Quando, no já distante Inverno de 1766, o jovem James Christie deu início ao seu primeiro leilão em Londres, e logo de vinhos, naquela que viria a transformar-se numa das maiores e mais prestigiadas leiloeiras do mundo, a Christie"s, estaria longe de pensar que duzentos anos mais tarde os seus sucessores iriam leiloar a garrafa de vinho mais cara de sempre na história da humanidade. Pudesse ele ter prenunciado os valores demenciais que alguns dos vinhos licitados nesses primeiros anos poderiam alguma vez alcançar... e teria certamente reservado algumas dessas garrafas para conforto material das futuras gerações.
Quem diria que esse primeiro lote proposto em 1766, com vinhos saídos da cave de um nobre recentemente falecido, numa compilação que incluía uma vasta colecção de vinhos da Madeira e algumas garrafas de vinhos tintos bordaleses "finos", arrematados por 175 libras, poderia, dois séculos mais tarde, em 1985, ser encimada pela licitação de uma só garrafa... pela incrível soma de 105.000 libras, ou, se preferirmos, à taxa de câmbio actual, pelo valor aproximado de 119.000 euros. O vinho em causa, apresentado numa garrafa de vidro de cor esverdeada e sem rótulo, vidro de paredes grossas e toscas, soprado à mão, com o gargalo protegido por uma camada espessa de lacre preto, era nem mais nem menos que um Chateau Lafite, da colheita 1787, à época ainda qualificado como Lafitte.
Sim, à semelhança de outras colheitas que ficaram na história, como 1929, 1945 ou 1947, a vindima de 1787 também foi considerada como ano excepcional, muito ao contrário das duas vindimas que se seguiram, 1788 e 1789, anos deploráveis que fortaleceram o sentimento de revolta que viria a redundar, pouco depois, na feroz revolução francesa. Porém, mais que a raridade do vinho ou a simples excelência do ano de colheita, o que verdadeiramente atraiu a atenção e despertou a cobiça dos licitadores, sobretudo americanos, foram as inicias "Th.J." cinzeladas na garrafa, sugerindo que a preciosa garrafa de Lafite 1787 poderia ter pertencido ao muito amado e reverenciado Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos da América, um filho do iluminismo que é universalmente considerado como um dos mais brilhantes presidentes da América, autor e principal impulsionador da declaração de independência americana.
Reconhecido como o primeiro gastrónomo e enófilo americano, Thomas Jefferson é igualmente identificado por algumas más-línguas como o primeiro "enochato" da história americana, como o atestam os comentários de John Quincy Adams, sexto presidente da América, quando nas suas memórias se queixa amargamente das longas e maçadoras dissertações sobre vinho nas recepções e jantares oficiais da Casa Branca. Durante cinco anos embaixador em França, nos cinco anos que precederam a revolução francesa, Thomas Jefferson aprendeu a cultivar um gosto muito especial pelos vinhos bordaleses, que comprava às caixas, seleccionando para si e George Washington aqueles que mais o entusiasmavam.
Por isso a história da garrafa se apresentava tão plausível. Depois de aturados testes que acabaram por confirmar a autenticidade do vidro e da gravação, incluindo o tipo de caligrafia utilizada, a leiloeira Christie"s autenticou a garrafa como pertencente à colecção particular de Thomas Jefferson. Apesar de pouco ou nada se conhecer sobre a sua origem, aparentemente descoberta por sorte do destino por detrás de uma parede falsa de uma velha adega de um prédio parisiense, aquando de obras de remodelação, os coleccionadores americanos lançaram-se num frenesim disputativo, arribando ao valor surreal de 105.000 libras, terminando a garrafa arrematada por Christopher Forbes, vice-presidente da revista Forbes, orgulhoso de poder exibir ao público tão empolgante troféu na vasta colecção de arte reunida e exposta nas Forbes Galleries, em Nova Iorque.
Milagrosamente, a par de tão prodigiosa descoberta, foram descobertas mais duas garrafas de Lafite 1787, com as tão cobiçadas iniciais "Th.J.", acompanhadas por mais garrafas, em número incerto, de Margaux, Yquem e Branne Mouton (o nome original do vinho hoje conhecido como Mouton Rothschild). Leiloadas ulteriormente, com o selo de autenticidade da Christie"s, todas ganharam comprador seguro, ainda que por somas ligeiramente menos delirantes que a primeira garrafa a entrar em licitação. Bill Koch, um ocioso milionário americano, conhecido como um insaciável coleccionador de arte, vinho e outras raridades (proprietário de obras de arte de Picasso, Renoir, Degas, Modigliani, Chagall, Monet, Cézanne, Miró, Rodin, Dali, Léger, entre muitas outras peças) arrematou uma garrafa de Branne Mouton, logo seguida por uma segunda garrafa do mesmo vinho... e mais duas garrafas de Lafite 1787, desembolsado com a operação cerca de 350.000 euros.
Durante quinze anos conservou religiosamente as quatro garrafas na sua adega pessoal imaculada, até receber, em 2005, um convite para expor parte da sua colecção no Boston Museum of Fine Arts. Ao abrigo das práticas perfilhadas pelos principais museus internacionais, para prevenir embaraços, foi convidado a demonstrar a autenticidade de todas as peças a exibir, onde se incluíam as quatro garrafas bicentenárias pertencentes a Thomas Jefferson. Depois de confrontado com as fortes suspeições sobre a genuinidade dos vinhos pela fundação Thomas Jefferson, observou com espanto que as provas de autenticidade da leiloeira Christie"s se apresentavam demasiado finas e fortuitas, sem solidez na sustentação da prova, ligadas a Hardy Rodenstock, um alemão demasiado habituado a desencantar garrafas antigas de forma milagrosa. Ferido no seu orgulho, e disposto a gastar muito do seu imenso dinheiro na vingança, decidiu reunir uma equipa de especialistas que o pudessem ajudar a comprovar a proveniência fraudulenta do vinho.
Se as datações por Carbono 14 e Césio 137 acabaram por se declarar inconclusivas, Bill Koch alcançou o seu propósito pessoal graças a um pequeno mas decisivo detalhe, quando, após uma exaustiva análise microscópica aos detalhes da gravação do nome do vinho e iniciais de Thomas Jefferson, descobriu que estas tinham sido cinzeladas com o recurso a uma ferramenta eléctrica, presumivelmente uma broca de dentista... inexistente em 1787!
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