Fugas - Viagens

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A pedalar entre o passado e o futuro da cidade de Lisboa

Por Carla B. Ribeiro

Ziguezaguear de bicicleta, entre o legado histórico e aquilo que o futuro reserva à zona ribeirinha da capital. Um passeio para cumprir sozinho ou em família.

Um passeio é certo, mas sobretudo uma viagem no tempo que percorre os séculos de história da cidade de Lisboa. É a pedalar entre passado e futuro que aceitamos o desafio da Europcar para testar o percurso que, no âmbito do Dia Internacional de Monumentos e Sítios, a empresa de rent-a-car escolheu para servir de base a quatro passeios guiados, que se realizam no fim-de-semana de 22 e 23 de Abril (partidas às 11h e às 15h). Estes circuitos, de bicicleta, serão de participação gratuita, mas exigem inscrição e há número limite de participantes (15 por passeio).

Primeira e rápida conclusão: este é um passeio acessível a toda a gente, seja qual for a idade e estado físico. Além do mais, beneficiando de um trajecto pouco acidentado, e com muitas zonas de ciclovias, não será necessário ser mestre do ciclismo para se alinhar no desafio. E mesmo para quem acha que vai hiperventilar a meio caminho há solução: bicicletas eléctricas para as quais basta treinar o equilíbrio. Mas, como acabaria por comprovar, é uma opção totalmente desnecessária. A dificuldade do percurso é extremamente baixa e, ao fim de uns parcos metros, acabaria por desligar o modo eléctrico e dar ao pedal. Ainda que pouco, confesso.

O tiro de partida é dado junto a Santa Apolónia — uma questão logística, já que a empresa de aluguer tem nesta estação uma loja para levantar as bicicletas, mas sabiamente aproveitada pelo itinerário criado pelo fundador da Lisbon Art & Soul, que nos guia pelas encruzilhadas da história alfacinha. Luís Maio, jornalista de viagens, que ao longo de anos se passeou por estas páginas, correndo país e mundo, é quem nos vai conduzindo por uma Lisboa em que, literalmente, se tropeça em história. E em histórias.

Não à toa, o primeiro ponto de paragem fica a nem 50 metros da entrada da estação de Santa Apolónia, junto à esquadra da PSP. Mas, mais importante do que o que o traçado desenha à nossa frente, é aquilo que já só pode ser conhecido nos registos históricos. Zona de fundições, onde foi esculpida a Estátua Equestre do Rei D. José I, que ocupa o centro do Terreiro do Paço, foi precisamente esta que acabaria por ditar o fim de várias estruturas que nem o terramoto de 1755 tinha conseguido quebrar. A razão não poderia ser mais mundana: a enorme estátua não passava pelas estreitas ruas…

A aventura do seu transporte terá sido épica e implicou arrasar com tudo o que se opunha à sua passagem, monumentos e igrejas incluídos, e até parte da Cerca Moura. Só para se ter uma ideia, estima-se que a estátua tenha sido carregada por mais de mil homens durante quatro longos dias. E a festa de inauguração, que se prolongou por três dias, foi condizente: cortejos, fogo-de-artifício, exercícios militares, ópera, banquetes. Isto tudo sem a presença do homenageado (estátuas erguidas a vivos não era algo comum), que se manteve escondido durante todo o processo (há quem alegue que terá participado nos festejos disfarçado...).

Por esta altura a zona das fundições era das mais movimentadas da cidade, mesmo sem o glamour de outras avenidas. O enorme Chafariz de El-Rei, que terá sido o primeiro de cariz público da cidade e cuja construção inicial remonta ao século XIII, é prova disso. Hoje, aquilo que se vê é a fachada de 1864, depois de o original ter sido totalmente destruído pelo terramoto. O chafariz, cujas águas chegaram a ser consideradas pelas propriedades curativas, é composto por seis torneiras, cada qual destinada a um grupo específico de pessoas (mas chegou a ter nove!). Para escravos, para mouros das galés, para homens brancos e mulheres brancas, para mulheres negras e índias e até uma para as brancas ainda solteiras. Uma espécie de rede social em que a torneira onde alguém se serve indica estrato social e até situação amorosa.

Seguimos caminho apontando direcção a oeste, para onde a urbe foi crescendo, mas também com os olhos virados para o oceano que traria mais mundos ao pequeno país. Sempre a pedalar (ou quase: há passagens de estrada que para os menos aptos será melhor fazer com a bicicleta pela mão), vamos acompanhando o curso do rio, até o horizonte se abrir, junto à magnânima Praça do Comércio, desenhada pelo arquitecto Eugénio dos Santos, já depois de o terramoto ter arruinado a residência que, em 1511, o rei D. Manuel I achou que seria a mais digna a um monarca. O forte abalo não levou só pedras. Também acabaria por arrastar consigo pedaços gigantescos de história, como a Biblioteca Real, instalada na época no torreão poente do Paço da Ribeira e que, estima-se, reunia um riquíssimo espólio, graças sobretudo à dedicação de D. João V, mas também uma série de documentos históricos relativos à exploração dos mares.

Gingar e ganhar balanço

Ainda hoje não é difícil imaginar o impacto que a enorme praça, reerguida após o terramoto, teria nos que chegavam a Lisboa. Mesmo durante os longos anos em que serviu de parque de estacionamento, e apesar de ter servido de palco a momentos menos felizes, como o atentado que, a 1 de Fevereiro de 1908, vitimou o rei D. Carlos e o seu filho, o príncipe Luís Filipe. Actualmente, a recuperação da zona começa a dar frutos e, mais do que continuar a testemunhar a grandiosidade com que governos consecutivos quiseram impressionar estrangeiros, transformou-se num enorme espaço de lazer.

A intervenção nesta área também serviu para pôr a descoberto pedaços de história. É o caso do espaço da Ribeira das Naus, onde operou uma fábrica naval e da qual se pode observar a doca seca. Impressionante é imaginar que Lisboa acabava aqui, onde os nossos pés assentam, mesmo juntinho à estrutura em pedra que revela um impressionante estado de conservação. Nesse tempo, o trajecto que se segue seria como caminhar sobre as águas.

Mesmo à beira-rio, não há como não esquecer um pouco toda a história e aproveitar a brisa que vai amaciando o cansaço que as pernas denunciam. Por aqui, todo o cuidado é pouco. E nem é com os carros; é mesmo com os peões que teimam em caminhar pelos trilhos destinados às bicicletas. Poder-se-ia dar uso à pequena campainha, mas nesta paisagem ruídos não são bem-vindos. Por isso, o melhor é aprender a gingar e estar sempre preparado para parar e voltar a ganhar balanço. Até porque, ao longo do Tejo, há mais histórias à nossa espera. Algumas que preferíamos não relembrar, como o tempo em que todas as imundícies eram despejadas no farto caudal. Fora as vezes em que não caíam pelo caminho, como relembra o nosso guia.

Ao longo do trajecto, percebe-se que toda esta área está em pleno processo de renascimento. Há restaurantes e bares, locais de cultura e lazer. Mas, consegue-se perceber, ainda haverá mais daqui a uns tempos, com as várias movimentações que se observam e adivinham.

O tour terminará junto ao Padrão dos Descobrimentos (o da manhã; o de tarde inicia-se precisamente neste ponto, percorrendo o caminho inverso ao nosso), erguido pela primeira vez em 1940, integrado na Exposição do Mundo Português, e mais tarde, em 1960, reconstruído em betão e cantaria de pedra rosal, por ocasião da comemoração dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique. Mas, antes, logo à chegada a Belém, é preciso parar por um momento. Quer para recuperar fôlego, quer para imaginar como seria esta zona antes da dita Exposição do Mundo Português.

Até porque foi a decisão de a organizar — sob o pretexto de celebrar a Fundação do Estado Português e da Restauração da Independência — que determinou toda a renovação e requalificação urbana desta zona da cidade, onde imperavam símbolos de grandeza, como o Mosteiro dos Jerónimos.

No processo, foram aniquiladas ruas inteiras, destruídas casas. Tudo em nome de um teatro que pretendia acima de tudo consolidar o poder do Estado Novo e que nem a II Guerra Mundial, em curso, mas ainda longe de ser o evento à escala global que se tornaria, desanimou.

Desânimo também não é palavra que se enquadre no nosso estado de espírito. Mesmo quando o passeio termina, e até assumindo alguns músculos queixosos, só conseguimos pensar: para quando o próximo?

 

Conheça o património em duas rodas

A Europcar organiza, no âmbito do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, que se assinala a 18 de Abril, quatro passeios guiados de bicicleta. 
Os circuitos realizam-se, dias 22 e 23 de Abril (sábado e domingo), com partidas às 11h, da Estação de Santa Apolónia, e às 15h, do Padrão de Descobrimentos, em Belém. A participação é gratuita, mas obriga a uma inscrição prévia através da página de Facebook da Europcar, a ser confirmada.

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