Porque se há um estilo que possa caracterizar e identificar os vinhos nacionais, para além da presença indelével dos vinhos generosos, são os vinhos rosados. Durante demasiados anos, subjugados pelo sucesso internacional de Mateus e Lancer"s, os vinhos rosados foram enjeitados em Portugal, remetidos para o canto escuro dos vinhos nacionais, considerados como impróprios para serem servidos às mesas mais esclarecidas. E depois, numa mudança súbita de vontades e conveniências, os vinhos rosados subiram rapidamente de popularidade, ganhando um estatuto de que estavam privados há muitas décadas.
O que terá conduzido a tamanha metamorfose? Terão os hábitos mudado de forma repentina, ou, mais prosaicamente, terão os vinhos rosados começado a ser apreciados pelos produtores por razões exógenas, encarados como simples operação secundária, primorosa para aperfeiçoar e reparar os vinhos tintos? E afinal, o que é um vinho rosado e quais são as características que deve evidenciar?
De forma genérica e simplista, os vinhos rosados europeus são elaborados com uvas tintas, num processo onde a extracção de cor é ligeira e quase residual. Fora do espaço europeu, naquilo que se convencionou designar como países de novo mundo, os vinhos rosados podem legalmente redundar de um lote entre vinhos brancos e tintos, prática proibida pela União Europeia, com as devidas e inevitáveis excepções, nomeadamente na região de Champagne, onde tal prática é autorizada. Por isso podemos assistir ao sucesso retumbante de alguns vinhos rosados sul-africanos de Sauvignon Blanc, uma casta branca intensa e perfumada, a que são acrescidos pouco mais de 5 por cento de uma casta tinta, por regra o Cabernet Sauvignon, dando corpo a vinhos imensamente frescos e exóticos. Na Europa, porém, tais práticas seriam consideradas fraudulentas e ilegítimas, de acordo com a legislação vigente.
Independentemente da escola e diferentes filosofias enológicas que separam novo e velho mundo, quais os predicados que deverão caracterizar um vinho rosado? No seu melhor, um vinho rosado tem a obrigação de ser delicado, proporcionando a frescura palpável de um vinho branco mas imbuído de uma pequena pincelada adicional de estrutura, uma subtil indicação de austeridade e rigor que provenha da maceração pelicular. Para tal, e mais uma vez de forma ligeira, existem duas grandes composturas de aproximação aos vinhos rosados. Nos vinhos rosados a cor depende directamente do tempo de contacto entre o mosto e as películas da uva. Sempre que se aproveitam os mesmíssimos métodos empregues na elaboração de vinhos brancos, com as uvas a serem prensadas quase de imediato, com um tempo de contacto muito breve com as películas (onde se encontra a matéria corante), os vinhos consequentes apregoam cor mais aberta e ligeira. Para obter cores mais concentradas utilizam-se macerações mais demoradas, com contactos que podem mesmo remontar a algumas horas.
E por último, aquele que é o modo mais frequente, absolutamente determinante para o renascimento do empenho dos produtores nos vinhos rosados, o método de sangria que, como o nome o denuncia, se baseia numa sangradura inicial e precoce das cubas de vinho tinto, fomentando a concentração do vinho tinto remanescente na cuba... usufruindo daquilo que seria um desaproveitamento resultante da concentração de vinhos tintos para a elaboração de um vinho rosado, que não será mais que um subproduto do verdadeiro vinho alvo, o vinho tinto.
As duas metodologias implicam, forçosamente, vinhos de carácter discrepante. Enquanto nos vinhos tintos se reclama por uvas concentradas e em perfeito estado de maturação, nos vinhos rosados insiste-se essencialmente na procura de frescura e viço, onde a acidez é uma marca distintiva pelo menos tão relevante como a maturação. Os vinhos rosados de sangria acabam, por inerência, por ter de sacrificar a frescura, prometendo uma estrutura superior... e um potencial alcoólico muito mais elevado, corrompendo na passagem o espírito dos vinhos rosados. Porque desenhar um vinho rosado de raiz não é um plano B, um mero expediente enológico para salvaguardar um vinho tinto. Desenhar um vinho rosado de raiz implica, à partida, definir parcelas da vinha para a sua execução, com rendimentos por hectare mais elevados, sem monda em verde, definindo datas de vindima ligeiramente mais temporãs para evidenciar a frescura e jovialidade que se desejam num vinho rosado.
Claro que, numa visão meramente economicista, será muito mais apelativo para a maioria dos produtores produzir vinhos rosados de sangria, aproveitando para, através de uma simples operação, aprimorar um vinho tinto... ao mesmo tempo que obtém um segundo vinho com a operação. Por isso vemos tantos vinhos rosados com graduações alcoólicas tão elevadas, por vezes superando os 14º, e com cores tão carregadas, subvertendo o propósito dos vinhos rosados. E por isso se vêem tantos vinhos rosados nas prateleiras, num súbito despertar para a causa dos vinhos rosados...