Fugas - Viagens

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A cozinha sem disfarces da Galiza

Por Francisca Gorjão Henriques

Na edição anterior da Fugas demos-lhe conta de como a gastronomia galega se tem vindo a impor. Esta semana, entramos em fábricas, visitamos mercados e sentamo-nos à mesa dos restaurantes. E confirmamos: na Galiza, a cozinha é um assunto sério.

A Primavera também está invernosa na Galiza. Sopra um vento norte que enregela, a chuva cai a espaços, anda-se com os olhos no passeio e em passadas largas. Mas, no fundo, não está mal para aquilo a que nos propusemos: comer.

Passa-se ao largo de Arteixo, uma zona de indústria têxtil, onde Amancio Ortega, natural daqui, fez crescer o seu império, o grupo Inditex (da Zara). Não é atracção turística, mas tornou-se uma referência incontornável para comentar numa viagem de carro entre a Coruña e Cerceda. O que se vê da estrada são eucaliptos atrás de eucaliptos e manchas amarelas da giesta em flor. Será assim até nos aproximarmos da Porto Muiños.

A fábrica fica no centro de um pólo industrial e ninguém diria que lá dentro se esconderiam coisas tão delicadas como alfaces-do-mar e ovas de ouriço.

Quando Antonio Muiños e a mulher, Rosa Mirás, se viraram para o que ele chama de “legumes do mar”, depois de pouco sucesso com a produção de cogumelos, ninguém lhes ligava. Estávamos em 1998 e pouca gente (no Ocidente) não torceria o nariz ao ver uma alga servida ao jantar. “É um produto difícil”, comenta António Muinõs. “‘Isto come-se? Como é que se come?’ As pessoas estavam habituadas a vê-las na praia e não no prato.” Até que os chefs começaram a falar delas, os media também, os bloggers foram atrás. Os nutricionistas reconheceram-lhes valor e louvaram as suas qualidades e vantagens para a saúde.

Agora, estes legumes marinhos tornaram a marca Porto Muiños conhecida entre os chefs espanhóis e não só — ou terá sido, como diz Antonio, o Porto Muiños a trazer a boa fama de que as algas gozam nos restaurantes de topo? “Fomos os primeiros em Espanha e um exemplo para muitos países. Os grandes chefs estavam a fazer coisas com produtos novos e achámos que poderiam ter interesse. E eles começaram a ver que havia aqui um mundo diferente, com diferentes texturas.” A seguir afirma: “O grande salto será usá-las nas receitas de casa. E já está a acontecer.” Aposta que se colocarmos wakame nos pastéis de bacalhau eles ficarão mais leves e digestivos, “e continuam a ser pastéis de bacalhau”.

Mesmo nas conservas que fazem aqui — amêijoas, mexilhões, berbigão — as algas têm uma presença forte. Também comercializam saladas de algas, arroz de algas, molho de algas, caril de algas...

O filho de Antonio é um dos mergulhadores da empresa. Naquele dia, como o mar do Norte da Galiza estava bravo, teve que ir para o Sul. As algas são apanhadas à mão, “de forma sutentável”, assegura-nos. Trezentas e cinquenta toneladas por ano. Uma parte será seca e usada em conservas — cerca de 60% da produção —, a outra vai para hotéis e restaurantes. A recolha é feita de manhã bem cedo, para poder seguir para os clientes durante a tarde e chegar ao destino ainda fresca.

Em cima de uma mesa de inox, sobre papel branco, está uma enorme variedade de algas, em vários tons de castanho, outras verdes, algumas com formas mais esguias, outras mais curtas e recortadas. Os limos compridos que Antonio Muiños segura na mão, como se fossem uma cobra, podem crescer até 10cm por semana, explica, agarrando pela “pega” com que a alga se cola à rocha. “O tipo de mar e de costa tem influência. As algas grandes, como esta, precisam de uma costa protegida, já as mastocarpos (também chamadas de musgo estrelado) e as glacilárias (de cor avermelhada) são mais rijas e não precisam de tanta protecção.” O musgo da Irlanda gosta de mar batido, a rama-do-mar, que tem “sucesso na confecção de tempura”, também. Mas “as mais delicadas estão abaixo dos quatro metros e nunca ficam expostas na maré baixa”. As especificidades continuam: as nori só há no Verão e nas praias onde há uma mistura de pedra e areia — “precisam que a areia lhes faça uma ‘massagem’”, brinca. Depois, cabe ao sol limpá-las. “São trituradas para fazer a folha que é usada no sushi.”

Também vemos algumas plantas que nascem nas praias e têm um sabor que mistura ervas e mar: junco marítimo (nasce onde há também salicórnia), funcho marítimo, beldroegas, acideira, que como o nome indica tem um sabor capaz de competir com o limão (e nasce perto da costa de mar batido), crisântemo marítimo, chalota-do-mar, raíz de capuchinha...

Algumas das algas estão em salmoura, para se conservarem e por isso parecem pulverizadas com gelo. Mas nem todas podem ser tratadas assim, porque algumas perdem textura nesse processo.

Muiños pega numa frigideira, deita-lhe um fio de azeite, e põe-na ao lume. Depois, passa uma folha de alface-do-mar por água (para retirar o sal), seca-a com papel de cozinha e coloca-a na frigideira. Deixa fritar ligeiramente para mostrar que, pondo um filete de peixe por cima, a alga faz de segunda pele, deixando-o mais húmido e com mais sabor.

Entretanto, dá-nos a provar rama-do-mar, “a que é mais usada pelos chefs”. “Chamam-lhe os percebes dos pobres”, e nem é preciso explicar porquê: assim que se trinca é uma bomba de percebes que rebenta na boca. “Também faz uma óptima maionese.”

Aqui também se utilizam as algas — neste caso folhas de kombo — para “cama” dos berbigões de conserva. “Potencia o sabor”, diz Antonio Muiños depois de abrir uma lata e como que por magia soltando um cheiro a mar.

A peregrinação

Vista de um mapa, A Coruña (os galegos chama-na assim, e não La Coruña) tem quase a forma de uma árvore de copa larga deitada sobre o mar, cheia de recortes. Pode ser um pouco difícil para um estrangeiro situar-se nos pontos cardeais. Mas uma vez chegado ao centro histórico resta-lhe deambular e encontrar os sítios onde comer as melhores tapas.

Onde agora está a Plaza Maior havia uma muralha que dividia os dois lados da cidade: de um lado a dos pescadores e marinheiros, os que sofriam os ataques dos piratas, do outro os comerciantes da burguesia. No século XIX deitou-se o muro abaixo e nasceu a praça onde agora está a Câmara Municipal e restaurantes com esplanadas.

Entramos num deles, o La Penela. O menu é um resumo da gastronomia tradicional: mexilhões tigre (o mexilhão é cortado aos pedaços, envolvido com béchamel e panado com pão ralado, dentro da sua concha); tortilla de Betanzos (há quem diga que não há melhor, molhada no interior e com as batatas cortadas fininhas); uma vitela que esteve quatro horas numa panela em lume brando (a vaca e o porco são os dois animais de eleição dos locais) e, no final, leite frito (fazem-no em várias regiões de Espanha) e tarte de amêndoa (típica da vizinha Santiago de Compostela, onde iremos mais tarde).

Na última década, a Galiza tem promovido a sua “gastronomia de quilómetro 0”, ou seja, à base dos seus produtos locais (ver texto da última edição da Fugas, “A Galiza encontrou-se na cozinha atlântica”). Polvo, peixe e marisco estão no topo da tabela, mas também há orgulho nos queijos, hortícolas (Padron, a terra dos pimentos, fica aqui e os primeiros do ano, em Junho, são enviados para a Casa Real), frutas, vinhos...

É uma cozinha de “sensatez e sabedoria” e “não de disfarce”, como se lê no prólogo da Cocina Gallega de Álvaro Cunqueiro e Araceli Filgueira Iglesias (1982). É uma cozinha de mães e avós “com fórmulas muito equilibradas para manter o sabor natural dos produtos”.

A nova cozinha galega desenvolveu-se a partir desta matriz e não renuncia a ela. É o que nos diz Marta Fernandez, directora do Centro Superior de Hostelería de Galicia (CSHG). “A gastronomia galega é produto. Temos produtos de grande qualidade. Nos últimos anos, tivemos mais de 300 produtos DOP ou de denominação geográfica protegida.” Mas “queremos recuperar a cozinha tradicional”, afirma.

Momentos antes, encontráramos Maria, uma estudante de 20 anos, a apresentar o projecto semestral ao professor, rodeada pelos colegas, como se fosse um chef a explicar o que iria ser servido ao jantar. Durante uma semana é isso mesmo que farão, abertos ao público e tudo; uma semana para mostrar o que aprenderam em dois anos. Decidiram apostar naquilo que a Galiza tem em abundância — mexilhões, vitela, algas —, mas também nas memórias de infância, com passeios pelo bosque (gelado de eucalipto apanhado há dias). “A sobremesa parece uma paisagem galega.” Nas costas da sua t-shirt lemos: “A cozinha como ligação entre a natureza e o ser humano”.

Entramos no centro histórico de Santiago de Compostela pela porta onde entrariam os peregrinos vindos da rota portuguesa, a Porta Faxeira. A nossa peregrinação, contudo, não é religiosa nem espiritual.

Encaminham-nos para a Rua do Franco (francos eram os homens livres que atravessavam os Pirenéus, explicam-nos). Passamos pelo Boteco — onde antes havia o moinho público. Ainda lá está a mó, enorme. Mas agora o trigo que aqui entra é já em forma de pão, para acompanhar os petiscos. Duas portas ao lado, A Barrola anuncia: “Temos Lampreia” — é onde os reis vêm comer quando visitam Santiago. A lampreia é tão característica desta zona como no lado português (será que a rota da lampreia, que aqui também se organiza, não poderia diluir a fronteira e tornar-se ibérica?).

Vemos por todo o lado montras com os queijos tetilla (com uma forma cónica, como um seio, daí o nome). O tetilla é um queijo de vaca que recebeu certificado DOP, tal como o queijo San Simón da Costa (uma das variedades mais antigas da região), o Arzúa-Ulloa e o Cebreiro.

A nossa peregrinação também nos leva à catedral, onde um casal americano e o filho adolescente acabaram de chegar. O miúdo filma e narra o acontecimento: “E aqui estamos, finalmente, em frente à catedral...” Estão precisamente junto à marca de concha no chão que assinala a confluência das seis rotas que culminam em Santiago (há uma sétima, a de Finisterra, só de partida, e não de chegada). Fizeram mais de 300 quilómetros a pé desde Astorga (na província de Leão) e a mãe está visivelmente emocionada, agora querem encontrar o hotel.

Uma das explicações para a concha é que servia de prova de que se tinha chegado a Santiago de Compostela, uma vez que só aqui havia vieiras, trazidas da Finisterra (Fisterra em galego).

As vieiras proliferam pelos menus, quase tanto como a tarte de amêndoa. Nas traseiras da catedral, na Plaza da Quintana de Vivos (também há a de Mortos, ao lado do cemitério) está o convento de San Paio de Antealtares. Foi construído no século XI para monges beneditinos, mas no século XV passou a albergar freiras. Chegaram a ser 500, agora são 29.

Dizem que aqui há as melhores tartes, feitas por mãos beatas na devoção a Deus e à receita: só leva amêndoa e nada de trigo, como as que se vendem nos outros locais. É por isso que é também mais cara do que nos outros sítios. “Fomos os primeiros a fazer”, orgulha-se, do lado de lá do postigo, uma freira que não quis dar o nome, mas que diz que vive aqui há 30 anos em clausura. “Podemos falar com as pessoas mas só saímos por necessidade, para ir ao médico ou algo assim.” Garante que esta tarte “está documentada desde o século XV, quando chegaram as primeiras irmãs”. “As amêndoas vêm da Andaluzia.” A conversa é terminada pela chegada de três caixas de limões, que são depositadas à porta e libertam um cheiro intenso.

Se quisermos continuar o rumo dos doces, segue-se pela Rua do Vilar, que sai da Praza de Praterias. À esquerda, o café Airas Nunes (trovador medieval galaico-português) recebe os clientes com fados de António Zambujo e um menu de pequeno-almoço chamado Rei D. Dinis — café, sumo de laranja natural, croissant, bolo caseiro. Mas basta pedir um café e virá um pedaço deste bolo (na Galiza chamado de biscoito) como oferta da casa. Noutros locais, como no Bar Latita, na Rua Nova, oferecem-se pratinhos de uma deliciosa tortilla. Só temos de dizer “graciñas”, o “obrigadinho” galego.

A tarte que faz concorrência à das freiras está mais adiante, à direita, na Mora, Mercedes Mora. Entre chocolates e bombons, as pilhas de caixas de tarte galgam o balcão, com a cruz de Santiago desenhada em açúcar em pó.

Também são típicas as filloas, que sobretudo durante o Carnaval andam por todo o lado, nas pastelarias e em casa. Na verdade, são parentes muitos próximos dos crepes franceses. Vamos comê-las à sobremesa do almoço, mas já não em Santiago de Compostela.

As amêijoas e os berbigões

Antes, damos um salto até Vilagarcia de Arousa, uma localidade encostada à ria. Começamos por uma visita ao mercado e detemo-nos no pão, sobretudo nos moletes — grandes e redondos. Os galegos orgulham-se de ter o melhor pão de Espanha e a broa de milho branco da Iolanda Fabello poderá deitar por terra muito preconceito português.

Calhou-lhe no destino dedicar-se ao negócio da família do marido, e aos 48 anos é essa a sua vida e está contente com isso. A bisavó dele fazia pão, a avó também, a mãe igualmente, agora é Iolanda. Tudo feito à mão, com milho branco “do país” (ou seja, galego) que eles próprios moem, tal como fazem aos trigos que usam nos outros pães. Às segundas e sextas-feiras fazem a massa, às terças e sábados vendem no mercado. Os dois filhos não têm a mesma vocação, por isso ninguém sabe o que vai acontecer à tradição familiar. Mas sem pessimismos, porque o futuro a Deus pertence. “Eu também não sabia que ia acabar por me dedicar a isto”, afirma Iolanda Fabello. Há, em todo o caso, um problema a avizinhar-se: a escova de palha que usam para limpar o forno é feita por um único homem, que se vai reformar. “Ainda não conseguimos encontrar outros que a façam.”

Já fora do mercado provamos a broa de milho branco de Iolanda. Fazemos inversão de marcha, voltamos a entrar no mercado e compramos-lhe um naco maior.

Quem vai a Vilagarcia já agora vai a Carril, sobretudo se tiver tempo para ficar sentado à mesa do Loliña. É um restaurante dos anos 1930 que bem poderia ser do Norte de Portugal, com paredes em pedra, travessas de loiça e quadros pendurados, toalhas de pano branco nas mesas. Asseguram-nos que Julio Iglesias é fã, tal como muitas outras celebridades.

Começamos com as tradicionais amêijoas à marinheiro (com paprika, cebola, azeite) e molete para o molho. Segue-se a empanada de mexilhões, que quando entrámos estava em cima do balcão num enorme tabuleiro, a ser cuidadosamente cortada em rectângulos; as vieiras servidas na concha, gratinadas com pão ralado; o arroz de tamboril (ou peixe sapo) bem malandro, e a tal filloa de chocolate e arroz doce para fechar. Mais Galiza do que isto é difícil.

Ou não.

Não há nada que Jesús Manuel Lourenzo, de 36 anos, mais aprecie que o seu Caviar de Erizo, as ovas de ouriço-do-mar que a conserveira Los Peperetes vende em pequenas embalagens cor-de-laranja. Tiram-se as ovas com uma colher de café e vão directamente para a lata, com um pouco de caldo com água, sal, limão e cebola. Já agora um dado: por cada 100 quilos de ouriço, 95 vão para o lixo, daí ter um preço tão elevado.

Mas a estrela da marca são os Berberechos ao Natural — os berbigões.

Esta é uma empresa familiar que dá trabalho a todos: ao pai, também Jesús Manuel, que há 25 anos fundou a conserveira; à mãe, Maria Antonia, que aplica aqui as suas receitas; e aos irmãos de Jesús, Santiago e Belén. Segundo a tradição galega, são as mulheres quem trabalha nas conserveiras e aqui não é excepção entre as duas dezenas de trabalhadores da empresa. “Talvez por serem mais delicadas e pacientes, não sei”, adivinha Jesús. “Todos os produtos passam pelas suas mãos. Retiram as cabeças de sardinha uma a uma.”

Estamos em frente à ria e as estacas que vemos a sair da água marcam a delimitação dos “terrenos” dos apanhadores de amêijoas, mexilhões, lingueirão... A população de Carril, de pouco mais de três mil habitantes, sempre viveu do mar. “Aqui só havia grandes conserveiras, a fabricar milhares por dia, mas nada mais pequeno a fazer especialidades”, afirma Jesús Lorenzo. Os bisavós já eram conserveiros e “a esse historial” juntou-se a mão da mãe para a cozinha. Por isso, não há só as ovas de ouriço, o berbigão ou os percebes enlatados (dizem que são os únicos em Espanha que os fazem); há choquinhos com tinta, azeite, cebola e tomate, entre outras receitas que vêm da família.

“Começámos com uma produção de poucas centenas de latas diárias, agora há alturas em que chegamos a fazer quatro mil”, conta Jesús Lorenzo. Nas grandes fábricas serão 300 mil a sair todos os dias, aponta. Mas eles querem manter a qualidade acima de tudo e essa não se consegue com números assim. “As produções são limitadas pelo que o mar nos dá e nós conseguimos fazer. Não vamos buscar produto fora, não estamos em guerra de preços, estamos em guerra de qualidade.”

É ainda tudo artesanal, com máquinas para fechar as latas dos anos 1960 e 70, e que “são eternas!”. Uma outra, maior, é como uma panela de pressão gigante e serve para eliminar micro-organismos. “Se não fizermos isso, a lata pode começar a inchar pela fermentação. Os nossos produtos continuam bons ao fim de cinco anos. As sardinhas ganham qualidade com o tempo, é como o vinho!”

Fizeram uma pareceria com o chef José Andrés — a quem se atribui ter levado a moda das tapas para os Estados Unidos — e há até toda uma linha de produtos com o seu nome. Consta que os apresentou na Casa Branca ao Presidente Barack Obama.

Já estão a vender nos EUA mas não foi fácil: “Ainda associam as conservas a comida para militares ou para animais de estimação.”

Os ouriços

Ouriços também são uma iguaria para Ramón Farto. Mas não nas latas dos Peperetes. Toda a sua vida, que leva 53 anos, foi passada numa banca de peixe no mercado da Plaza de Lugo, na Corunha — onde a mãe e a avó já trabalhavam — e aqui os vende, a 7 euros o quilo. De vez em quando abre-os e come-os crus, sem nada. “Há pessoas que gostam, outros nem lhes tocam”, diz. “Só há quando os pescadores apanham a maré baixa e bom tempo.”

Aponta para a banca, que ocupa o espaço de duas: “Isto é tudo meu e estou solteiro! Se os meus filhos, que estão nas Canárias e em Madrid, não pegarem nisto, deixo ao Oscar [o seu ajudante] que é solteiro também. Sabemos dançar, cozinhar, tratamos da roupa, conversamos.”

Quem preferir a carne terá de ir ao piso de cima. No talho Carneceria Fina encontramos uma cabeça de porco, que parece sorrir, com as orelhas ainda para cima. “É para o cozido”, explica Manuel Vasquez, que trabalha aqui com a mulher. “Os produtos do cozido vendem-se muito no Inverno, e de Verão é mais carne para churrasco.” Também há pernil fumado — o lácon — que, com grelos, é outros dos pratos típicos dos meses mais frios. “Levamos o pernil a uma padaria que tem um forno grande e assamos lá.”

O lacón também se pode comer dentro de um pão, como bocadillo (que é como quem diz, sanduíche), na Jamoneria La Marina, na Avenida da Marina. Há presuntos pendurados no tecto, como nas charcutarias madrilenas, e filloas na vitrine. Optamos por um bocadillo de chicharrones: a carne que está junto aos intestinos do porco e que vem muito miudinha para o pão. Serve-se quente, com tomate (e custa 5 euros). É chegar, comer e partir com um sorriso na cara para o almoço que teremos a seguir e que encerrará este périplo.

O Árbore da Veira fica numa das principais ruas do centro histórico da Corunha, a San Andrés. Enquanto o chef Luis Veira se ocupa da cozinha, Xan Domínguez, director de marketing do restaurante (com uma estrela Michelin) começa a contar-nos como cresceu esta Árvore. Mas antes lança uma pergunta que dará azo a um longo tema: “Quer que fale em galego ou castelhano?”. Galego, por favor. E aqui vem: “É que nós temos diglossia, uma utilização desequilibrada dos dois idiomas.”

Recuamos ao tempo da ditadura de Francisco Franco, entre 1939 e 1975. “O galego era mais habitual nos meios rurais e pequenos, e mal visto nas zonas urbanas. Nas cidades, a administração pública tinha que falar castelhano e o galego foi banido das escolas [e dos media].” O galego passou a ser a língua dos pobres, dos camponeses e daqueles que não tinham instrução. “Em casa, os pais começaram a falar castelhano com os filhos para eles se habituarem, mas não falavam assim tão bem. Com isto, houve três gerações urbanas na Galiza que passaram a sofrer de diglossia. O Luis [Veira] tem 37 anos, é do bairro de El Viña, e os pais já não falavam galego em casa. Eu, que sou de Cedeira, a 120 quilómetros da Corunha, falava.”

Não foi lá, no entanto, que passou a infância, e aqui a sua história também é idêntica à de milhares de galegos: “Na década de 1970 houve uma grande diáspora. Na Galiza passava-se muita fome. As pessoas emigravam para a Alemanha, Suíça, França e Reino Unido. Os meus pais foram para a Suíça quando eu tinha quatro meses. Voltámos quando fiz sete anos, antes de entrar para a escola. A minha mãe achou que se não fosse nessa altura teria de esperar que eu acabasse o liceu.” Fez o ensino em castelhano. “Quando chegou a democracia, o galego foi usado por elementos de esquerda, com um sentimento de pertença, não necessariamente nacionalista.” Agora já é língua oficial.

Também podemos falar num movimento para a autodeterminação quando falamos da cozinha de Luis Veira. Mas uma autodeterminação diferente. O chef, que entretanto deixou as panelas, começa por dizer que não se pode falar da sua cozinha, ponto. Depois afirma: “É uma cozinha de viagem, que não esquece que estamos rodeados por mar. Estamos na adolescência. Queremos ser mais atrevidos, sem ter os nossos pais por perto.” Que pais são esses? Juan Roca, Pepe Rodriguez Rey (que agora participa no programa de televisão Master Chef Espanha) e José Antonio Campoviejo, nenhum deles galego.

Não admira que Luis Veira tenha falado em “pais” para se referir aos seus mentores, porque não se fala de gastronomia galega sem falar da família. “É muito a tradição de avós, para pais, para filhos. E não é como a cultura basca, de socialização da comida (virada para amigos e para status). Aqui a comida é uma celebração familiar, com pessoas que nos são muito próximas. Estamos na esquina do mundo; [a gastronomia] é sobre as nossas raízes e aquilo que nos ensinaram os nossos bisavós.”

A tradição é um pilar e é usada como “a memória do gosto, o retrogosto”. A de Luis são os gelados da infância, a manteiga que a avó fazia, os pimentos e as coisas queimadas que ela preparava no forno da casa de campo, a apenas 10 minutos daqui, onde tinha uma hortinha.

Xan Domínguez acrescenta: “Em quatro anos [de vida da Árbore] conseguimos liberdade. É a bomba! O Luis faz o que quer, tanto lhe dá se as pessoas acham que se encaixa ou não.” Palavras possíveis para descrever o que se passa à mesa: “Criatividade, tradição, diversão, sabor, mistura do mar e da montanha, que é diferente do mar e montanha da Catalunha. É uma ostra que são 100 ostras na boca porque é uma explosão de sabor.”

Ao longo do almoço, a carne só aparece na forma de uma cereja. Isto é, uma bola de foie-gras coberta por uma fina camada de doce de cereja, que vem pousada no prato como se tivesse acabado de cair da árvore. De resto, há muito marisco (ostras, vieiras, lingueirão) e peixe, confeccionados com o mínimo de temperatura possível para que guardem todo o seu sabor natural. Há ovo cru, sardinha em cura com sal que cozinha apenas oito minutos, pescada cozida e 63 graus . “A técnica sempre ao serviço do sabor.”

Os pratos são microcosmos, pequenos jogos”(o menu de 10 pratos custa 55 euros, o o de 15 custa 70). O chef volta a falar da sua “adolescência” para descrever a irreverência que não quer perder: “Estou a sair de casa dos pais. Poderia dizer que estou numa crise hormonal. Quero que as pessoas que se sentam à mesa tenham um orgasmo gastronómico.” Quero o que aquela senhora está a comer, se faz favor.

A Fugas viajou a convite do Turismo de Espanha

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