Fugas - Vinhos

Adriano Miranda

Um erro de conceito?

Por Rui Falcão

Se o propósito dos vinhos rosados é oferecer um vinho fresco e delicado, apropriado para acompanhar as refeições leves de Verão, por que razão tantos indiciam estilos tão pesados, com graduações alcoólicas tão elevadas?
Quantas vezes durante a vida, até um passado recente, fomos confrontados com a já estafada máxima popular que os vinhos rosados são "vinhos de senhora" ou, nas versões mais radicais, que nem sequer são verdadeiramente vinhos? Uma sentença inconsequente que se revela ainda mais estranha e incompreensível num país que se pode justamente orgulhar de ter oferecido ao mundo dois ícones rosados tão populares como o Mateus e o Lancer"s, dois verdadeiros case studies internacionais, dois vinhos invulgares na inovação, coragem e capacidade de internacionalização, e, infelizmente, dois vinhos demasiado desvalorizados num país que prefere ocupar o seu tempo depreciando os seus poucos casos de sucesso que a enaltecer os seus êxitos e as razões para tal sucesso.

Porque se há um estilo que possa caracterizar e identificar os vinhos nacionais, para além da presença indelével dos vinhos generosos, são os vinhos rosados. Durante demasiados anos, subjugados pelo sucesso internacional de Mateus e Lancer"s, os vinhos rosados foram enjeitados em Portugal, remetidos para o canto escuro dos vinhos nacionais, considerados como impróprios para serem servidos às mesas mais esclarecidas. E depois, numa mudança súbita de vontades e conveniências, os vinhos rosados subiram rapidamente de popularidade, ganhando um estatuto de que estavam privados há muitas décadas.

O que terá conduzido a tamanha metamorfose? Terão os hábitos mudado de forma repentina, ou, mais prosaicamente, terão os vinhos rosados começado a ser apreciados pelos produtores por razões exógenas, encarados como simples operação secundária, primorosa para aperfeiçoar e reparar os vinhos tintos? E afinal, o que é um vinho rosado e quais são as características que deve evidenciar?

De forma genérica e simplista, os vinhos rosados europeus são elaborados com uvas tintas, num processo onde a extracção de cor é ligeira e quase residual. Fora do espaço europeu, naquilo que se convencionou designar como países de novo mundo, os vinhos rosados podem legalmente redundar de um lote entre vinhos brancos e tintos, prática proibida pela União Europeia, com as devidas e inevitáveis excepções, nomeadamente na região de Champagne, onde tal prática é autorizada. Por isso podemos assistir ao sucesso retumbante de alguns vinhos rosados sul-africanos de Sauvignon Blanc, uma casta branca intensa e perfumada, a que são acrescidos pouco mais de 5 por cento de uma casta tinta, por regra o Cabernet Sauvignon, dando corpo a vinhos imensamente frescos e exóticos. Na Europa, porém, tais práticas seriam consideradas fraudulentas e ilegítimas, de acordo com a legislação vigente.

Independentemente da escola e diferentes filosofias enológicas que separam novo e velho mundo, quais os predicados que deverão caracterizar um vinho rosado? No seu melhor, um vinho rosado tem a obrigação de ser delicado, proporcionando a frescura palpável de um vinho branco mas imbuído de uma pequena pincelada adicional de estrutura, uma subtil indicação de austeridade e rigor que provenha da maceração pelicular. Para tal, e mais uma vez de forma ligeira, existem duas grandes composturas de aproximação aos vinhos rosados. Nos vinhos rosados a cor depende directamente do tempo de contacto entre o mosto e as películas da uva. Sempre que se aproveitam os mesmíssimos métodos empregues na elaboração de vinhos brancos, com as uvas a serem prensadas quase de imediato, com um tempo de contacto muito breve com as películas (onde se encontra a matéria corante), os vinhos consequentes apregoam cor mais aberta e ligeira. Para obter cores mais concentradas utilizam-se macerações mais demoradas, com contactos que podem mesmo remontar a algumas horas.

E por último, aquele que é o modo mais frequente, absolutamente determinante para o renascimento do empenho dos produtores nos vinhos rosados, o método de sangria que, como o nome o denuncia, se baseia numa sangradura inicial e precoce das cubas de vinho tinto, fomentando a concentração do vinho tinto remanescente na cuba... usufruindo daquilo que seria um desaproveitamento resultante da concentração de vinhos tintos para a elaboração de um vinho rosado, que não será mais que um subproduto do verdadeiro vinho alvo, o vinho tinto.

As duas metodologias implicam, forçosamente, vinhos de carácter discrepante. Enquanto nos vinhos tintos se reclama por uvas concentradas e em perfeito estado de maturação, nos vinhos rosados insiste-se essencialmente na procura de frescura e viço, onde a acidez é uma marca distintiva pelo menos tão relevante como a maturação. Os vinhos rosados de sangria acabam, por inerência, por ter de sacrificar a frescura, prometendo uma estrutura superior... e um potencial alcoólico muito mais elevado, corrompendo na passagem o espírito dos vinhos rosados. Porque desenhar um vinho rosado de raiz não é um plano B, um mero expediente enológico para salvaguardar um vinho tinto. Desenhar um vinho rosado de raiz implica, à partida, definir parcelas da vinha para a sua execução, com rendimentos por hectare mais elevados, sem monda em verde, definindo datas de vindima ligeiramente mais temporãs para evidenciar a frescura e jovialidade que se desejam num vinho rosado.

Claro que, numa visão meramente economicista, será muito mais apelativo para a maioria dos produtores produzir vinhos rosados de sangria, aproveitando para, através de uma simples operação, aprimorar um vinho tinto... ao mesmo tempo que obtém um segundo vinho com a operação. Por isso vemos tantos vinhos rosados com graduações alcoólicas tão elevadas, por vezes superando os 14º, e com cores tão carregadas, subvertendo o propósito dos vinhos rosados. E por isso se vêem tantos vinhos rosados nas prateleiras, num súbito despertar para a causa dos vinhos rosados...
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