tudo, oficialmente, como deixaram: o quarto e a cama-alcova, os utensílios domésticos em esmalte, uma lamparina de metal pardo, delida pelo uso, fotografias a preto e branco, o relógio de parede com os ponteiros cansados.
O zénite da visita é, naturalmente, a estrutura mecânica do moinho, que se mantém inteiramente funcional: estando o vento de feição vemos e ouvimos todo o maquinismo original em marcha, eixos e rodas dentadas gemendo os mesmos gemidos de há décadas, de há quase três séculos. O som não é aqui apenas um suplemento de realidade, como era a música no tempo do cinema mudo. Este ruído áspero e cavo das peças da geringonça movendo-se, o girar das pás e a melodia do vento nas velas, lá fora, são elementos narrativos de pleno direito, assim como a banda sonora dos filmes de Jacques Tati, contando também um pedaço da história de Kinderdijk. Para completar a atmosfera retro, em vários pontos do interior do moinho são projectados constantemente breves clips documentais que retratam o seu funcionamento e a vida quotidiana de outros tempos em Kinderdijk.
Um pouco mais adiante, do outro lado da curva do canal, ao cabo de uma caminhada de vinte minutos, entramos noutro moinho metamorfoseado em museu, o Blokweer, uma construção do início do século XIX que se supõe estar assente sobre a estrutura de um moinho do século XVI. Aqui os propósitos didácticos são mais assumidos, com abundantes explicações sobre como funciona(va) todo o sistema de Kinderdijk, quer através de filmes, quer através da observação directa do sistema mecânico.
A atmosfera não é muito diferente da que nos oferece o congénere do Nederwaard, talvez até um pouco mais “convincente”: mobiliário em madeira e louça antiga de Delft, um moinho de café, um lampião novecentista, um fogão de sala negro como carvão, molduras com retratos, uma vetusta máquina de costura com belo ornato prateado, a tradicional alcova de madeira encastrada na parede, a cama desfeita e peças de roupa penduradas como se os seus habitantes voltassem daqui a nada.
Numa terra em que a água tanto é aliada como inimiga, não faltam histórias de inundações e de acontecimentos fantásticos - e quem será capaz de afiançar a sua inverosimilhança e atribuí-los apenas à imaginação popular? -, como o da famosa lenda de Kinderdijk. É uma narrativa simbólica das atribulações neerlandesas que justificaram a edificação dos moinhos, esta história do gato que salvou uma criança da fúria das águas mantendo o berço à tona – e daí vem o nome do lugar, Kinderdijk, que significa “o dique da criança”. No interior de um dos moinhos, lá está uma representação que evoca o berço e a petiz salva das águas.
Se na Primavera os pólderes se cobrem de flores e no Verão a luz se diverte em jogos de silhuetas, reflexos e contrastes, em breve o tempo invernal transformará os canais em populares pistas de patinagem. Em Kinderdijk, justamente numa época em que o belo cresce ao mesmo tempo que o temido e secular risco das inundações, teremos diante dos olhos daqui a algumas semanas o bilhete-postal de uma paisagem gélida e branca, com os canais convertidos em pistas de patinagem. É uma das mais bonitas e emblemáticas imagens da Holanda, com um tudo nada a fazer lembrar a pintura de Hendrick Avercamp, pintor seiscentista que retratou paisagens de Inverno ao estilo flamengo e que tem uma boa parte da sua obra exposta no Rijksmuseum, em Amesterdão. É uma imagem que pode ser colhida também nestes pólderes e canais de Kinderdijk.
Roterdão, cidade-laboratório
Um novíssimo Museu de Roterdão está instalado desde o início deste ano no Timmerhuis, um edifício polivalente desenhado por Rem Koolhaas, o arquitecto holandês que assinou o projecto da Casa da Música, no Porto. A visita a este espaço museológico é uma diligência útil para compreender uma cidade que desafina radicalmente face à maioria das cidades neerlandesas e que se viu, na sequência da II Grande Guerra e depois de uma massiva destruição, compelida a renascer das cinzas. Desde então Roterdão tem-se reinventado através de uma série de intervenções de estilos variados que transformaram a cidade num laboratório de experiências arquitectónicas, um cenário urbano em patchwork que articula projectos de várias décadas. Uma das três exposições, “De nieuwe stad” (“A nova cidade”), aborda precisamente essa dimensão através de um núcleo – “The City Lab” – que permanecerá aberto ao público até Maio de 2017.
Como complemento de uma visita a Kinderdijk, um roteiro arquitectónico por Roterdão oferece uma radical viagem no tempo. Ano após ano, o skyline futurista da cidade transforma-se com novas linhas e volumes, desde a península de Kop van Zuid, onde alguns edifícios têm a assinatura de arquitectos de renome mundial, até à zona pedonal de Lijnbaan, uma das primeiras artérias pedonais da Europa, e à área emergente de Katendrecht, passando pelas bem conhecidas Casa Cúbicas, pelo Kunsthal, um museu com vinte anos recentemente renovado, e pela icónica Ponte Erasmus.
Um passeio guiado é uma ideia a ter em conta: a UrbanGuides organiza um interessante roteiro arquitectónico pela cidade, que pode ser feito em bicicleta em cerca de duas horas e meia e está disponível aos fins-de-semana entre Abril e Outubro (mais informação em www.urbanguides.nl). Em alternativa, para quem baste um olhar de relance sobre as coisas ou disponha de pouco tempo, a torre Euromast é um excelente miradouro (com cerca de 100 metros de altura) para se ter uma vista de 360 graus da cidade.
GUIA PRÁTICO
Como ir
Não há voos directos de Portugal para Roterdão, mas Amesterdão e Eindhoven, na Holanda, e Bruxelas, na Bélgica, são aeroportos que recebem voos directos de Lisboa. A partir dessas cidades há boas ligações ferroviárias para Roterdão. Kinderdijk fica a menos de 15 km da cidade e o trajecto pode ser feito de automóvel ou de transportes públicos. A via waterbus tem a vantagem de se evitar o trânsito automóvel, além de proporcionar um itinerário cénico e permitir uma extensão fácil até Dordrecht. A viagem entre Roterdão e Kinderdijk toma cerca de meia hora (informação detalhada em www.cityguiderotterdam.com).
Quando ir
Primavera, Verão e início do Outono são as épocas mais aconselháveis. Agosto é o mês com mais afluência de visitantes, sentida sobretudo durante os fins-de-semana. Na Primavera, entre Abril e Maio, a viagem pode ser articulada com uma visita a Keukenhof, que fica a meia centena de quilómetros, por ocasião da floração das tulipas.
Onde ficar
Roterdão pode ser uma opção, dada a proximidade de Kinderdijk, a animação urbana e a maior variedade de opções de alojamento. Para quem prefira pernoitar perto de Kinderdijk, o Van der Valk Ridderkerk Hotel, em Ridderkerk, a poucos minutos de watertaxi, pode ser a melhor opção (tel. 31 180646900, email ridderkerk@valk.com, mais informação em www.hotelridderkerk.nl). Uma alternativa agradável e também bastante perto de Kinderdijk (a 7 quilómetros, acessível por watertaxi) é o Hotel Dordrecht, nas imediações do centro histórico de Dordrecht (tel. 31 786136011 / fax 31786137470, email info@hoteldordrecht.nl, mais informação em www.hoteldordrecht.nl). Para opções mais em conta, existe a possibilidade de alojamento nos vários bed and breakfast à volta de Kinderdijk (informação em www.bedandbreakfast.nl)
Informações úteis
No site www.holland.com pode ser encontrada informação genérica sobre os Países Baixos, bem como sobre os moinhos holandeses. Para saber mais sobre Kinderdijk, o site www.kinderdijk.com é uma excelente fonte de informação.