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Paphos: Dos mitos, das lendas e da arte

Por Sousa Ribeiro

Quando se fala de Paphos, fala-se de amor, de Afrodite, desse rochedo que resiste aos humores da natureza, contrariando a história da cidade, que foi durante séculos a capital de uma ilha que agora pretende harmonizar, aproximando as comunidades turca e grega. Paphos é Capital Europeia da Cultura em 2017.

Se alguém imaginasse, sob os túmulos dos reis, que Paphos se haveria de tornar, tantos anos depois, uma capital, muitos turistas teriam uma surpresa — ou um susto — ao visitar um dos lugares de culto da cidade cipriota. Agora, mais de 20 anos decorridos sobre a minha primeira visita a Chipre, sentado numa esplanada enquanto observo um grupo de ingleses em calções e t-shirt, gozando os prazeres do sol e de uma luz diáfana, lembro-me de um repórter fotográfico português, cujo nome esqueci, ter captado, com a sua objectiva de longo alcance, um treinador português que tanto prometia, subindo nos céus, num pára-quedas.

- A queda pode ser maior, assim já tenho a fotografia, dizia, para quem o percebia, enquanto sorvia com satisfação a cerveja espumosa que descia na caneca de forma vertiginosa.

As cidades, como Paphos, actualmente com cerca de 50 mil habitantes, não são muito diferentes. Têm os seus momentos de esplendor, de glória, logo podem evidenciar sinais de decadência, de se desfazerem em pó, nada mais restando do que uma ruína — a história, como a lente de uma câmara, agarra esses momentos.

Paphos, a despeito de já haver acolhido alguns eventos durante este mês, tem marcada para dia 28 de Janeiro a cerimónia oficial de abertura como capital europeia da cultura, inspirada pelos mitos e com mostras que exacerbam a história, a herança cultural, todo um legado que se apoia na diversidade e no multiculturalismo ao longo dos séculos até chegar aos dias de hoje, de uma cultura mais moderna e aberta, não apenas cipriota mas também europeia.

Como um coração que pulsa mais do que os outros, a cidade enfatiza esse mito que está tão associado ao seu nascimento, à bela história de amor entre Pigmalião e Galateia.

Aos poucos, o crepúsculo baixa sobre Paphos, o sol já se perdeu no horizonte azul manchado de laranja e, uns minutos mais tarde, como que embebido pelas estrelas, o porto, sobre quem parece pesar a responsabilidade de zelar pelo castelo, é iluminado pelas luzes. Entretido pelas minhas memórias, deixo-me invadir por uma vaga de nostalgia quando fito o cenário, mais composto ainda quando dois pelicanos se enquadram na moldura, passeando como um casal varrido por uma onda de romantismo.

Pelo menos é assim que os vejo no momento em que Pigmalião e Galateia regressam ao meu cérebro cheio como um ovo de recordações. Numa cidade moldada por mitos e lendas, reza a história que Pigmalião, um proeminente escultor, sedento de se dedicar à sua arte e, ao mesmo tempo, descontente com a vida fácil a que se entregavam as mulheres em Amatonte, tomou a decisão de viver no mais completo celibato, uma atitude que provocou o desagrado de Vénus, cujo templo se erguia nessa mesma cidade da ilha. Vénus não compreendia e não podia aceitar uma existência sem amor e, ofendida com Pigmalião, vingou-se desse homem que trabalhava a pedra, enfeiticiando-o ao ponto de ele se apaixonar por uma estátua esculpida do marfim, uma obra de uma beleza sem paralelo, talhada pelo seu cinzel e a que a deusa do amor resolvera chamar Galateia.

Os pelicanos afastam-se, abandonam o meu campo de visão — e o porto, escutando o murmúrio do mar, está agora coberto de luzes .

A tristeza preencheu o coração de Pigmalião e, assomado por essa aventura solitária que adquiria a forma de desventura, vivendo nessa angústia, o artista começou a dar eco a súplicas que ao fim de algum tempo acabaram por comover Vénus. E esta, para quem o amor era prioritário, animou a estátua com o fogo da vida, nessa nova condição Galateia casou com Pigmalião e desse matrimónio nasceu um filho (há quem defenda, entre outras teses e interpretações para as origens da toponímia, que era uma filha) a que ambos deram o nome de Paphos.

Soa bem a história, a lenda, o mito.

E Paphos fundou a cidade.

A arte ao ar livre

Eternamente grata ao seu criador, a cidade celebra a sua criação na convicção profunda de que é, ela própria, uma peça de arte, um museu a céu aberto, neste ano tão especial uma Open Air Factory, o conceito em que se baseia e que não se limita ao espaço — a abertura visa, talvez até com maior afectação, a tolerância, a aceitação e o encorajamento e a integração de culturas, ideias e crenças. Paphos funciona, desde tempos imemoriais, como uma ponte entre o oriente e o ocidente e, nesse sentido, assume em 2017 uma parte significativa da responsabilidade de ligar continentes, de aproximar a Europa de que faz parte ao Médio Oriente do qual está tão perto, proporcionando um intercâmbio de culturas. Em simultâneo, o programa de Paphos como Capital Europeia da Cultura pretende minimizar as diferenças entre os turistas, os residentes e os imigrantes, numa tentativa de transformar todo o distrito, simbólica e fisicamente, num espaço comum e de partilha para todos os cidadãos.

Mas as boas intenções de Paphos não esquecem, nestes tempos conturbados, a realidade de uma ilha dividida desde 1974, duas comunidades em permanente tensão, a grega no sul, a turca no norte — as iniciativas, para encurtar as distâncias, serão uma realidade durante 360 dias, inseridas no tema Stages of the Future, uma refererência ao futuro mas também ao presente através de mostras de um mundo contemporâneo e dos seus avanços tecnológicos, os seus problemas, sonhos e esperanças, bem como as suas iniciativas e ideias para uma mudança, particularmente focada num futuro em comum das duas comunidades cipriotas e no desenvolvimento de um diálogo intercultural, na verdade os dois pontos-chave daquela que é uma das grandes apostas de uma das capitais europeias da cultura este ano.

Quem visitar Paphos em Janeiro, entre 28 e 29, pode desde logo experimentar um pouco do que vai ser a vida da cidade até Dezembro, com um programa que, inspirado nessa mitologia, terá como cenário o centro cultural e, como pano de fundo, os elegantes edifícios neo-clássicos, as tradicionais mansões e a câmara municipal, com eventos que incluem teatro, música, dança, espectáculos de rua e outras manifestações artísticas paralelas que terão como palco diferentes lugares do espaço urbano.

Para o primeiro dia de Julho está agendado um acontecimento que promete encher, uma vez mais, as ruas de Paphos, o denominado Summer Highlight, cuja fonte de inspiração foi encontrada na temática World Travellers e que terá lugar na zona portuária (com um cartaz que contempla frotas de barcos, fogo-de-artifício no mar, espectáculos de luz e música), porta de entrada de tantos viajantes ao longo da história da cidade.

Perscrutando as luzes dançando nas águas e recebendo a brisa e a fragrância vinda do mar, o meu imaginário sente-se seduzido pela história deste porto estratégico, tomado pelos Ptolomaicos no início do século IV a. C., pouco depois da conquista do Egipto. Nikokles era, por essa altura, o rei de Paphos e a sua ascensão ao trono traduziu-se num desenvolvimento significativo do reino, especialmente quando o soberano decidiu abandonar Palai Paphos e instalar-se na actual Kato Paphos, cuja fundação remonta ao ano 320 a. C. — a cidade antiga perdeu importância, enquanto Kato Paphos, decididamente virada para o mar e com vocação para o comércio marítimo, revelava todo um potencial que não tardaria a ser aproveitado. Era o início de uma nova era para Paphos, que rapidamente se tornou no centro cultural, financeiro e administrativo da ilha, provando que a decisão de Nikokles estava correcta — e a cidade, mais tarde mandada fortificar pelo rei (as ruínas ainda hoje se podem ver), permaneceu como capital durante cerca de 400 anos e assim se manteve quando se submeteu ao jugo dos romanos.

Volto a lembrar-me do treinador subindo nos céus.

Paphos foi violentamente atingida por um terramoto 15 anos antes do nascimento de Cristo — a cidade ficou reduzida a ruínas. E outros se seguiram ao longo da sua história, o último dos quais em meados do século passado, destruindo uma cidade que também não foi poupada, anos antes, em 1878, pelos otomanos, que a abandonaram entregue à sua fome e miséria, com alguns minaretes decorando antigas igrejas. 

Programa ambicioso

Ao longo do ano, a organização tem previstos mais de 300 eventos e projectos, não apenas em Paphos bem como em toda a região e mesmo noutras cidades do país. A música ocupará, entre Janeiro e Dezembro, um espaço importante entre as celebrações graças ao The Travelling Stage, com concertos de artistas de múltiplas nacionalidades naquela que constituirá também uma viagem musical e cultural pelas comunidades e lugares mais representativos da região. Ao mesmo tempo, em Abril, será organizado o Mediterranean Musical Traditions, explorando as tradições musicais do oriente do Mediterrâneo e dos países vizinhos e acompanhado de um simpósio que juntará artistas, produtores e académicos em workshops com a participação de estudantes, assim como concertos em distintos palcos de Paphos. Logo em Maio, a cidade acolhe outro evento que certamente irá atrair muitos olhares e atenções, o One Touch of Venus & Others, um espectáculo inspirado no famoso musical de Ogden Nash, One Touch of Venus, e outras composições de Kurt Weill e Berthold Brecht que serão interpretadas, na praça do castelo de Paphos, pela conceituada cantora alemã Ute Lemper e pela Orquestra Sinfónica de Chipre.

Tendo como palco a mesma praça, Junho receberá o Festival de Dança Contemporânea, com performances das mais destacadas companhias de dança europeias e, ainda antes, em Março, Paphos acolhe o Mind Your Step, um projecto com a colaboração do Centro Municipal de Dança de Limassol mas que engloba parcerias com outros países, como a Itália e a Irlanda, e que representa muito mais do que a dança — será também a ocasião para estabelecer ligações entre os espaços urbanos e a dança moderna através de simpósios que irão reunir artistas e especialistas em desenvolvimento urbano, decorrendo, em simultâneo, outras acções em que a dança assumirá um papel principal, criando uma narrativa coreográfica da cidade.

Na área do cinema, O See Fest, um projecto lançado já em 2014 (mas todos os anos com uma temática diferente), convida locais e visitantes a assistir a sessões de cinema na praia durante o mês de Agosto, em paralelo com o Moving Screens, uma forma original de levar o cinema às zonas rurais da região. Paphos organizará também, em Maio, o primeiro International Monodrama Festival e, no mesmo mês, o Lysistrata, uma proposta teatral inspirada na comédia de Aristófanes que terá como cenário a Casa de Aion, uma mansão do período romano com bonitos mosaicos descobertos no Parque Arqueológico de Kato Paphos. A comédia, que pretende reflectir a dimensão global da guerra, é uma produção multilingue e será dirigida por Brian Michaels, contando com a participação de actores gregos e turcos cipriotas, nigerianos e brasileiros. O teatro volta a ter grande relevância em Julho, com a apresentação do Trojan Women, uma peça que evoca o antigo drama grego de Eurípides e que aspira a sensibilizar o público — e o mundo — para os problemas desde a Guerra de Tróia até aos mais recentes conflitos, para as vinganças e as perseguições, para a divisão das populações levada a cabo por alguns países — e por essa mesma razão será interpretada por um grupo de actores provenientes de cidades divididas, como Nicósia, Mostar e Jerusalém. 

Tantos anos depois, uma vez mais ao final da tarde, quando o sol estava prestes a mergulhar no mar de águas calmas, voltei a Pétra Tou Romíou. Aqui actuarão (bem como noutros lugares históricos da região), em Agosto deste ano, ao ar livre, artistas de renome, numa iniciativa incluída no programa Moon &Stars. Por agora, a baía permance tranquila, envolvida numa serenidade tão apaziguadora e, ao contrário de Paphos e dos treinadores, imperturbável, aparentemente menos vulnerável aos humores do mundo, de uma beleza singular. Aqui e acolá, casais de namorados, observando a espuma que se desfaz na praia, acreditam que o amor é eterno e mesmo que, aqui, tão perto de Paphos, novamente capital, a deusa Afrodite irá emergir das águas com o seu corpo de marfim, ainda mais bela do que Galateia, a estátua que se transformou em mulher para dar um filho a Pigmalião.

 

Guia prático 

 

Quando ir

As melhores estações do ano para visitar Chipre são a Primavera ou o Outono, quando as temperaturas são mais agradáveis. No Verão, especialmente nos meses de Julho e Agosto, os termómetros ultrapassam não raras vezes os 40 graus. Situado na parte oriental do Mediterrâneo, a sul da Turquia, a norte do Egipto e a sudoeste da Grécia, Chipre beneficia de um clima tipicamente mediterrânico, com muitos dias de sol. No entanto, o calor é mais intenso nestas paragens do que em qualquer outra zona banhada por aquele mar (a temperatura da água ultrapassa os 25 graus no pico do Verão). Há algumas – mas poucas – variações climáticas que resultam da presença de duas cadeias montanhosas, uma a Troodos, que se eleva a pouco mais de 2000 metros, abraçando quase todo o sudoeste da ilha, e a outra, menos imponente, a Kyrenia, na parte norte-centro, ambas protegendo a planície central Mesaoria (significa literalmente entre as montanhas, em grego) e uma parte considerável da costa oriental – daí resultando um clima semiárido e escassa queda de precipitação.

  

Como ir

Não há ligações aéreas directas entre Portugal e Chipre mas diferentes companhias voam entre Lisboa e Larnaca com uma escala. Não sendo propriamente barata, a tarifa (a rondar os 600 euros) da Lufthansa tem a vantagem de não obrigar a uma paragem demasiado prolongada em Frankfurt. Mesmo assim, convém pesquisar outras possibilidades, como a Transavia (que liga sazonalmente Amesterdão a Paphos) ou mesmo – e essa pode ser uma opção mais em conta – voar para Atenas e, desde a capital grega, com a Aegean Airlines até Larnaca (preço para um bilhete de ida e volta ronda os 120 euros) ou com a Ryanair (não opera diariamente) directamente para Paphos (o aeroporto está localizado a escassos seis quilómetros do centro da cidade). 

 

Onde comer

Em Paphos, não deixe de experimentar (e de reservar com alguma antecedência) o Ficardo (www.ficardo-weddings.com), na Poseidonos Avenue 50A, o extremamente popular (pode ter de esperar uma semana por uma mesa, mesmo durante a época baixa) Laona, na Votsi Street, 6, um restaurante gerido há mais de 30 anos pelos mesmos proprietários, ou, finalmente, o The Windmill, na Pafias Afroditis Street, 19, com um ambiente familiar e uma cozinha soberba.

 

Onde dormir

Em Paphos, como em qualquer outra cidade cipriota vocacionada para o turismo, as alternativas são diversificadas, em qualidade e preço. Naquela que é uma das capitais europeias da cultura este ano, tudo depende de quanto pretende gastar durante a sua estada: um dos locais que se recomenda é o Apollonia Holiday Apartments, com uma localização priveligiada (a não mais de 500 metros de praias com bandeira azul, como a de Mbania e Alexander, e a apenas um quilómetro do porto de pesca e dos mosaicos e dos túmulos dos reis), mas numa cidade com especial vocação para o turismo o que não falta mesmo é uma variada oferta hoteleira.

 

A visitar

A poucos quilómetros de Paphos, os amantes do mergulho têm a possibilidade de explorar alguns dos barcos que se afundaram, em finais do século passado, na costa sul, enquanto os apaixonados pelas caminhadas (por aqui passa a E4, considerado o trilho mais longo da Europa, com um total de 10 mil quilómetros) e pelo todo-o-terreno (incluindo bicicleta de montanha) devem dirigir-se à península de Akamas (deriva do nome de um guerreiro grego) para explorarem o desfiladeiro de Avgas (Avakas) e admirarem lagoas, baías, praias, aldeias e o solitário Cabo Arnaoutis numa das regiões mais tranquilas da ilha.

Paphos prima pela sua autenticidade, pelos seus monumentos, pelo culto a Afrodite e contempla um conjunto de lugares que devem ser visitados, muitos deles integrados na lista de Património Mundial da UNESCO já desde 1980.  

 

Informações

Para visitar o país, os portugueses somente precisam de um documento de identificação (passaporte, bilhete de identidade ou cartão de cidadão).

O euro é, desde Janeiro de 2008, a moeda do país.

As línguas oficiais de Chipre são o grego (em Paphos) e o turco mas o inglês (a ilha foi colonizada pelos ingleses) é falado por uma grande fatia da população.

Portugal tem representação diplomática na ilha, em Nicósia, na Avenida Arch. Makarios, 9, Edifício Severis, 5º andar, podendo os contactos ser feitos através do telefone (+357) 22 375 131 ou do e-mail embportugal@nicosia.dgaccp.pt. Além da embaixada na capital, o país está também representado por dois consulados, um em Larnaca (na Avenida Artemis, 16) e outro em Limassol (na Neocleous House, Avenida Makarios III, 195).

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