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Há uma voz na noite a chamar-nos para a serra

Por Alexandra Prado Coelho

O festival Terras Sem Sombra usa a música sacra e antiga para atrair visitantes ao Baixo Alentejo. O primeiro fim-de-semana foi para descobrir Almodôvar e as suas muitas histórias, do mel aos sapateiros, dos franciscanos ao medronho, passando pelos mistérios da Escrita do Sudoeste.

É um cântico de dor e de força, uma voz que atravessou oceanos e que trouxe com ela povos e raças de outros continentes e que se misturou e transformou. O canto flamenco, pela voz (e os gestos) de Arcángel, cruza-se aqui com as suas próprias origens numa viagem até ao barroco do século XVI pela Accademia del Piacere, dirigida por Fahmi Alqhai, mas também prestando homenagem à influência das sonoridades vindas das Américas e de África.

É uma música que transcende o tempo e o espaço para, partindo da Igreja Matriz de Santo Ildefonso, em Almodôvar, no Baixo Alentejo, cruzar a noite, desafiar a chuva e acordar os espíritos adormecidos da floresta, os medronheiros que renascem das cinzas, as abelhas que aqui fazem um mel excepcional, os cogumelos que espreitam por baixo da terra, e até as misteriosas letras que um dia outros homens, habitantes destas terras, deixaram gravadas nas rochas.

O concerto do cantor Arcángel com a Accademia del Piacere, a 11 de Fevereiro, foi o primeiro do Festival Terras Sem Sombra, que percorre oito localidades do Baixo Alentejo até 1 de Julho e que este ano tem como país convidado a Espanha e como tema O Espiritual na Arte. É assim, através do poder da música, como se fosse um canto encantatório de sereias, que a organização do festival, a associação Pedra Angular, atrai à região visitantes de outras partes do país ou de Espanha.

Vêm pela música, mas também pelo património, o construído pelo homem e o natural (o festival tem sempre um concerto sábado à noite e um passeio pela biodiversidade no domingo de manhã). E em cada localidade encontram histórias diferentes. Em Almodôvar, por exemplo, estamos na serra, algures numa fronteira incerta entre o Alentejo e o Algarve, numa terra que sabe guardar as suas memórias.

Uma escrita misteriosa

Há 2500 anos, os habitantes desta serra criaram uma escrita feita de formas que ainda hoje permanecem indecifráveis para nós. Chamam-lhe a Escrita do Sudoeste e as estelas funerárias da Idade do Ferro onde estes símbolos estão gravados foram encontradas sobretudo nesta zona do Baixo Alentejo.

O Museu da Escrita do Sudoeste (Mesa) conta essa história, reveladora da necessidade que o homem sempre teve de comunicar através do tempo e de garantir que a sua mensagem chegaria a outros, mesmo sem saber quando nem de que forma. O que é dramático, neste caso, é que ainda não se encontrou uma forma de decifrar estes símbolos.

Por isso, é sobretudo a figura de um guerreiro da Idade do Ferro, com uma lança numa mão e um escudo na outra, desenhada no centro de uma das estelas e rodeada pelos símbolos da Escrita do Sudoeste, que nos fala hoje sobre esses misteriosos antepassados.

Continuemos, então, pelos caminhos da espiritualidade – se o Mesa nos revela o desejo de o homem se eternizar através da palavra escrita, a igreja do Convento da Nossa Senhora da Conceição, fundado no século XVII, fala-nos de outros antepassados, mais recentes, os frades da Ordem Terceira de São Francisco, que habitaram Almodôvar até à extinção das ordens religiosas.

O fim do convento levou à dispersão dos frades mas o edifício foi poupado e há poucos anos recuperado num esforço conjunto da Diocese de Beja (proprietária da igreja) e do município de Almodôvar (ao qual pertence o resto do convento).

No dia em que José António Falcão, director do Terras Sem Sombra, nos conduz numa visita guiada, o órgão, construído na época joanina numa oficina de Hamburgo, na Alemanha, e que é uma das peças mais emblemáticas da igreja, não pode ser visto porque está em restauro. Mas observamos a curiosa peça que o suporta, toda decorada com delicados desenhos que representam uma China imaginária, evocando a evangelização franciscana no Oriente.

Estava na moda na época este uso da chinoiserie para a decoração, mas o que é interessante é que, apesar da aparência chinesa dada pelas roupas das personagens, a cena representada é completamente ocidental, com uma igreja e um campanário, uma ponte, um poço e, no meio de tudo isto, um pagode. Espera-se agora que o regresso do órgão restaurado dê um novo fôlego ao projecto de fazer renascer a escola de música que no passado existiu em Almodôvar.

José António Falcão explica que, apesar de os franciscanos serem muito austeros e isso reflectir-se no exterior do edifício, o interior da igreja “tem uma riqueza decorativa surpreendente, o que é muito característico do Alentejo”. Vemos uma profusão de anjinhos ou rapazes, a suportar colunas, por entre conchas e aves do paraíso que comem uvas e flores. Curiosa é a presença, no altar, de uma porta pintada na parede. “É uma porta fingida, muito característica do barroco”, nota Falcão. Mas não é apenas um truque, transporta um aviso: o que julgamos que é verdadeiro e real pode não o ser e há outra existência, mais real, que nos pode escapar se não estivermos atentos.

Uma terra de sapateiros

Muito real foi, contudo, a presença dos sapateiros em Almodôvar. Esta ficou mesmo conhecida como terra de sapateiros e hoje quer recordar esse papel importante que teve, desde o final do século XIX, no fabrico do calçado artesanal em Portugal. A antiga cadeia foi transformada no museu Severo Portela e neste existe um pequeno núcleo dedicado à história do ofício de sapateiro, com os instrumentos de trabalho e uma colecção que mostra a grande variedade de sapatos ali criados, desde as botas de trabalho ao calçado mais sofisticado para os domingos de descanso.

Chegaram a existir em Almodôvar cerca de 200 sapateiros em actividade e por todo o lado havia pequenas lojas e oficinas onde homens de várias gerações desenvolviam a sua arte. A Rota Turística da Memória e do Calçado Artesanal recupera um pouco dessa história, identificando cada uma dessas oficinas e lembrando o nome dos que nelas trabalhavam, num percurso que pode ser feito pelo centro histórico de Almodôvar.

Para terminar, subimos até à serra do Caldeirão, que aqui tem o Pico do Mú, com 577 metros de altitude. A acção dedicada à biodiversidade pela organização do Terras Sem Sombra teve como tema, em Almodôvar, a regeneração da serra destruída pelo grande incêndio de 2004. Apesar da chuva, um grupo de pessoas sobiu até à zona conhecida como Monte do Jogo da Bola para, nos terrenos do senhor Manuel Guerreiro, ajudar a plantar sobreiros e medronheiros.

Foram 30 mil hectares de área ardida, oito mil só em Almodôvar e uma situação absolutamente dramática para os muitos pequenos agricultores que aqui tinham as suas parcelas de terreno. Desde então, e com a ajuda do trabalho de limpeza dos sapadores florestais, a serra tem vindo, a pouco e pouco, a regenerar-se.

E uma das apostas, sublinha o presidente da Câmara, António Bota, é precisamente o medronho, que aqui, garante, “é o melhor do mundo”. A localização do município é muito particular. “Olhamos para norte e vemos uma planície autêntica, amarela, olhamos para oeste e para sul e vemos a serra do Caldeirão, riquíssima em produtos endógenos.” A qualidade do medronho, explica o autarca, tem a ver com a quantidade de sol que os medronheiros recebem, amenizada pela aragem fresca da serra.

O grande número de pequenos produtores artesanais foi-se reduzindo — as altas taxas que são cobradas pela elevada percentagem de álcool do medronho, cerca de 50%, ajudam a explicar isso — e hoje existem três grandes produtores, cuja produção é já insuficiente para a procura. No entanto, acrescenta António Bota, há muita gente a plantar pomares de medronho — da mesma forma que há um produtor inglês a fazer um grande investimento no vinho, com a plantação de 200 hectares de vinha.

O outro produto que enche de orgulho o município é o mel. “Temos produtores que exportam para as grandes indústrias na Alemanha e que nem vendem ao consumidor comum, as empresas vêm buscá-lo directamente”, diz o autarca. A variedade de plantas da serra, do rosmaninho à esteva, facilita a vida das abelhas e leva a que algumas das melarias do concelho comecem já a fazer a reprodução de animais para aumentar a produção.

 

Guia prático

Onde dormir

Monte Coito
Turismo rural, com um pequeno-almoço a não perder.
Tel.: 963 882 041
Email: geral@montecoito.pt
www.montecoito.pt

O que visitar

Museu da Escrita do Sudoeste
Rua do Relógio
Tel.: 286 665 357
De segunda a sábado das 10h às 13h e das 14h às 18h.

Museu Severo Portela
(com o núcleo dos sapateiros)
Rua de Beja, 2

Praça da República
De segunda a sábado das 9h às 13h e das 14h às 18h.

Igreja Matriz de Santo Ildefonso

Convento de Nossa Senhora da Conceição

Para provar

Feira do Cogumelo e do Medronho (Novembro, aldeia de São Barnabé, serra do Caldeirão). Restaurantes com especialidades regionais: Camões (não perder o cozido de grão), Taberna Serafim e O Moinho.

Próximas etapas do Terras Sem Sombra

Santiago do Cacém
25 e 26 de Março
Concerto na Igreja Matriz de Santiago Maior e passeio pelo montado em torno do Convento do Loreto

Castro Verde
8 e 9 de Abril
Concerto na Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição e o ciclo da lã no Campo Branco

Serpa
6 e 7 de Maio
Concerto na Praça da República e passeio pelo olival tradicional da Serra do Ficalho

Sines
3 e 4 de Junho
Concerto na Igreja Matriz de São Salvador e passeio à descoberta dos monges eremitas da Junqueira

Beja
17 e 18 de Junho
Concerto na Catedral e passeio pelos mistérios e tesouros do Guadiana

 

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