Fugas - Viagens

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O hotel “mais chique” de Salvador renasceu das cinzas

Por Alexandra Prado Coelho

O Palace Hotel, cenário de livros de Jorge Amado, local de visita obrigatória para a alta sociedade de Salvador da Bahia na década de 1950, cujos quartos receberam Pablo Neruda, Orson Welles ou Carmen Miranda, esteve fechado e em risco. Agora está de volta em grande estilo.

“No salão do Palace iam os dois a dançar, num tango de doçura e de volúpia, tão de jovens inocentes namorados e tão de lúbricos amantes.” No salão do Palace, Dona Flor dançou o tango com Vadinho na noite do seu aniversário. Mas “uma coisa dançar em festinha de aniversário, muito outra sair pelo salão do Palace nos apuros de um tango arrabalero, e logo aquele! […]. Saberia ainda dançá-lo tanto tempo depois, e, ao demais, nessa noite quase mágica quando vem ao Palace pela primeira vez?”.

O Palace Hotel era, nas primeiras décadas do século XX, um dos locais mais chiques da cidade de Salvador da Bahia, Brasil. Por isso, Dona Flor, que Jorge Amado imortalizou em Dona Flor e seus Dois Maridos, sonhava com aquela noite no Palace. 

“O hotel, aberto em 1924, foi construído pelo comendador Martins Catharino, o homem mais rico da cidade, um Rockefeller da época”, conta António Mazzafera. “A cidade de Salvador chamava-se então Bahia e ele construiu-o para os coronéis do cacau que moravam em Ilhéus e Itabuna e vinham com frequência para cá. Foi o hotel mais luxuoso da cidade e é considerado uma das jóias Art Deco da Bahia.”

Estamos a almoçar no restaurante do recém-aberto Fera Palace Hotel de Salvador e António Mazzafera é um dos homens por trás do renascimento deste ícone da cidade, fechado durante mais de dez anos e ameaçado de ruína, que reabriu portas em Fevereiro deste ano. Hoje, o Palace recuperou a sua velha glória e ergue-se majestoso e elegante aos olhos de quem sobe a Rua Chile — a mais antiga da cidade (1549) e a primeira construída pelos portugueses no Brasil (por ordem de Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral do Brasil, que encomendou o plano da cidade ao arquitecto Luís Dias), que anteriormente foi chamada Rua Direita do Palácio e Rua Direita do Mercador. 

O comendador Martins Catharino tinha ido a Nova Iorque e encantara-se com o Flatiron Building da 5ª Avenida. E assim a Bahia viu nascer o edifício, também ele triangular, avançando como a proa de um navio pela Rua Chile. “Nos anos 1930, 40, 50, a Rua Chile estava no seu auge”, continua António Mazzafera. “Todo o mundo vinha para cá, era onde as pessoas da cidade passeavam.” Carmen Miranda, Pablo Neruda, Orson Welles, todos ficavam instalados no Palace. Que era, claro, poiso obrigatório dos paparazzi, empenhados em não perder a foto da próxima estrela a cruzar a porta do hotel.

No blogue Mais de Salvador, a museóloga Ana Maria Carvalho de Azevedo faz um delicioso relato do que era a vida de sociedade na Rua Chile, “das lojas mais elegantes, frequentadas pela boa sociedade e onde se encontravam os mais finos artigos e também, é claro, os últimos lançamentos da moda”. Recorda ela que “para se ir à Rua Chile era preciso uma preparação em grande estilo”, com “vestidos de passeio, sapatos de salto e meias de seda, com a costura bem certinha”, e as garotas a copiar os modelos dos vestidos “dos filmes americanos e do figurino ‘Lana Lobell’”.

Havia a Casa Sloper, “um sonho de coisas lindas” e uma secção de beleza “onde uma especialista, rodeada de frascos contendo vários tons de pó-de-arroz, misturava-os, de acordo com a tonalidade da pele da cliente, uma coisa finíssima e muito chic!”; havia a Loja Duas Américas, “um verdadeiro magazine” que “na década de 50 era o lugar mais fino e bem frequentado da cidade”, tendo sido “a primeira a instalar escada rolante”, o que equiparava Salvador “ao Rio de Janeiro e São Paulo”.

E havia, claro, o Palace, com o seu casino no primeiro andar. Um cartaz reproduzido no blogue anuncia “os shows do Palace Hotel” que “constituem o encanto da Bahia chic”. Ana Maria Azevedo recorda que no piso térreo “encontrava-se a loja Adamastor”, na década de 50 “uma das melhores em artigos masculinos” com “o que havia de mais moderno para os rapazes”. Essa loja situava-se precisamente no local do restaurante Adamastor, onde estamos a almoçar. “Aqui havia oito lojas, que não existiam no hotel original”, explica António. “A loja Adamastor tinha o nome do proprietário, que era o pai do cineasta Glauber Rocha.” 

Não é só para turistas

Numa viagem a Salvador, António, nascido em Minas Gerais e que trabalhou em Londres no Grupo Hotéis Maybourne (antigo Grupo Savoy), encantou-se com o edifício. “Achei que tinha muito potencial.” Depois de, com o sócio, o empresário Marcelo Lima, o adquirir, há cinco anos, começou a procurar informação sobre a sua história e a estudar a melhor forma de o reconstruir. 
Por haver pouca experiência na recuperação de edifícios históricos no Brasil, optaram por chamar o arquitecto dinamarquês Adam Kurdahl para “resgatar todas as características Art Deco mas, ao mesmo tempo, criar um ambiente jovem e descontraído”. Quando começaram não imaginavam o trabalho que tinham pela frente.

 Para perceber o estado a que tinha chegado o Palace, é preciso entender que a partir da década de 90, com a transferência da sede administrativa do Governo do Estado para o Norte da cidade, todo o centro histórico de Salvador entrou em declínio. “Quando começámos a reforma, em 2014, tivemos uma surpresa muito desagradável, não sabíamos que o Palace estava num estado de degradação tão grande”, conta António. “As fundações estavam todas comprometidas.” 

A obra foi imensa para um hotel com uma área de 6100 metros quadrados distribuídos por dez andares — actualmente são, no total, 81 quartos, dez dos quais suítes. “Criámos um reservatório de água de 150 mil litros para que o hotel possa funcionar todos os dias sem parar. Reforçámos 750 pilares para podermos fazer uma piscina na cobertura. Recuperámos a torre [que encima a esquina do edifício], que estava caindo.” 

As 434 janelas de madeira do Palace foram todas recuperadas, assim como o soalho, os mármores originais e mais de 200 adornos Art Deco. O mobiliário nos quartos e corredores cruza o clássico/colonial/anos 20 com grandes fotografias a cores do fotógrafo Akira Cravo que trazem a festa da Bahia para o interior. 

A piscina na cobertura, com uma vista magnífica sobre a cidade — estamos a menos de cinco minutos a pé do histórico Elevador Lacerda e a dez minutos do Pelourinho — é o lugar para assistir ao pôr do sol, até porque, lembra António, “o Palace está voltado para a Bahia de Todos os Santos, que está virada para a terra e não para o oceano, por isso estamos virados para o pôr do sol enquanto o resto do Brasil está virado para o nascer do sol”. Este é um espaço usado para festas à noite e, tal como o restaurante, está aberto a toda a população da cidade.

Embora mantendo a sofisticação, o novo Palace quer ter um ambiente descontraído e, sobretudo, quer ser um espaço não apenas para turistas, convidando os habitantes de Salvador a voltar a frequentar o centro da cidade e a almoçar ou a jantar no restaurante. Aliás, o objectivo dos novos proprietários, seguindo aquela que é a filosofia do grupo Fera Hotéis, é não ficar por aqui e, aproveitando o novo dinamismo que o Palace traz à zona, apostar na recuperação de outros edifícios da Rua Chile. 

“Estamos analisando edifícios para termos oferta residencial e de escritórios”, conta António. “Há um palacete deslumbrante que adquirimos e onde estamos a pensar fazer algo inspirado pelo Mercado Time Out, em Lisboa.” A rua ainda está deteriorada, mas o Governo do Estado prepara-se para refazer os passeios. E, dentro de um ano e meio, o Fasano, a famosa cadeia de hotéis, vai instalar-se mesmo ao lado do Palace, noutro edifício histórico que está já a sofrer obras de recuperação. 

E assim, espera António, a pouco e pouco, a Rua Chile voltará ao seu antigo esplendor. Já quase ouvimos ao longe no ar o tango que chama Dona Flor e Vadinho para a pista de dança. Dessa “noite de quimera”, escreve Jorge Amado, Dona Flor guardou na memória cada detalhe, “desde a entrada no salão de dança até ao derradeiro minuto de prazer infinito de desbragada impudicícia no leito de ferro, com ele a lhe cobrar, na raiz do seu corpo, o presente de aniversário: a ida ao Palace.” 
 
A Fugas viajou a convite do Fera Hotéis

Fera Palace Hotel
Rua Chile, 20
Salvador da Bahia
Tel.: +55 (71) 3266-0487
Email: reservas@ferahoteis.com
ferapalacehotel.com.br
Preço: a partir de 245 reais (cerca de 70 euros)

 

“Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim”

No hall de entrada do Fera Palace Hotel, em Salvador da Bahia, estão duas peças da artista baiana Nádia Taquary. E trazem com elas essa mistura de português-negro-índio que faz muita da história da Bahia. 

Quando era pequena, sempre que fazia anos, Nádia recebia do pai uma pequena jóia representativa da joalharia afro-brasileira que, sem ela o saber, iria tornar-se a principal fonte de inspiração do seu trabalho — nas peças que hoje faz, esses objectos de pequenas dimensões crescem e conquistam uma presença feita do orgulho de uma história de mestiçagem. 

Chegamos ao seu atelier em Salvador e a primeira coisa que nos chama a atenção é uma série de fotografias antigas, enchendo uma parede, de negros com penteados esculturais e rostos tristes, fechados. Nádia descobriu o álbum de fotos num alfarrabista de Lisboa e viu logo como ele tinha tudo a ver com a sua vontade de aprofundar a cultura africana do adorno e o uso do corpo como forma de comunicação (uma série de peças que fez inspiram-se precisamente nestes complexos adornos de cabelo africanos). 

“A joalharia afro-brasileira nasce aqui na Bahia com a técnica portuguesa, referências portuguesas mas uma estética africana”, porque quem a fazia eram os escravos vindos de África. “A senhora usava o brinco, o camafeu, o anel, o pente, uma joalharia que não era tão opulenta”, conta Nádia. Mas quando a ourivesaria sai desse domínio e passa a ser usada pela crioula, “ela nasce com todos os símbolos e a estética africana”.

Um dos objectos que fascina Nádia, e que inspira muitas das suas peças, é o balangandã, um conjunto de amuletos e talismãs que as escravas libertadas traziam presos num arco à cintura — o nome vem do som que faziam ao andar, chocalhando uns contra os outros. “Essas peças nascem como uma forma de pecúlio. Como é que essas mulheres podem guardar o dinheiro que ganham se não o podem pôr no banco? Vão botá-lo no próprio corpo.” Sempre que reúnem algum dinheiro, arranjam uma figa da sorte em madeira e encastram-na com prata. Carregam literalmente no corpo o preço da liberdade. 

“Vão afirmando esse conjunto, que tem uma simbologia muito profunda, nenhum balangandã é igual a outro, são peças muito subjectivas. E quando têm peso suficiente, entregam o balangandã ao senhor para comprar a alforria de algum parente”, descreve Nádia. Estas peças tipicamente baianas passam então para a posse dos senhores que as usam para exibir a sua riqueza. 
No entanto, não é a “sinhá” que as vai usar, mas sim as suas damas de companhia. “A sinhá ia à Igreja do Bonfim aos domingos à tarde para uma célebre missa que havia em Salvador. Tem até uma música do Dorival Caymmi [O que é que a baiana tem?] que fala assim: ‘Só vai no Bonfim quem tem/ um rosário de ouro, uma bolota assim/Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim.” Quanto mais as damas de companhia crioulas fossem carregadas de jóias, mais rico era o senhor. “Como tudo era dele, incluindo a escrava, ele podia enchê-la de ouro”, sublinha Nádia. “Ela era como uma jóia andante.”

E ostentar riqueza era muito importante numa sociedade como a baiana. Conta Maria Novaes Pinto, que nos guia por uma visita ao centro histórico de Salvador, que a Igreja de São Francisco é toda decorada a ouro porque quando foi pedida autorização a Lisboa para a construção, Portugal respondeu que daria se ela representasse a riqueza da colónia — baseada na exploração da cana-de-açúcar e de tabaco. Daí a ostentação da igreja, que apenas se encontra despida de ouro na parte de trás, junto à porta, o local onde ficavam os escravos que vinham acompanhando os senhores. “Quanto mais escravos acompanhassem a família, mais importante era ela”, explica Maria Novaes. 

Nos balangandãs recriados por Nádia Taquary, os elos e os talismãs que eles unem passam a ser enormes, “agigantam-se”, tornam-se “barrocos e africanos”, porque precisam de se mostrar. “São”, diz a artista, “peças que nasceram de uma superação, de um empoderamento, de uma forma de sobrevivência e, ao mesmo tempo, com uma história que traz uma carga muito grande de liberdade.” A história dos escravos que fizeram a Bahia. “Aproprio-me dela porque ela é também a minha história”. 

 

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