“Jornal do dia?”, grita um ardina, atirando-nos, literalmente, com a edição de 1939 do Guadiana Alcoutenejo que exibe na capa uma alusão à 8.ª Volta a Portugal em Bicicleta, conquistada por Joaquim Fernandes (CUF). Na contracapa, o programa detalhado dos três dias de festival, com eventos em ambas as margens do Guadiana: exposições, teatro, cinema, gastronomia...
Traficar artes
Ao contrário do que acontece em muitos festivais, neste não há uma zona de feira. Toda a vila portuguesa é um mercado ao ar livre (do lado de lá da fronteira, o medo da chuva foi mais forte e a praça faz-se em recinto coberto). Há bancas de chouriças e queijos, doces regionais, mantas, ourivesaria, ervas e licores, artesanato regional. Entre estas misturam-se oficinas de antigos ofícios. Sapateiros, ferradores, caudeleiros, mestre em cestaria… Algumas destas vivem da perícia de mestres-artesãos; outras ganham vida com os actores que simulam as diversas artes.
A intenção da autarquia, explica Júlio Cardoso, do Turismo da Câmara Municipal de Alcoutim, passava por “apostar no artesanato ao vivo”, dando espaço a diferentes artes e artesãos. E há até uma tasquinha onde, entre as propostas, não falta rum de contrabando. Pelo meio há mesas de jogos tradicionais que divertem os visitantes, jogos de chão, brinquedos que lembram outros tempos. Além de música! Arruadas, cante, gaiteiros, ranchos… Vieram músicos um pouco de toda a parte, muitos provenientes de zonas onde o contrabando também foi durante anos uma forma de vida, criando assim um elo entre Norte e Sul do país.
Perto das 19h, o sol insiste em desaparecer no horizonte e sobre a vila tenta-se o silêncio. Não é total, mas o suficiente para que se arranje lugar para a poesia melancólica do Teatro Só como o espectáculo Sorriso. Uma história de um amor que nem a morte matou e que nos volta a remeter para a rota do contrabando que, além de fazer passar tabaco, álcool, café, roubava corações de uma e de outra margem. “Alcoutim e Sanlúcar estão unidas por muitos laços de sangue”, confirma Júlio Cardoso.
“O que se passa aqui?”, pergunta um casal inglês, visivelmente entusiasmado com o que tem testemunhado mas perdido no sentido. “É o Festival do Contrabando”, informo-os. “Smuggling?!” — acham que ouviram mal. “Sim”, confirmo, “para relembrar os tempos em que a fronteira entre Portugal e Espanha era desafiada por quem, à procura de uma vida melhor, recorreria ao mercado negro, e por isso é que foi inaugurada a ponte — para ligar os dois lados”. “Ali é Espanha? Ali?”, pergunta, atónita, a minha interlocutora.
Há muita gente que se passeia por aqui sem saber ao que veio. Mas a maioria está bem informada e, sobretudo a camada mais idosa da população, ajuda à festa com informações preciosas de como as coisas se passaram durante anos entre as duas margens. Com a conivência, diz-se, dos guardas-fiscais, que olhavam para o lado enquanto se atravessava o rio a nado a meio da noite.
Hoje, o contrabando entre as duas margens já se esgotou. Pelo menos, o clássico. Mantém-se o contrabando de afectos, de ideias, de artes. E é o contrabando destes que promete estar de volta no próximo Equinócio para a segunda edição de um festival que, a julgar pela afluência e pela animação, é já um sucesso.