A notícia de mais uma colheita do século em Bordéus, libertada por numerosas fontes oficiais e oficiosas, acabou por revelar ao mundo o erro em que mais uma vez fomos comprometidos, anunciando agora que a colheita do século em Bordéus aconteceu realmente em 2010. e não na vindima de 2009, como tantos produtores bordaleses, negociants e distribuidores se empenharam em demonstrar no ano passado, aquando da romaria internacional primaveril que decorre todos os anos na última semana de Março para experimentar e apalpar o estilo dos vinhos numa fase ainda incipiente e de absoluta imaturidade.
O único pequeno senão é que, poucos anos antes, em duas ocorrências recentes mas distintas, tínhamos acabado de ouvir a mesmíssima sentença proferida para as colheitas dos anos 2005, um ano excepcional, clássico, irrepetível e mágico, de acordo com os habituais aforismos oficiais. antecedida por uma avaliação semelhante para a colheita do milénio, a generosa vindima do ano 2000, imbuída do mesmo tipo de adjectivação laudatória. que chegou mesmo a ser glorificada como a melhor de sempre em Bordéus, desde a distante colheita de 1811!
Na verdade, Bordéus habituou-se de tal modo a eleger cada vindima virtuosa como "colheita do século" que o assunto, mesmo nos círculos mais confidentes de Bordéus, acabou por se transformar num tema prolífico para graçolas. Para quem tem de vender o seu vinho em mercados agressivos, sedentos de novidades e de sound bites, percebe-se a tentação da hipérbole e a aposta num marketing combativo e agitador de emoções. O postulado revela-se, porém, bem menos explícito quando discursamos sobre Bordéus, a grande referência internacional, uma das poucas regiões que se pode orgulhar de possuir uma reputação inabalável e um verdadeiro mercado global, uma das poucas a não necessitar de espalhafato na promoção.
Claro que tal jactância não é casual nem ingénua, ajudando a inflacionar os preços dos produtores mais afamados, conduzindo a oferta dos vinhos bordaleses, antes mesmo de estes serem engarrafados, para preços demenciais e estratosféricos, sem qualquer ponto de contacto com a realidade. E é esse afastamento da realidade, perceptível na definição de preços sem qualquer sustentação racional, que irá conduzir, mais cedo que tarde, a novo afundamento cíclico da região, conforme a maleita de que Bordéus padece há tantas gerações.
Vícios de forma que se agravam ainda mais quando o fosso entre ricos e remediados se dilata ano após ano, demarcando a região de Bordéus em duas sortes distintas, dois mundos separados entre o lustro da mais pura especulação de uma pequeníssima parcela de privilegiados. e a fatalidade de uma larga maioria de produtores que continua a ver na destilação a sua maior esperança, incapazes de escoar vinhos que, não obstante ostentarem no rótulo o nome prestigiado e prestigiante de Bordéus, dificilmente conseguem afastar-se de um preço médio de venda ao público muito pouco abonatório de três euros por garrafa, preço que não verifica alterações de monta há mais de uma década!