Fugas - Viagens

  • DR/HENRIQUE LUZ/ACERVO DO INSTITUTO LINA BO E P.M. BARDI
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Casa de Vidro: o ícone do modernismo doméstico paulista

Por Andreia Marques Pereira

Numa cidade não rarefeita de edifícios modernistas emblemáticos, a Casa de Vidro sobressai. Construída pela arquitecta italo-brasileira Lina Bo Bardi, permite conhecer o lado mais íntimo do modernismo e do casal Bardi. É ainda porta de entrada para o legado de Lina, que se moveu com à vontade entre o modernismo e a arquitectura popular. Nesse processo, ensaiou uma espécie de identidade brasileira arquitectónica.

É uma rua estreita, íngreme, povoada de muros e casas grandes. À volta, ruas, iguais, intensamente arborizadas. Parece que São Paulo ficou para trás, mas estamos numa das suas zonas mais reconhecíveis, por nome, pelo menos, Morumbi. Nos bairros da Vila Tramontano ou no Real Parque — ou algures nos interstícios, o guia não nos sabe esclarecer.

Não há betão, concreto, à vista talvez porque estejamos a cerca de 15 quilómetros do centro, longe de arranha-céus e do trânsito ininterrupto — aqui, a passagem de um veículo é um sobressalto. Há um portão fechado e para além dele uma subida de cimento e um arvoredo intenso. É necessário tocar à campainha para que as portas se abram para um dos territórios mais icónicos da arquitectura modernista paulista —  brasileira, até. Estamos na Casa de Vidro e vamos começar a vê-la à medida que subimos a rampa, assente que está em colunas de aço. O nome não tem mistérios para quem a vê deste ângulo, o principal: não há paredes, apenas vidro. É a sede do Instituto Bardi e monumento protegido, mas antes de tudo foi a residência do casal Lina Bo Bardi (1914-1992) e Pietro Maria Bardi (1900-1999). Ela arquitecta, ele jornalista, crítico e coleccionador de arte — ele foi um dos responsáveis pela concepção e direcção durante 45 anos do Museu Arte de São Paulo (MASP), fundado pelo empresário Assis Chateubriand, ela desenhou a sua sede, um dos mais reconhecíveis edifícios de São Paulo. Antes, porém, desenhou a casa da vida deles.

Ou do resto da vida deles. Nascidos ambos em Itália, onde ela se formou em arquitectura e ele iniciou o seu percurso no mundo da arte, chegaram ao Brasil em 1946, na ressaca da II Guerra Mundial. Deixaram para trás um velho mundo destruído para se aventurem num jovem país cheio de promessas, inclusive de uma nova arquitectura. Na bagagem com eles veio a colecção de obras de arte e a biblioteca de Pietro.

Então, entre 1950 e 1951, Lina constrói o seu primeiro projecto integral no  Brasil, aquela que ficou conhecida como Casa de Vidro, que se abriu a visitas públicas em 2013. Numa cidade onde a arquitectura modernista tem vários ícones, entre eles, por exemplo o ondulante Edifício Copan e o Auditório Ibirapuera, língua vermelha a acolher os visitantes, ambos de Niemeyer, a Casa de Vidro tem a particularidade de representar o lado “doméstico” do movimento.

Transparência e opacidade

Se hoje a vemos “lutar” entre intenso arvoredo (7000 m2 de jardim e 500 m2 de construção), as fotografias da altura da conclusão da Casa de Vidro mostram um cenário diferente. Uma espécie de caixa de vidro assente no cimo de uma colina suave (como um ovni rectangular, apoiado em pernas delgadas e com uma escada como ligação à terra), sem nada ao redor. O casal Bardi queria contacto total com o exterior (e com os elementos naturais) e tinha uma vista privilegiada sobre a cidade que se erguia massivamente no horizonte, a floresta e as plantações que nessa altura ainda formavam uma cintura em volta de São Paulo. E foi precisamente numa antiga plantação, entretanto dividida em lotes, que Lina construiu aquela que seria a primeira casa do Morumbi, na zona sul de São Paulo.

A cidade a expandir-se, a Mata Atlântica a regressar e a tomar conta do jardim, com ajuda de Lina. Por isso, hoje a vista do enorme salão envidraçado é para um cenário onde não é necessária muita imaginação para nos imaginarmos na selva. Mas não é selva, não. É o produto da união da racionalidade da arquitectura racionalista europeia (e a sua predilecção, por exemplo, pelas formas geométricas e os materiais industriais, como aqui se vêem), com as idiossincrasias do novo país, nomeadamente a sua natureza exuberante. Já não vemos um ovni, vemos uma jangada de vidro que flutua na vegetação, agora um biombo em relação à cidade que já chegou até aqui.

Aproximando-nos percebemos que os pilares não foram um capricho. Foram, explica o guia, uma forma de aproveitar o declive do terreno, ao mesmo tempo que prestam vénia a um dos princípios de Le Corbusier. A entrada por aqui apenas se faz pela escadaria exterior (granito e estrutura de aço) que nos leva directamente ao coração da casa, o enorme salão que ocupa integralmente a parte transparente da estrutura e que se desdobra em sala de estar, de jantar, área de trabalho e biblioteca. Actualmente, parte desta tem acesso restrito por aí funcionar um centro de pesquisa e documentação, apropriadamente separado do resto do espaço por estantes repletas de livros.

E aí, nesse canto agora marcado pelas estantes e pelas paredes de vidro, vemos o espaço de trabalho com a mesa de Lina e a secretária de Pietro, cada qual virada para o exterior. Este é um dos ambientes deste espaço onde o interior e o exterior se misturam. Os móveis que o preenchem são quase todos da autoria de Lina, que, além da arquitectura, também se dedicou à cenografia e ao desenho de mobiliário — aliás, o seu primeiro projecto nesta área no Brasil terá sido a chamada “cadeira 7 de Abril” que criou para o MASP original (num edifício que ela adaptou) e que vemos aqui. “Tirando os móveis históricos e algumas peças avulsas, tudo o resto é produção de Lina”, explica o guia — tudo originais, excepto três reproduções.

Mas voltamos à estrutura da Casa de Vidro e ao saguão que, desde que a vegetação original retomou o seu lugar, ilumina mais directamente o salão. Nele, cresce uma árvore reforçando a ideia de contacto com a natureza; através dele faz-se a ventilação cruzada nos dias mais quentes e mais uma homenagem a um dos mestres da arquitectura moderna — no caso, Mies van der Rohe e às suas casas-pátio.

O saguão como que divide as duas partes da casa, a transparente e a “opaca”, chamemos-lhe assim, betão assente no terreno. É a zona privada, com os quartos, a cozinha e as zonas de serviço. A cozinha é enorme, com janelas estreitas na horizontal e junto ao tecto — tem ligação para um pátio nas traseiras com um forno de pão e uma churrasqueira e para a antiga horta. Há também ligação para a zona dos quartos, dois de hóspedes agora fechados e o quarto principal (janela virada a nascente e, por isso, com pesado reposteiro), na penumbra para preservar uma “pintura italiana do século XVI ou XVII), com uma antecâmara. Duas casas de banho, inesperadamente “modernas”, completam esta área que tem ligação directa para o salão, através da antiga biblioteca e da entrada. Na verdade, a organização da casa é circular, com três pontos de transição entre as duas zonas, entre luz e a penumbra.

Identidade brasileira

A visita à casa é complementada com informação sobre a obra de Lina Bo Bardi, ainda que através de livros. É assim possível ver a sua evolução enquanto arquitecta, percebendo que nunca se deixou tomar por nenhuma escola, adaptando o estilo ao projecto. Estando numa casa rectilínea, vemos projectos baianos, como a Casa do Chame-Chame, de linhas fluídas; ou o Solar do Unhão, recuperação de uma antiga fazenda do século XVI, com todas as suas dependências, incluindo capela, senzala, aqueduto, alambique, para albergar o Museu de Arte Moderna da Bahia, em que Lina, que também foi a sua primeira directora, deixa os espaços históricos limpos e vazios. Vemos ainda a “igreja redonda” de Uberlândia (Minas Gerais) — nome oficial, Igreja Divino Espírito Santo do Cerrado — ou a Casa Cirell (São Paulo), onde a geometria se dilui nos materiais utilizados em simbiose total com a natureza. Regressamos às linhas direitas no SESC Pompéia, onde os edifícios da antiga fábrica de tambores mantiveram a sua traça industrial limpa no interior, tendo o projecto sido completado com duas torres de betão, tudo para construir uma zona de cultura e lazer, que inclui desde teatro a instalações desportivas. Do MASP, um dos edifícios mais reconhecíveis de São Paulo, em plena Avenida Paulista, percebemos os princípios similares aos da Casa de Vidro. Um volume maciço, neste caso de betão, assente em pilares, transparente e vermelho — mas aí com a ausência de colunas no interior.

Esta revisão da obra arquitectónica de Lina Bo Bardi serve para mostrar como ela se moveu com à-vontade entre o modernismo e arquitectura popular, sem qualquer linha cronológica. O seu princípio sempre foi adaptar-se ao contexto, deixando-se imbuir pelas tradições locais, com um olhar quase antropológico, que adaptava aos conceitos mais modernos. O que acabou por traduzir-se, consideram os especialistas, numa superação do formalismo estéril e numa contribuição para a afirmação de uma identidade brasileira na arquitectura.

 

Casa de Vidro | Instituto Lina Bo e P. M. Bardi
Rua General Almério de Moura, 200 - Bairro do Morumbi, Zona Sul
São Paulo, Brasil
E-mail: institutobardi@institutobardi.com.br
http://institutobardi.com.br
Horário: De quinta-feira a sábado, das 10h às 16h. Quando há exposições temporárias as visitas são abertas ao público. Quando não há devem ser marcadas através do e-mail educativo@institutobardi.com.br e os horários das visitas, necessariamente guiadas, são 10h30, 14h e 15h. As visitas têm duração de até 1h30 e são gratuitas.

 

A Fugas viajou a convite da Travelweek São Paulo by ILTM

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