Maria do Rosário uniu o destino à panificação no dia em que pediu Porfírio em namoro, já lá vão mais de 50 anos. Filho e neto de moleiros, Porfírio levou a juventude a tentar contrariar a profissão que lhe corria no sangue — era ofício demasiado duro para tão pouco sustento. Andou no Ultramar, foi serralheiro numa oficina de mecânica em Pero Pinheiro. Mas quando se casou com Maria, tinha ela 25 anos, cedeu ao negócio da família.
O ordenado era pouco mas certo para uma vida inteira e dava trabalho para dois. Ele especializou-se nas artes da moagem, ela tornou-se padeira. Juntos laboravam todo o ciclo do pão em Santo Estevão das Galés, da plantação do trigo à venda das fornadas feitas todas as quartas e sábados, quase sempre esgotadas no próprio dia. “Tenho para mim que era o melhor pão de Mafra”, defende Mário Pereira, director do Palácio Nacional de Mafra. Hoje em dia, apenas sai pão do forno de lenha aos sábados, na quantidade certa para “congelar para o resto da semana” e distribuir “uma sacadinha” pelo filho e pelos irmãos, mais algum que vende a quem ainda passa à procura, conta Maria do Rosário, de 73 anos, a viuvez tingida na roupa, nos collants grossos, nos Crocs com rebordo de pêlo.
Mário conheceu o casal há muitos anos, através de um vizinho, natural da região. Um dia desafiou-o “a ir ao pão” e levou-o à pequena panificadora tudo-em-um de Santo Estevão das Galés. “O pão era formidável”, recorda. Desde então, é paragem obrigatória quando passa por esta zona do concelho de Mafra, com maior regularidade desde 2008, quando se tornou director do palácio. Ora para comprar pão e sacas de biscoitos “quebra dentes”, ora para trazer mais um futuro cliente. O pão já não sabe ao mesmo sem as farinhas do moleiro, diz quem provou de um e de outro. Mas a visita vale a pena pela(s) história(s) que encerra. “Se soubermos respeitar e salvaguardar estas memórias, melhor nos compreendemos e melhor nos preparamos para o futuro”, defende Mário.
E, por isso, aqui estamos, frente a uma fileira de casas engalanadas por roupa estendida de porta a porta, no Largo de Santo Estevão, a meio de uma visita guiada por Mário Pereira ao concelho. O pão de Mafra é o mais conhecido dos pães saloios. Tornou-se selo inevitável nas estantes dos supermercados e imagem de marca da região. Mas de saloio a maioria já terá pouco, sujeita à pressão dos números que acarreta uma procura — e produção — a nível nacional. Em Santo Estevão das Galés, não só se trabalhava cada etapa do ciclo de produção — do semear o trigo ao vender o pão —, como tudo era feito à moda antiga. Ou quase. O moinho de vento ainda se ergue alvo sobre o monte — “o meu filho vai lá caiar todos os Verões, é uma recordação do bisavô” — mas cedo a produção começou a fazer-se dentro de casa. Dizia Porfírio: “Para ganhar pouco, faço por mim tudo.” E lá criava mais um acrescento ao edifício, mais uma sala com maquinaria artesanal.
Ainda lá está tudo. As mós de pedra movidas a motor, as máquinas que “dançavam” e “lavavam” cada tipo de trigo para lhes tirar as sujidades, o peneiro, a balança, os tubos que caem do tecto e as sacas no chão, eternamente à espera das sementes, das farinhas, dos farelos. Tudo suspenso no tempo por um véu de pó. “Para mim era tudo trigo mas ele sabia identificar cada qualidade”, recorda Maria. Do “aviador” e da “sem fim”, como lhes chamava Porfírio, saía cada bago limpinho e “com a lágrima de água que ele queria”. Cada tipo de trigo pedia-lhe tratamentos e tempos diferentes e ele sabia escutá-los. “O meu moleiro tinha o laboratório nos dedos.” O controlo de qualidade fazia-se de sentidos apurados pela experiência empírica. Quando começaram a exigi-lo, lá enviava as farinhas “para um laboratório em Lisboa uma vez por ano”. “Vinha sempre tudo certinho, nunca encontraram um problema”, diz Maria do Rosário. Mais do que aquele certificado de qualidade, orgulhava-a a confirmação de que a ciência das mãos do marido equiparava-se à dos aparelhos dos tempos modernos. Era uma produção em pequena escala, mas nas alturas de maior labor “até a balança parecia de prata”.
Maria do Rosário gosta de falar. Fala pelos cotovelos. Em minutos, desfia o novelo do passado com a avidez de quem quebra a solidão com a chegada de visitas. Recorda o marido, a vida difícil no campo, o tempo em que “o povo saloio se alimentava a pão e batatas”. “O mundo velho está a acabar de terminar”, lamuria-se. Leva-nos por cada recanto da fábrica e depois até à igreja, mesmo em frente. É a única moradora na localidade que tem as chaves. Em pano de fundo, ouvem-se os miúdos no recreio da nova escola primária da freguesia, inaugurada em 2008 — e quanta vida trazem aqueles gritos e gargalhadas a uma localidade quase deserta. A igreja de Santo Estevão é a única que, apesar de estar localizada no concelho de Mafra, pertence à vigararia de Loures. Os padres não querem que Maria mostre a igreja fora de horas — há que ir à missa, quartas e domingos —, mas hoje abre uma excepção para vermos uma rara imagem da Santíssima Trindade, feita em pedra. “Foram proibidas pelo Concílio de Trento [no século XVI] e a maioria acabou destruída”, conta Mário Pereira. Esta terá sido escondida, enterrada nos campos. “Já vivia cá quando foi descoberta”, recorda Maria.
Aldeia saloia renascida
Se a casa de moagem e panificação de Santo Estevão das Galés figura quase como espaço museológico de um “mundo velho” prestes a findar, a Aldeia da Mata Pequena é uma localidade resgatada ao passado. Foi ali perto que começámos este périplo pelo concelho. Num ano em que se assinalam não só 300 anos desde a colocação da primeira pedra do Palácio Nacional de Mafra, como o fim da última comissão de serviço de Mário Pereira enquanto director do monumento, desafiámo-lo a guiar-nos por alguns dos seus locais preferidos em Mafra. O resultado é um retrato do concelho tão ecléctico quanto completo e inesperado, atrevemo-nos a dizer. Tem campo e mar, pão e vinho. Tem pessoas, monumentos e natureza. Tem geologia, história e tradições. Tem igrejas, quintas e fortes. E palácio, claro.
O Penedo do Lexim, vestígio de uma antiga chaminé vulcânica, foi o ponto de partida. O rochedo cinzento irrompe crispado entre o arvoredo, impondo-se sobre um vasto vale predominantemente agrícola, junto à ribeira de Cheleiros. Na última erupção, há milhões de anos, o magma terá arrefecido lentamente, formando as características colunas prismáticas de basalto. O fenómeno “é semelhante à Calçada dos Gigantes, na Irlanda do Norte”, compara Mário Pereira. Mas enquanto lá é possível saltitar sobre os prismas rochosos, aqui erguem-se aos céus para formar uma espécie de muralha natural. Um estratégico castelo de penedos que terá sido ocupado por pastores e agricultores “desde o século IV a. C. [período do Neolítico] até à Idade do Bronze”. Foram encontrados fragmentos de cerâmica, copos, pratos, vasos, queijeiras e utensílios em cobre. Além de ser parte importante do “património geológico” de Mafra, o Penedo do Lexim constitui um dos sítios arqueológicos mais relevantes do concelho e do período Calcolítico a nível peninsular.
Está classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1982 e foi esse o mote que levou Mário pela primeira vez ao Penedo do Lexim, há mais de 20 anos. Na altura, trabalhava como técnico no Instituto Português do Património Cultural (IPPC; substituído pelo IPPAR em 1992 e integrado no IGESPAR em 2006) e fazia parte da equipa que andava a percorrer o país para inventariar todo o património arquitectónico e arqueológico classificado em Portugal Continental.
A vista lá de cima é lindíssima, conta, mas as últimas chuvas deixaram o piso escorregadio e não nos atrevemos a subir ao cume do rochedo, não vá um acidente ditar o fim do passeio ainda na linha de partida. Descemos antes até à clareira deixada pela pedreira que ali funcionou até aos anos 1970, entre abrunheiros, oliveiras, arbustos de funcho e de trovisco. Aqui perto, vários trilhos pedestres abeiram-se de pequenas cascatas — as mais impressionantes, dizem-nos, ficam no rio Mourão, já em Anços — mas desta vez não temos tempo para fazer a caminhada. Diogo Batalha já nos espera na Aldeia da Mata Pequena, a meros cinco minutos de carro. Uma localidade composta por 20 casas de tipologia tipicamente saloia, a maioria reabilitada para turismo, onde hoje se pode encontrar uma “ruralidade memorizada”, descreve Mário Pereira.
Apesar de Diogo Batalha ter nascido e crescido em Lisboa, a família materna era de Mafra e, desde cedo, quis vir viver nesta zona. Queria morar numa verdadeira aldeia saloia, que ainda mantivesse a traça antiga, os velhos costumes e alguma genuinidade. “Custava-me muito assistir ao desaparecimento deste legado arquitectónico. Os pequenos núcleos urbanos tradicionais desta região começaram a desaparecer”, conta. Fez uma pesquisa com base em cartas militares do século XIX para descobrir as localidades que mantinham o traçado habitacional antigo mais ou menos intacto e encontrou a Aldeia da Mata Pequena. Estávamos em 1998, quando Diogo Batalha e Ana Partidário renovaram o primeiro edifício. Habitaram-no durante dez anos, até a família crescer e mudarem-se para uma casa maior na aldeia, “a 50 metros de distância”. O primeiro edifício foi recuperado para habitação própria, mas o “sonho do projecto turístico” já andava “oculto” no inconsciente do casal. Em 2002 compraram as primeiras seis ruínas; em 2006 chegaram os primeiros hóspedes.
“Tivemos o privilégio de ainda apanhar sete habitantes na casa dos 70 anos, que conheciam cada pedrinha e lembravam-se de ver todas as casas habitadas”, recorda Diogo. A dona Silvestre “era a alma da aldeia”. Levava os turistas pelo braço e encetava com eles longas conversas, apesar de não falar nenhuma língua estrangeira. Já o tio Eduardo tinha os pormenores “gravados na memória como fotografias” e foi ajuda fundamental para repor tudo o mais idêntico possível àquilo que fora em tempos. Aqui não é o passado que se acomoda às vicissitudes do novo destino como unidades de alojamento rural. São as camas que sobem em mezanino sobre a cozinha para não destruir o lagar, a sala que se encolhe para preservar o forno de lenha ou as cozinhas que mantêm as chaminés de trave em pedra, as salgadeiras e os potes de azeite, os móveis rústicos ou as arcas construídas em sucupira, madeira rica do Brasil, muito provavelmente aproveitando restos dos materiais utilizados no palácio de Mafra. Os lagares, o palheiro, o armazém do feno e o forno são hoje cinco das 13 suítes disponíveis, mas no velho curral ainda vive um porco grande e rosado, há coelheiras, um burro, cabras, patos, perus, gatos selvagens. E quatro casas habitadas permanentemente por 11 residentes, incluindo Diogo, Ana e os dois filhos do casal. Mais a Tasquinha do Gil, à entrada da aldeia, por agora aberta apenas sextas e sábados.
Diogo Batalha é neto de José Franco (1920-2009), conhecido ceramista e oleiro do concelho. Se o avô teve como obra mais marcante a construção de um museu onde recriou em miniatura a aldeia típica do Sobreiro, onde nasceu, o neto procura agora recuperar ao passado o edificado da Mata Pequena e dar-lhe uma nova vida. “É um pequeno contributo para manter esse legado [arquitectónico]”, conta Diogo, que não esconde a influência do avô no “grande gosto pela tradição e pela arquitectura da região saloia”. Desta vez, o percurso por Mafra não nos leva à Aldeia-Museu de José Franco, mas é paragem turística quase inevitável no concelho, sobretudo para quem passeia com crianças.
Foi em Mafra que D. José I fundou, em 1753, a primeira grande escola de escultura em Portugal e, desde então, a olaria manteve uma grande tradição no concelho. Hoje, contudo, são poucos aqueles que continuam a profissão. José Luís Pires é o único oleiro com atelier e loja no centro da vila. Há três anos abriu a Oficina do Barro mesmo ao lado do mercado municipal. Aos 46 anos, leva 30 de barro. Ainda era miúdo quando começou como aprendiz de oleiro na zona do Sobreiro, inspirado pela cerâmica figurativa do “mestre” Franco. Nos intervalo do trabalho — onde produzia sobretudo peças utilitárias, como pratos e vasilhas — subia à mesa de oleiro e treinava os dedos para fazer nascer delicadas figuras. Hoje faz sobretudo esculturas “satíricas e religiosas” com barro vindo da região. Figuras de Santo André, patrono da cidade, de Nossa Senhora do Ó, de Baco ou representações da fuga para o Egipto, ora de burro, ora de elefante, vão compondo as prateleiras da loja.
Quintas e agricultura
James Frost deixa a DT enlameada no pátio e vem receber-nos junto ao portão da Quinta de Sant’Ana, no Gradil. Passou a manhã a separar os borregos que vislumbramos lá ao fundo, entre as vinhas e o eucaliptal que sobe a encosta até ao muro da Tapada Nacional de Mafra. “Quero ver se vendo alguns”, conta o inglês, de 51 anos, tirando a boina. A principal actividade da quinta é a vinha, mas por agora as videiras ainda surgem despidas sobre o vale.
Em 1969, os sogros de James compraram esta quinta do século XVII para se refugiarem das tensões vividas na Alemanha dividida no pós-Segunda Guerra Mundial. Eram tempos da Guerra Fria, do muro de Berlim. Viveram aqui cinco anos, até a revolução vir agitar Portugal, com o 25 de Abril. Regressaram a Vestefália e a Quinta de Sant’Ana ficou em estado de semi-abandono. De vez em quando vinham passar férias, tentaram vendê-la. Entretanto, James serve como oficial do exército inglês na Alemanha e conhece Ann von Fürstenberg. Casam-se. Vêm de férias à quinta em 1992. E pouco depois mudam-se de armas e bagagens para Portugal. “Somos grandes românticos, gostamos desta vida e de restaurar. Era um óptimo sítio para criar os filhos”, conta. Têm sete, todos rapazes.
A plantação de novas vinhas foi o primeiro passo na renovação da quinta. Em 1999, os primeiros 2,4 hectares. Depois mais sete. Em 2004, António Maçanita tornou-se enólogo consultor na quinta e mantém-se à frente da produção — cerca de 50 mil garrafas por ano, entre tintos, brancos e um rosé. Na adega, entretanto renovada, ainda sobrevive uma linha de impressionantes tonéis de cinco mil litros. “É só para inglês ver”, ri-se James. “Já não os usamos. A qualidade da madeira não é boa e são muito grandes para as quantidades que hoje produzimos.” Mas a apanha dos cachos ainda é feita manualmente e alguns tintos são pisados no lagar. Além do vinho, a aposta é forte no turismo. Alojamento rural, provas vínicas e gastronómicas, workshops de pintura em azulejo ou produção de pão em forno de lenha, eventos corporativos e casamentos são apenas algumas das actividades disponibilizadas.
Depois de uns anos 1990 “um pouco preocupantes” devido ao crescimento exacerbado da construção no concelho de Mafra, James Frost sente uma “mudança de atitude”. As pessoas estão a voltar “a dar valor às coisas antigas” e a “reconhecer a importância da parte agrícola do concelho”. Os limões, o vinho, a horta. “É o que caracteriza Mafra e é importante manter a tradição dos povos e das aldeias”, defende. Para Mário Pereira, é esta “dimensão do que é fruído, vivido, este sentimento de pertença que dá sentido ao próprio conceito de património”. É que é de património que falamos sempre ao longo desta viagem. Ambiental, histórico, cultural.
Na Picanceira, negligenciamos a Quinta dos Machados propriamente dita para concentramos atenções no Bairro dos Ilhéus, “uma das primeiras construções operárias erguidas em Portugal”. No caminho, visitamos brevemente a Tapada Nacional de Mafra, onde voltaríamos dias depois para dormir entre os sons da natureza (ver texto nestas páginas). Agora estamos um pouco mais a norte, à entrada da pequena localidade da Picanceira. Sobranceira a uma curva da EN9, ergue-se uma inesperada parede de casas. Apenas a silhueta arredondada do forno de lenha e a chaminé permitem adivinhar os limites entre cada uma das 23 exíguas habitações unifamiliares.
O bairro operário foi construído no final do século XIX pelo proprietário da quinta, o industrial açoriano Domingos Dias Machado, para albergar o contingente populacional que fez chegar dos Açores para empregar na propriedade agrícola, à época uma das mais importantes no concelho. Daí a alcunha “ilhéus”, que saltou da gíria para a toponímia da rua traseira. O casario mistura influências da arquitectura popular da região e do arquipélago, formando um “conjunto arquitectónico singular”.
Mar e mar, lutar e rezar
Ao segundo dia, o passeio faz-se mais curto, leve e solitário. Com cheiro a história e a mar. Para Mário Pereira, o concelho de Mafra é feito de contrastes. Entre o construído pelo homem e o criado pela natureza. Entre o campo e o mar. É em direcção ao Atlântico que partimos. Primeira paragem: Forte do Zambujal.
Numa dobra apertada da estrada que liga Mafra à Carvoeira surge um pedaço de terra batida, pronta a receber os carros de quem visita o 95.º posto defensivo das Linhas de Torres. No cume do monte, eleva-se a construção militar mais complexa de toda a segunda linha de defesa, o Forte do Zambujal, recuperado em 2009. Sobressaem as pequenas muralhas de pedra, os morros de terra para proteger os soldados do fogo inimigo, a praça de armas e, para lá do túnel escavado na rocha, a bateria avançada munida de duas bocas de fogo. Era uma das 45 fortificações das Linhas de Torres localizadas em Mafra (153 no total), guarnecida por 250 homens. A vista panorâmica alcança as várias aldeias localizadas nos montes em redor, o vale fértil de talhões agrícolas ao longo do rio Lizandro e segue até ao mar, despontando atrás do desfiladeiro de Fonte Boa da Bricosa.
Aos nossos pés, vemos a Igreja da Senhora do Ó, entre obras de recuperação das fachadas. Visitamos brevemente o interior e seguimos caminho em direcção à capela de São Julião. Mais tarde, ficaremos a saber que o alpendre e o muro da igreja terão servido de trincheira aos portugueses comandados por Mateus Álvares, quando em 1585 este se fez passar por D. Sebastião, resistindo à ocupação filipina. É curiosa a coincidência do percurso, que nos leva agora a São Julião, onde viveu como eremita o auto-proclamado rei da Ericeira.
A pequena capela ergue-se ao fundo de um largo de antigas casas de romeiros, de fachadas brancas bordadas a azul. Ao longo da história, foram muitos os círios que rumaram a São Julião em peregrinação e, ainda hoje, todos os anos, termina aqui em Setembro o Círio de Ribeira de Pedrulhos (Torres Vedras), a que o povo chama círio da água-pé. O portão do alpendre de acesso à capela está fechado e não se vê vivalma nas imediações. No interior da igreja, conta Mário, as paredes revestem-se a painéis de azulejos que narram a vida de São Julião e Santa Basilissa, o casal casto martirizado no início do século IV.
É um lugar com “uma rusticidade importante”, defende Mário, marcante pela proximidade ao mar e pela localização inóspita. Junto à arriba, ergue-se um cruzeiro datado de 1784, onde começa um caminho das almas até ao cemitério da igreja da Senhora do Ó. Lá em baixo, “uma fenda geológica interessantíssima” parece cortar a escarpa para deixar-nos sob os pés uma língua de mar revolto. Ondas e vento é tudo quanto se ouve. Descemos até à praia de São Julião, mais “selvagem”, e partimos até à praia da Foz do Lizandro, onde o rio encontra o oceano. Para Mário, as infra-estruturas veraneantes aqui recentemente edificadas são um bom exemplo de construção moderna em espaço natural. Respondem às novas necessidades sem chocar com a paisagem envolvente. Paramos para um café de olhos soalheiros sobre ondas e surfistas e continuamos até à última paragem do dia: a igreja de São Sebastião, na Ericeira.
A visita é rápida. Veio à conversa a história de São Sebastião — e não podia faltar Ericeira ao percurso. Ora São Sebastião foi um soldado romano que, por se ter convertido ao cristianismo, foi condenado à execução por meio de flechas. Numa associação simbólica, o povo passou a invocá-lo contra a peste, tida como flechas de Deus, punição pelos pecados da humanidade. Depois da pandemia de peste bubónica que assolou a Europa no século XIV, dizimando milhares de pessoas, foram erguidas igrejas em honra a São Sebastião à entrada de várias localidades portuguesas como forma de protecção contra a epidemia. Através delas pode-se hoje descortinar aquilo que “era o limite urbano do século XV” em cada localidade onde se encontram.
A Ericeira, portanto, começava aqui, com a sua malha apertada de casario a descer nas costas da capela de corpo hexagonal e cúpula em gomos cinzentos, suficientemente apartada da vila piscatória, não fosse a peste galgar a ermida antes de o santo mártir a dominar. “Somos consumidores de símbolos”, há-de concluir Mário Pereira. Actualmente a Ericeira é sinónimo de surf e de Verão, alargando-se em vivendas de férias muito para lá da capela de interior revestido a azulejos coloridos.
Um palácio para admirar
Podíamos dizer que foi debaixo de terra que toda esta viagem começou e não estaríamos a mentir por completo. É que foi na estreia das visitas nocturnas aos subterrâneos do Palácio de Mafra — abertas pela primeira vez ao público este ano, no âmbito das celebrações do 300.º aniversário do monumento — que iniciámos aquilo que viria a ser um périplo pelo concelho.
As visitas são organizadas pelos militares da Escola de Armas, localizada na área conventual do edifício, uma vez por mês. E a curiosidade é tanta, alimentada pelo mito das ratazanas albinas gigantes e pelo sucesso das galerias romanas de Lisboa, que as inscrições esgotaram para o ano inteiro ainda antes de a primeira ter lugar, no final de Janeiro. Na estreia, coube ao tenente-coronel José Freixo balançar as expectativas da primeira vintena de visitantes. “É uma área de esgoto, digamos assim, por isso o cheiro pode ser um pouco sui generis”, adverte, para a seguir alimentar a crença popular. “Pode acontecer visualizarem um ou outro rato, mas são dóceis e estão habituados à presença humana”, brinca, provocando risos nervosos entre o grupo.
A segurança não foi descurada e ocupa grande parte da visita. “Há riscos, que tentámos minimizar”, avisa o tenente-coronel, justificando o uso de capacete e arnês e a ambulância à entrada do alçapão escolhido para a descida, feita por escadote. O cheiro forte causa apenas “impacto à entrada”, conta Inês, de 12 anos, mas é sobretudo odor a “águas paradas”, descreve a mãe, Fátima Bento. O caminho faz-se depois por um túnel estreito, iluminado a holofotes colocados para o evento, com cerca de 1,5 metros de largura e um passeio de alvenaria enlameado, por onde andamos ao longo de 40 metros, aproximadamente. Por vezes, o piso encolhe e há que percorrê-lo de costas para a parede. Mergulhados no pequeno caudal dos esgotos (alimentado em mais de 90% por águas pluviais), avistamos talheres e cacos de loiça de barro, revelando estarmos perto das cozinhas. Mas ratos só na imaginação de Joel, de oito anos, que jura ter visto um roedor surgir num buraco da parede.
“O espaço não é muito apelativo”, admitirá o sargente-chefe Paulo Inácio já no final da visita. Mas ninguém parece importar-se. “Esta era uma zona que ainda não conhecia no palácio e gostei. Foi uma experiência única que deu para compreender melhor a dimensão de toda a obra”, comenta à saída Gonçalo Araújo Neves. No total, a rede de esgotos e galerias subterrâneas do monumento conta com cerca de dois quilómetros de extensão, interligando as zonas das cozinhas, do refeitório, das cloacas (antigas casas de banho) e da enfermaria. Projectada há 300 anos, aquando da construção do palácio, é uma obra de engenharia que já incluía soluções ainda hoje utilizadas nas estações de tratamento das águas residuais, contava-nos à chegada Mário Pereira, que acompanhou a visita.
Foi no Palácio Nacional de Mafra que tudo começou. E foi lá que iniciámos e terminámos cada viagem com Mário Pereira. É impossível fugir à silhueta do monumental edifício que se ergue magnânimo sobre a vila, considerado um dos mais importantes testemunhos do período barroco em Portugal. O edifício, composto por palácio, basílica e convento, foi mandado construir por D. João V, aproveitando a riqueza do ouro vindo do Brasil. A primeira pedra foi lançada a 17 de Novembro de 1717, data em que culmina, 300 anos depois, o programa de celebrações. É ano de festa em Mafra. O palácio comemora o tricentenário, a tapada faz 270 anos e, no final de Janeiro, foi entregue a candidatura conjunta dos dois espaços projectados por D. João V a Património Mundial da UNESCO.
No palácio, percorremos tantos recantos quanto o tempo vai permitindo. Passamos por algumas das salas que compõem o antigo Paço Real, pelas celas dos frades, pela enfermaria, pelo refeitório e pela biblioteca. Subimos à cúpula da basílica, já na penumbra, e assistimos ao final do pôr do sol nos telhados do edifício. Deixamo-nos deslumbrar pela maquinaria que faria soar os dois carrilhões históricos do edifício, o maior conjunto sineiro do mundo, obra de restauro pela qual Mário Pereira batalhou ao longo do mandato e cujo concurso público para a entrega dos trabalhos permanece aberto desde 2015. Visitamos salas de restauro e o museu de escultura comparada, encerrado numa ala à espera de reabilitação. Privilégios inerentes a um passeio com o director. Há sempre mais uma sala, mais um pormenor por descobrir.
É um edifício que “quanto mais se conhece, mais se admira”, repetirá inúmeras vezes Mário Pereira, parafraseando o cónego Assunção Velho. De todo o monumento, só duas alas são desconhecidas para o responsável. “Nunca encontrámos as chaves de duas portas e, como são fechaduras muito antigas, não queríamos ter de arrombar e estragá-las”, conta. Ao fim de nove anos à frente da direcção do palácio, Mário Pereira diz ter chegado o momento de se reformar. Acredita que se perde o distanciamento necessário às funções depois de muito tempo num cargo de chefia. Mas o edifício ainda não deixou de o surpreender. Há pouco tempo reparou que os recortes nas varandas desenham uma flor-de-lis ou um coração de Cristo consoante a perspectiva e a luz. Seria intencional? “Quanto mais se examina, mais se admira”, dizia o cónego. E talvez seja verdade. Não só o palácio, como todo o concelho.