Ainda é silenciosa a estadia na unidade de alojamento local situada em plena Tapada Nacional de Mafra. Quando regressamos do jantar, avistamos um javali e um veado no relvado em frente ao edifício mas desaparecem mal aproximamos o carro. Apenas o vento e uma coruja entoam por entre a penumbra da noite estrelada. Os resquícios do Inverno ainda adormecem a floresta e encolhem os animais selvagens que habitam nos 833 hectares da tapada.
Conta Paula Simões, directora do parque desde o ano passado, que só no final da Primavera, quando a temperatura aquece e as crias dão os primeiros passos, o vale do Celebredo se transforma “numa auto-estrada de animais”. Surgem ao final da tarde, à procura de alimento. Primeiro os javalis, seguidos por um carreiro de pequenos listados, depois os gamos e os veados. Já no Outono, época de acasalamento dos veados, ficaríamos a ouvir os machos bramar noite dentro pelas encostas, cada um clamando fêmeas ao seu território. Mas a Primavera ainda mal começou e só de manhã os voltamos a avistar da janela da casa de banho, coçando as hastes nos troncos do jardim das traseiras.
O edifício, erguido no início do Estado Novo, integra sete quartos, três casas de banho, cozinha e várias salas decoradas com cenas de caça e aparelhos antigos, de velhos rádios a telefones, todos um dia ali utilizados (o alojamento local reabre ao público em meados de Abril, com preços a partir de 45€ por noite; reserva mínima de quatro quartos). Na sala de jantar, a comprida mesa é uma réplica da existente no Palácio de Mafra, conta Mário Pereira durante a nossa primeira visita à tapada. No interior de um dos armários, aponta outro pormenor: na louça de Sacavém encomendada pela rainha D. Amélia surge representado o pavilhão de caça do rei D. Carlos e, ao lado, um pequeno castanheiro-da-índia. O mesmo que hoje se eleva acima dos dois andares que compõem o alojamento local. É uma das três árvores classificadas da tapada, juntamente com a olaia, florida de bagas cor-de-rosa mesmo ao lado, e um enorme sobreiro com mais de 300 anos.
As instalações são modestas, rangem soalhos e portas de madeira. A atracção principal da experiência vive-se lá fora, na mística proporcionada pela história do lugar, outrora área privilegiada de caça de reis e figuras de Estado e, sobretudo, pela envolvente natural, composta por uma floresta mediterrânica autóctone. Depois de um curto passeio matinal por um trilho pedestre, percorremos a tapada com Paula Simões. O olhar treinado descobre os animais ao primeiro movimento por entre a folhagem — o nosso levará mais algum tempo a habituar-se. Os primeiros a surgir no vale são sempre os javalis, depois o veado Francisco, como Paula gosta de lhe chamar. Quando chegou à tapada, Francisco teve de viver uma temporada em quarentena e, por isso, está mais habituado aos humanos. É o único que se aproxima facilmente, ainda que mantendo sempre alguma distância. São mais de 150 as espécies de animais selvagens identificadas na tapada, dos mamíferos a muitas aves, anfíbios, répteis, insectos e morcegos. Além do trio icónico da tapada — javalis, veados e gamos — destaca-se o casal de águias de Bonelli, que aqui vive “há 24 anos”, conta a bióloga Ana Sá.
A Tapada Nacional de Mafra foi criada em 1744 por D. João V para desempenhar duas funções: abastecer de madeira e alimento o palácio e o convento, situados a poucos metros de distância (contíguos ao parque florestal, mas separados da área aberta ao público pela tapada militar), e servir de espaço de recreio de caça à família real. Em ano de aniversário redondo, também o programa de actividades da tapada promete engalanar-se para a festa dos 270 anos. Estão previstas pelo menos três actividades comemorativas: recriação histórica da última visita do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia à tapada; concerto da charanga da GNR; e “piqueniques reais”, guiados por duas figuras vestidas à época.