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Sigam a luz do farol para descobrir o que se passa em Ílhavo

Por Alexandra Prado Coelho

Há uma nova dinâmica cultural em Ílhavo, que passa (também) pela Gafanha da Nazaré, a Barra, a Costa Nova, a Vista Alegre. O projecto 23 Milhas une quatro equipamentos culturais numa programação que quer pôr o território da ria de Aveiro no mapa.

Até onde é que vai a luz de um farol? Até que ponto pode a cultura unir – e desenhar – um território? As duas perguntas parecem não ter qualquer relação entre si mas são o ponto de partida para o projecto 23 Milhas, que está a transformar a paisagem cultural de Ílhavo.

Vinte e três milhas é o alcance da luz do farol a que uns chamam de Aveiro, outros de Ílhavo e outros até da Barra, a praia onde realmente se encontra. É ele, portanto, o ponto de partida desta história. Uma revoada de vento levanta-se precisamente quando saímos do carro e, inclinados, tentando proteger os olhos da areia que voa, quase não acertamos com a porta na qual nos aguarda, sorridente, o faroleiro chefe, Nogueira da Silva.

Subimos até ao topo, mais de 200 degraus, com calma, parando de vez em quando para recuperar o fôlego. Lá em cima, o vento abranda alguns minutos, o suficiente para sairmos para o exterior e ver a vista a toda a volta: a barra da ria de Aveiro, que o farol guarda, a praia da Barra, a Gafanha da Nazaré, lá mais ao longe a Costa Nova e Ílhavo, onde a vista já não alcança.

Este é um território que se espalha, que não tem um centro evidente. E isso foi uma das primeiras coisas que chamaram a atenção de Luís Sousa Ferreira quando aqui se instalou. Luís é o responsável pelo 23 Milhas e chegou a Ílhavo no ano passado, vindo da experiência do Bons Sons, o festival que criou na aldeia de Cem Soldos, em Tomar.

“Venho de uma lógica de cidade com um castelo, um rio, uma zona central”, explica. Ao deparar-se com um “território policêntrico, com duas cidades e vários pontos de interesse turístico fora dessas cidades”, achou “fascinante” a ideia de um roteiro que cruze estes diferentes espaços.

Fez como costuma fazer nos projectos em que já trabalhou: foi à procura das histórias dos lugares. São elas que vão servir de base ao trabalho de programação cultural. Por outro lado, foram-lhe confiados quatro edifícios em quatro sítios diferentes: a Casa da Cultura, em Ílhavo, a Fábrica das Ideias, na Gafanha da Nazaré, o Laboratório Artes, na Vista Alegre, e o Cais Criativo, na Costa Nova.

Mas havia um problema. “Existia uma relação que fazia pouco sentido entre os dois centros culturais, de Ílhavo e da Gafanha. A Gafanha era um espaço que abria para três ou quatro festivais por trimestre”, explica Luís. “Era uma overdose de espaços para uma região que, num raio de 30 quilómetros, é já muito bem dotada de equipamentos culturais. O que quisemos foi, por isso, pensar a raiz e o papel de cada espaço.”

Na realidade, o que interessa aqui não são tanto os edifícios, é muito mais o lado imaterial. “É um projecto que não tem um lugar, um edifício, tem vários, e a nossa acção é feita muitas vezes fora dos edifícios, o que, do ponto de vista cultural, é muito interessante: não trabalhar um edifício mas o dia-a-dia, ir ao encontro das pessoas”, diz Luís. Foi falando com elas que começou a perceber o que faz a identidade de cada um destes lugares.

A Gafanha da Nazaré, por exemplo: “Aqui não se pode pedir muito à arquitectura, a Gafanha foi mal construída, sem planeamento. Mas tem pontos de interesse que não estão nada explorados. Lembro-me que uma das coisas que me marcaram aqui, na Avenida dos Bacalhoeiros, foi o impacto dos navios. Na altura em que vim estavam imensos aportados, têm uma escala monumental. A ria estava cheia, galgava o cais e eu, que sou do interior, senti que aqui, nas narrativas, nas histórias, as pessoas começam sempre por falar do mar. Há uma escala monumental e heróica do mar.”

Também o vereador do Turismo, Paulo Costa, fala dessa presença constante do mar nas histórias deste território – não é por acaso que há 80 anos nasceu o Museu Marítimo de Ílhavo (requalificado em 2001), hoje entre os mais visitados em Portugal, e que celebra as diferentes formas de a região se relacionar com o mar, com destaque para a saga heróica dos bacalhoeiros.

A estratégia para o crescimento do turismo na região, definida há alguns anos, parte precisamente daí. “Estamos numa região muito competitiva em termos turísticos e decidimos no final da década de 1990 escolher o mar como marca distintiva, mais na vertente da pesca do bacalhau porque isso nos distinguia dos outros municípios da região. Essa foi a nossa grande âncora, a memória, a cultura ligadas à pesca do bacalhau. É aqui que está o grande porto bacalhoeiro do país, o navio Santo André [na Gafanha] foi transformado em navio-museu, fazemos desde 2008 o maior festival de bacalhau do país [cinco dias, 12 toneladas de bacalhau consumidas, 150 mil visitantes, com uma presença significativa de espanhóis vindos do País Basco, região também com fortes ligações ao bacalhau].”

Há dois anos entrou na equação uma “peça nova”, explica o vereador. Bom, chamar-lhe nova não será exacto, trata-se afinal da fábrica da Vista Alegre, que aqui existe há quase 200 anos, mas que, agora propriedade do Grupo Visabeira, adoptou uma nova estratégia, com uma ampliação do museu, a construção do hotel e a recuperação do teatro, agora integrado no 23 Milhas. Assim, à ideia do mar juntou-se uma marca de cerâmica familiar a todos os portugueses e reconhecida a nível internacional.

A estratégia já deu frutos. “Temos tido um número crescente de visitantes fora das épocas altas. Somos hoje muito mais competitivos do que éramos há uns anos, porque apostámos em marcas identitárias”, diz Paulo Costa. Já não são apenas as praias da Costa Nova e da Barra a atrair turistas para a região, mas a programação cultural começa também a despertar atenções e o município trabalha agora para que haja uma visão mais global da ria de Aveiro – ou seja, que um visitante não venha apenas a Ílhavo ou à Costa Nova, mas que olhe a ria como um conjunto.

“A ria como destino turístico é uma urgência”, afirma. “Temos que caminhar cada vez mais para aí, não fortalecermos a marca Aveiro por si só, mas a marca ria de Aveiro, porque tem um valor acrescentado muito maior. Se formos ao Douro não vou ao Pocinho ou à Régua, o Douro conseguiu vender-se como um todo e as pessoas vão visitar quatro ou cinco municípios onde existem diferentes pontos de interesse. Nós ainda não demos esse salto de nos vendermos como um todo. Temos que assumir a ria como uma coisa fabulosa que é, um espelho de água lindíssimo, com paisagens fabulosas. Temos aqui no centro do país algo absolutamente diverso do resto. A ria de Aveiro é muito mais do que os canais da cidade de Aveiro, vai de Ovar até Mira.”

Para o 23 Milhas, Luís Ferreira pegou no território e nas suas várias identidades, mas também nos grandes símbolos da região. “O bacalhau é um símbolo imaterial de identidade, que marca a relação de Portugal com o mundo, é algo que não é nosso e que fomos buscar a outro ponto do globo”, diz. “E, no caso da Vista Alegre, é uma marca que quando estamos no estrangeiro nos faz sentir em casa. Toda a gente tem um serviço Vista Alegre para as grandes ocasiões – isso é cultura. Toda a gente usa o bacalhau e o serviço Vista Alegre e, de repente, Ílhavo tem dois símbolos nacionais que trazem uma narrativa muito interessante para quem quer trabalhar a cultura.”

Há histórias imensas e épicas, como a dos bacalhoeiros, e histórias pequenas, mas todas servem para falar deste espaço e da gente que o habita. Luís Ferreira conta uma dessas histórias mais pequenas: “Antigamente só havia electricidade em Ílhavo e estava a discutir-se onde seria colocada a seguir, se na Gafanha ou na Costa Nova, onde ficavam as casas de férias dos capitães, que viviam em Ílhavo. Escolheu-se a Costa Nova. A população da Gafanha uniu-se e fez uma hidroeléctrica comunitária. Isto mostra que há aqui um perfil de uma comunidade que construiu o seu próprio percurso e que é muito interessante.”

São todas estas identidades que o projecto quer trabalhar. Até onde a luz do farol iluminar, haverá sempre histórias a descobrir.

A Fugas esteve em Ílhavo a convite da Câmara Municipal

 

Os quatro espaços

Casa da Cultura, Ílhavo

Situado no centro de Ílhavo, é o maior dos quatro espaços agora unidos pelo projecto 23 Milhas e formalmente o que mais se aproxima da ideia de um centro cultural clássico (o auditório principal tem 507 lugares). Precisamente por isso, a ideia aqui é tentar retirar algum do peso que o próprio edifício possa conferir e encontrar espaços de contacto entre o público e os artistas que aqui apresentam os seus espectáculos. Isso passa, por exemplo, por conversas, em ambiente informal, no final do espectáculo, com o público sentado praticamente no palco, ou até numa sala de ensaios, para se conseguir uma aproximação diferente ao trabalho dos artistas.

Fábrica das Ideias, Gafanha da Nazaré

Quando visitamos o antigo centro cultural da Gafanha, agora chamado Fábrica das Ideias (e ainda com obras a terminar), encontramos dois artistas, Teresa Silva e Filipe Pereira, a ensaiar no palco principal (a sala tem 387 lugares) e um terceiro também a preparar o seu espectáculo, numa outra sala. Continuando a ter uma programação própria, a Fábrica oferece-se também como o espaço ideal para residências artísticas (Teresa e Filipe vieram através de uma parceria com o Temps d’Images) – tem, aliás, quartos, casas-de-banho e uma cozinha preparados para isso.

Os espectáculos que resultem das residências não têm que ser apresentados aqui, mas terá que haver interacção entre os artistas e a comunidade. A Fábrica tem, além disso, um novíssimo ponto de encontro informal – o Convés – que pode servir para pequenos espectáculos, lançamento de livros, conversas, stand-up comedy, acompanhado por produtos regionais.

Laboratório das Artes, Vista Alegre

A fábrica de porcelana da Vista Alegre foi o centro de uma comunidade – uma autêntica aldeia – formada pelos seus trabalhadores. Entre os vários edifícios necessários à vida desta comunidade destaca-se, pelo seu charme, a pequena sala de espectáculos do início do século XIX, que era (e continua a ser) usado pela companhia de teatro Ribalta, formada pelos funcionários da Vista Alegre. Integrada também no 23 Milhas, passou a chamar-se Laboratório e tem uma programação própria, com projectos mais intimistas, mas também mais conceptuais, eruditos, clássicos. Têm ainda uma série de pequenas salas-estúdios que podem ser usadas numa fase inicial dos processos criativos.

Cais Criativo, Costa Nova

É o equipamento mais recente dos quatro, tendo inaugurado no Verão passado. Com uma localização sobre a duna, vista privilegiada para o mar e o uso da madeira em ligação com os tradicionais palheiros da região, é um projecto do gabinete de arquitectura ARX. Na lógica do 23 Milhas, este é um local pensado para uma programação sobretudo na Primavera e Verão, alturas em que a Costa Nova se enche de pessoas. Totalmente informal e maleável a várias utilizações e tem um lado lúdico que atrai um público jovem.

 

 

Ilustração à Vista e Rádio Faneca

No início de Maio será lançado um novo, e ambicioso, projecto do 23 Milhas: o Ilustração à Vista (a semana inaugural é de 3 a 7 e prolonga-se por perto de três meses). Inspirado na tradição secular de desenho na fábrica da Vista Alegre e dos seus operários pintores, vai-se espalhar por vários espaços, com exposições, oficinas de ilustração, cinema de animação (com uma extensão do Cinanima), novo circo, “jardins quase a transformar-se em ilustrações”. É um projecto que, acredita Luís Ferreira, tem condições para vir a crescer e a tornar-se uma referência nesta área.

Em Junho – de 2 a 4 – regressa, na sua quinta edição, o festival Rádio Faneca. A comunidade do centro histórico de Ílhavo é desafiada a “sair da sua zona de conforto” e a juntar-se com artistas, que apresentam propostas diversas mas todas ligadas à história da cidade e, em particular, aos característicos becos, essas ruas estreitas onde a vizinhança é necessariamente próxima. As portas das casas abrem-se para pequenos concertos e no Jardim Henriqueta Maia revive-se o clássico Discos Pedidos na Rádio.

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