Fugas - Vinhos

Quinta do Crasto

Quinta do Crasto Paulo Ricca

Um paralelismo indesejado

Por Rui Falcão

A braços com mais uma colheita do século, a quarta no espaço de uma década, Bordéus desvenda algumas analogias inquietantes com um Douro a necessitar de transformações

A notícia de mais uma colheita do século em Bordéus, libertada por numerosas fontes oficiais e oficiosas, acabou por revelar ao mundo o erro em que mais uma vez fomos comprometidos, anunciando agora que a colheita do século em Bordéus aconteceu realmente em 2010. e não na vindima de 2009, como tantos produtores bordaleses, negociants e distribuidores se empenharam em demonstrar no ano passado, aquando da romaria internacional primaveril que decorre todos os anos na última semana de Março para experimentar e apalpar o estilo dos vinhos numa fase ainda incipiente e de absoluta imaturidade.

O único pequeno senão é que, poucos anos antes, em duas ocorrências recentes mas distintas, tínhamos acabado de ouvir a mesmíssima sentença proferida para as colheitas dos anos 2005, um ano excepcional, clássico, irrepetível e mágico, de acordo com os habituais aforismos oficiais. antecedida por uma avaliação semelhante para a colheita do milénio, a generosa vindima do ano 2000, imbuída do mesmo tipo de adjectivação laudatória. que chegou mesmo a ser glorificada como a melhor de sempre em Bordéus, desde a distante colheita de 1811!

Na verdade, Bordéus habituou-se de tal modo a eleger cada vindima virtuosa como "colheita do século" que o assunto, mesmo nos círculos mais confidentes de Bordéus, acabou por se transformar num tema prolífico para graçolas. Para quem tem de vender o seu vinho em mercados agressivos, sedentos de novidades e de sound bites, percebe-se a tentação da hipérbole e a aposta num marketing combativo e agitador de emoções. O postulado revela-se, porém, bem menos explícito quando discursamos sobre Bordéus, a grande referência internacional, uma das poucas regiões que se pode orgulhar de possuir uma reputação inabalável e um verdadeiro mercado global, uma das poucas a não necessitar de espalhafato na promoção.

Claro que tal jactância não é casual nem ingénua, ajudando a inflacionar os preços dos produtores mais afamados, conduzindo a oferta dos vinhos bordaleses, antes mesmo de estes serem engarrafados, para preços demenciais e estratosféricos, sem qualquer ponto de contacto com a realidade. E é esse afastamento da realidade, perceptível na definição de preços sem qualquer sustentação racional, que irá conduzir, mais cedo que tarde, a novo afundamento cíclico da região, conforme a maleita de que Bordéus padece há tantas gerações.

Vícios de forma que se agravam ainda mais quando o fosso entre ricos e remediados se dilata ano após ano, demarcando a região de Bordéus em duas sortes distintas, dois mundos separados entre o lustro da mais pura especulação de uma pequeníssima parcela de privilegiados. e a fatalidade de uma larga maioria de produtores que continua a ver na destilação a sua maior esperança, incapazes de escoar vinhos que, não obstante ostentarem no rótulo o nome prestigiado e prestigiante de Bordéus, dificilmente conseguem afastar-se de um preço médio de venda ao público muito pouco abonatório de três euros por garrafa, preço que não verifica alterações de monta há mais de uma década!

Tal como uma Europa que parece condenada a viver sob a prepotência de duas velocidades, também Bordéus sobrevive sob o mesmo jugo: enquanto a maioria dos chateaux bordaleses pouco mais consegue que resistir a uma tragédia anunciada, fugindo da incessante ameaça da falência, uma pequena minoria desfruta uma vida de eterna animação e euforia, baseada na especulação que qualifica os grandes nomes de referência. São sintomas relativamente semelhantes aos que, infelizmente, e passe a evidente desproporção entre as duas denominações, os vinhos de mesa do Douro experimentam na fase actual da sua ainda curta existência histórica.

Também no Douro se conseguem perceber diferenças crescentes entre a fortuna dos projectos mais sólidos e coerentes, entre aqueles que enchem as páginas das revistas nacionais e internacionais, e que justamente nos enchem de orgulho, e as centenas de pequenos produtores que dificilmente poderão ser viáveis, incapazes de beneficiar da magia do nome Douro para criar um projecto e uma identidade. Enquanto os principais Grand Cru Classé oficiosos do Douro, nomes de referência como o são a Quinta do Crasto, Niepoort, Pintas ou Quinta do Vale Meão, acompanhados por um pequeno punhado de outros nomes sólidos, são obrigados a ratear os seus vinhos, incapazes de satisfazer todas as demandas dos muitos aspirantes a possuir uma garrafa, a maioria dos produtores durienses esforça-se por conseguir escoar vinhos de valor questionável e comercialização duvidosa.

E, tal como em Bordéus, este fosso, em lugar de se estreitar, continua a alargar-se de forma trágica. O que leva a que os vinhos de mesa do Douro tenham acabado por se transformar num imenso paradoxo, desmembrados entre o sucesso dos produtores mais sólidos e o fracasso daqueles que, de forma efectiva, representam o grosso da produção. Não fora a providência do Vinho do Porto para apaziguar as maleitas e a região viveria hoje momentos ainda mais dramáticos.

Mas o infeliz paralelismo com Bordéus estende-se ainda ao constrangedor alheamento da realidade, patente no lançamento continuado de vinhos a preços insustentáveis e sem qualquer relação directa com a qualidade... ou com a apetência e disponibilidade actual do mercado e da economia, por parte de produtores quase desconhecidos e sem historial. Uma estratégia suicida pela inconsequência, até porque, ao contrário de Bordéus, o Douro não conta nem com séculos de experiência. nem com uma apetência universal pelos seus vinhos de mesa saídos das margens do Douro!

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